Soraia Costa: Uma mulher do norte que dá tudo pela arte dos toiros
Brunch com a cavaleira tauromáquica portuense que se profissionalizou neste verão.
Foi preciso esperar pelos 18 anos para tirar a carta e ganhar a liberdade de movimentos que lhe permitiria andar pelo país e até lá fora, a conduzir a rulote com os cavalos rumo aos tentaderos e às praças. A ligação de Soraia Costa aos cavalos recua quase aos tempos em que era um bebé, mas a paixão pelos toiros foi-a adquirindo ainda criança e consolidou-a adolescente, a ver o pai fazer lides. Nada comum para uma família do Porto, onde há muitos aficionados mas não é grande a tradição tauromáquica de primeira linha. Mas aos 27 anos, Soraia tem pouco de comum, o seu ar frágil, jovem e delicado a contrastar com o que escolheu por profissão. Enfrenta toiros na arena ao lado dos grandes nomes e sonha tourear em Espanha mas apenas quando cumprir o que traçou por objetivos de consolidação aqui em Portugal.
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Quando nos encontramos no Eric Kayser, aquela menina bonita passaria por aluna do vizinho liceu francês, mas é licenciada em Direito, cavaleira há duas décadas e tauromáquica há sete anos, com a alternativa que fez da sua arte profissão tirada a 20 de agosto, num Coliseu Figueirense cheio de apoiantes. "Nesse dia, estava totalmente descontraída, nem estava a sentir... a ansiedade com que andava antes em antecipação desse dia tão sonhado, que seria o culminar de todo o esforço e dedicação, desapareceu por completo quando me vi na praça à espera que saísse o toiro", conta-me, o sorriso aberto a fazer-lhe covinhas.
A casaca que levava na estreia herdou-a do padrinho de alternativa, João Moura, que dela abusou nas Ventas madrilenas e é a ele que Soraia recorre desde sempre quando precisa de ajuda para as suas artes. "Há uma enorme solidariedade neste mundo, todos estão dispostos a dar apoio e acarinham-me muito", assegura, quando lhe pergunto se é difícil ser mulher num mundo ainda predominantemente de homens. "Já não é assim", vinca, e quanto a discriminação ou machismo, "não os encontro nem na praça nem fora dela; o público está muito perto de nós, entusiasma-se com as toureiras, e os colegas são sempre muito queridos, não há distinção".
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Fala do seu percurso sempre assim, com entusiasmo e alegria, mesmo quando relata a exigência e o esforço e "as coisas horríveis" que passou - e não se perde em detalhes sobre esses momentos menos bons. "O resto compensa tudo." Concretiza: "Às vezes até nos passa pela cabeça desistir, quando as coisas não correm bem depois de tanto esforço, são dias e dias e dias em sacrifício e uma corrida são dez minutos. É ingrato. É difícil. É solitário. Mas depois sinto que não faria outra coisa na vida. É isto que me dá alento."
Bebemos café e miniaturas doces enquanto me vai levando pela sua vida aos 18 anos, quando concentrava aulas de manhã à noite parta poder ter as quintas e sextas livres para descer do Porto e vir treinar na Torrinha, com o mestre David Ribeiro Teles e com Manuel Teles Bastos. Vai-me contando das diferenças deste mundo, do que aproxima tremendamente quem nele vive e das amizades que se fazem fortes, à prova de tudo. "É um mundo diferente até nisso e acho que me fez ser uma pessoa diferente, com qualidades que não teria, sobretudo vontade de ajudar os outros. Eu senti que precisava muito de ajuda - vinha sozinha com a rulote com os cavalos e custava imenso - e sempre tive pessoas a rodear-me e ajudar. Isso fez-me bem. Fez-me mais solidária."
Sempre foi apaixonada por cavalos e a eles dedica boa parte da vida - continua a saltar e participar em provas, tendo começado aos 6 anos, e foi nesse ambiente, quando quis levar-se mais longe e melhorar o desempenho, que conheceu o namorado, Ricardo, também cavaleiro. A afición do pai, também toureiro e que tirou alternativa em 2014, deu-lhe o empurrão que faltava para enfrentar os toiros e assumir essa nova paixão. E se é dos cavalos e agora da tauromaquia que faz vida, admite que também adora praia e desportos radicais, como moto de água e moto-quatro.
"Sinto adrenalina, medo não"
Nada disto foi tão simples quanto Soraia Costa faz parecer. Mesmo para quem vive a cem metros da quinta da família, onde além dos cavalos há coelhos, galinhas, patos, gansos, cabras, póneis, um burro mirandês e mais de 20 cães, muitos deles abandonados que lhe deixam à porta. "Nada é para exploração ou consumo, é mesmo porque adoramos animais", explica Soraia, que não vê justificação nos argumentos dos animalistas. "O que um animal não deseja mesmo é estar o dia todo numa varanda. O mundo da tauromaquia gosta e respeita os animais. Os animalistas não têm noção do que é a vida animal, o campo; são pessoas que veem a natureza da janela da cidade e falam sem saber, sem sequer se dar ao trabalho de ir ver e aprender a realidade. Não há quem goste tanto de animais como nós."
Pergunto-lhe se por vezes tem de fazer a defesa da tauromaquia junto dos amigos, até da faculdade. Garante que foi assunto resolvido à partida. "Tenho amigos muito próximos que não são aficionados e outros que até são contra as touradas, mas estabelecemos logo como política não se falar nisso. Discordamos, mas não temos de entrar em discussão, desde que haja respeito." Reconhece, ainda assim, que para tourear é preciso uma paixão que "nasce connosco". E se há sempre uma parte de receio de as coisas não correrem bem na arena esse medo é mais de desiludir o público, de os cavalos não estarem num bom dia, de a arte não fluir. "Medo não sinto. Adrenalina, sim, muita. É uma sensação inexplicável esta paixão, esta intuição, este querer, esta garra que sentimos e que são a única forma de as coisas lá dentro resultarem. Aquela sensação quando o toiro sai é inexplicável, é incrível."
Para a mãe, não é bem assim. E se ver a sua única filha dedicar-se à arte da tauromaquia é um orgulho e a apoia incondicionalmente, às vezes é mesmo medo que sente. Como ao ver a filha tourear um dia depois de ter caído do cavalo e feito um traumatismo, contra as ordens do médico. "Nesse dia, a minha mãe até fugiu da praça."
Mudar tudo por uma paixão
Há outras dificuldades. "Tive de criar condições para treinar, e mesmo assim não é fácil... não há gado bravo por perto do Porto, não há bandarilheiros, não há nada. Mas há muita afición", garante Soraia Costa. As dificuldades incluem o dinheiro que os próprios toureiros investem nesta área cultural. "É uma arte difícil, que envolve muita coisa para se trabalhar." E que sai cara. Para uma corrida, há que levar um camião, ter uma equipa de pessoas, motorista, logística... e os cavalos "só correm no verão mas comem todo o ano, precisam de veterinário, de grandes cuidados para estarem bem e em forma; o aluguer das vacas para treino é muito caro". Tudo junto e descontando esses custos mais estruturais, cada corrida pode obrigar a gastar uns 2 mil euros. Compensa? "Neste momento não é rentável. Não ganho tudo isto numa corrida. Mas a paixão compensa tudo."
Soraia não sabe até quando vai tourear mas mesmo sendo uma vida difícil - "gostava que fosse por muitos anos". Até porque condicionou toda vida pela tauromaquia. Desde o trabalho que faz em paralelo com as corridas - não em Direito, ainda que tenha gostado muito do curso, mas entre a empresa de eventos dos pais e a de aluguer de carros clássicos para casamentos, que agora praticamente lidera - à própria escolha do curso. "Estava em Ciências e Tecnologias e pensava seguir uma área ligada aos animais e à natureza, mas não havia no Porto um caminho por essas áreas e acabei por ir para Direito porque me dava boas bases para o futuro. Para seguir o que queria, tinha de ir estudar para Coimbra e aí sim, seria impossível conciliar os estudos com os toiros, por isso acho que abdiquei um pouco do futuro profissional que gostava de fazer pela minha arte."
E se a tauromaquia tem destas coisas, Soraia não esconde que é religiosa e supersticiosa. "Tenho a minha fé à minha maneira e tenho as minhas superstições. Rezo sempre aos meus santinhos antes de entrar na praça. Não ponho o tricórnio em cima da cama. Tenho as minhas pulseiras com imagens de Nossa Senhora. Entro sempre com o pé direito na praça. E faço sempre uma festa na orelha do cavalo de saída antes de o toiro sair para a lide."
Pela sua arte, gostava ainda de cumprir grandes feitos. Só partilha o mais próximo: o sonho de tourear no Campo Pequeno, "a praça com que todos sonhamos. Já lá fui três vezes enquanto praticante e sonho confirmar a alternativa em breve". No Coliseu Figueirense, tem hoje uma das praças que mais acarinha - e onde mais é acarinhada. Assume depois que também quer tourear em Espanha, "mas ainda não foi o momento".