Serra da Estrela foi a área protegida com mais zonas ardidas nos últimos dez anos
Nos últimos anos o fogo tem destruído uma parte considerável dos parques naturais em Portugal, numa média de 11 575 hectares por ano. Mas é a Serra da Estrela a região que mais sofre. Os especialistas acreditam que não é só preciso redimensionar a ocupação da floresta. Também importa repensar o tipo de combate ao fogo.
Foram mais de 22 mil hectares que apenas numa semana arderam no Parque Natural da Serra da Estrela (do total de 28 mil em toda a região) num fogo que deflagrou a 6 de agosto - e chegou a ser dado como extinto a 12, mas acabou por se reacender. A verdade é que apenas em dois dias (15 e 16) as chamas consumiram de forma violenta mais de oito mil hectares, em três ignições simultâneas. E este não foi só o incêndio na maior Área Protegida (AP) do país, que maior preocupação causou. Sucessivamente, a Serra da Estrela -- para a qual ontem foi aprovada pelo Conselho de Ministros a situação de calamidade com a duração de um ano - tem vindo a ser consumida pelas chamas nos últimos anos, ficando à cabeça dos parques naturais que o fogo não poupa. Nos últimos cinco anos (2017-2021) o total acumulado da área ardida corresponde a cerca de um quarto da área do Parque Natural da Serra da Estrela.
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Os dados, disponibilizados ao DN pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), revelam várias conclusões, mas as associações ambientalistas são unânimes numa delas: "Há uma dificuldade objetiva no combate depois da ignição se iniciar". António Martins, da direção da ZERO - Associação Sistema Terrestre Sustentável, é um dos que o defende. "Há determinados territórios onde infelizmente é muito difícil controlar o fogo, se ele avançar. Ou se consegue debelar no início, ou é muito complicado."
Sem prejuízo de considerar "absolutamente prioritário - vidas humanas e bens", António Martins deixa o alerta: "Num território como aquele [Serra da Estrela], numa área protegida onde nalguns locais a densidade populacional é muito baixa ou mesmo inexistente, se calhar deveria haver aqui uma abordagem ao combate adaptada a este tipo de território. Mas, na verdade, grande parte dos problemas resolviam-se antes, com um outro ordenamento da floresta".
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O responsável daquela associação refere-se concretamente às políticas de produção florestal intensiva de eucalipto ou pinho em áreas protegidas, "quando o Estado português deveria apoiar a dinamização de outros projetos, valorizando os territórios de outra forma". António Martins aponta também outra causa para o risco de incêndio acrescido nos parques naturais de todo o país: "O desinvestimento que tem sido feito em termos de políticas de conservação da natureza e da biodiversidade em Portugal".
Também Paulo Pimenta de Castro, da IRIS - Associação Nacional de Ambiente, constituída há pouco mais de um ano, partilha da mesma opinião. "Já antes desta ocorrência nós tínhamos contactos prévios para constituir um núcleo na região da Guarda, para estarmos mais próximos da serra da Estrela, e agora por maioria de razão vamos acioná-lo o mais rápido possível", revelou ao DN. O engenheiro silvicultor, coautor do livro Portugal em Chamas, insiste na necessidade da "consolidação dos solos", de resto vincada num comunicado emitido pela IRIS logo a 6 de agosto, quando deflagrou o incêndio na serra da Estrela.
"A nossa grande preocupação é evitar que eles venham encosta abaixo. Por um lado porque isso vai, obviamente, contaminar cursos de água, e por outro vamos ter perca de solos, e qualquer recuperação, em termos de vegetação, naquelas encostas, torna-se muito mais difícil", sublinha. De resto, foi essa a preocupação expressa pela maioria dos autarcas na reunião que ocorreu com os seis ministros, ao início da semana, e culminou ontem com a declaração do estado de calamidade para a região durante um ano.
Pimenta de Castro refere a importância de se intervir no Vale Glaciar, até por causa de um outro incêndio que já ali ocorreu há 12 anos. "Houve uma estrada, que liga todo o vale, e que esteve fechada dois anos. As Infraestruturas de Portugal, em obras, gastaram ali dois milhões de euros. E isso teria sido evitado se tivessem sido feitas obras de consolidação de solos - na altura estimados em cerca de 50 mil euros". "A nossa grande preocupação é tentar intervir rapidamente, já que aquele espaço foi novamente afetado", acrescenta o responsável da IRIS. "Outra opção é cortar o arvoredo, e dispô-lo com a distância de um metro, ao longo das curvas de nível, para evitar que se perca aquele solo. A partir daí o rejuvenescimento da vegetação torna-se muito mais rápido".
As preocupações dos ambientalistas centram-se em vários parques naturais. Além do da Serra da Estrela, também o da Peneda-Gerês (que sofreu já este verão com o fogo), o do Lindoso, no concelho da Ponte da Barca, que esteve a arder durante três dias, ou do Montesinho, são áreas de conservação recorrentemente atingidas pelo fogo.
O perigo das plantas invasoras
Paulo Pimenta de Castro lembra que no Parque Natural da Serra da Estrela se perderam neste fogo "muitas espécies endémicas que só existem ali". E neste caso, se se perderem, serão extintas. É preciso perceber o que está a ser feito pelo ICNF. Tem havido vários protestos, nomeadamente desde 2017, do incêndio de Pedrógão, com o alastramento das invasoras, nomeadamente das acácias. "Com a extensão que este incêndio teve, julgo que esse é o perigo real", afirma o responsável da IRIS, lembrando o que está a acontecer na Peneda-Gerês em que plantas australianas (como as acácias) estão a dominar aos poucos aquela área.
E o que pode ser feito, afinal, para remediar o problema? Pimenta de Castro defende a colocação dessas áreas protegidas em cogestão. "Por exemplo, uma repartição de responsabilidade do ICNF com as câmaras municipais. Mas temos alguma dúvida que um conjunto de entidades envolvidas possa dar aqui uma diluição de responsabilidades". Por outro lado, a IRIS defende mais vigilância. "Mas uma vigilância presente, que seja dissuasora. Não bastam câmaras térmicas, é preciso de facto pessoal a circular pela mata, pelos parques, pela floresta. E depois, a nível do combate, nós estamos muito vocacionados para os autotanques. E esses, como se percebeu agora, na serra, sobretudo em montanha, não funcionam. Nós precisamos de um corpo apeado para intervir em áreas difíceis. Nós já sabemos que os acessos são difíceis, mas temos que nos adaptar a eles."
Pimenta de Castro cita, por exemplo, o caso da vizinha Espanha, em que isso já acontece.
Cinco incêndios desde julho
O ICNF contabiliza até agora "um conjunto de cinco grandes incêndios rurais que se estenderam por mais de 500 hectares" no Parque Natural da Serra da Estrela, nos meses de julho e agosto, tal como adiantou ao DN fonte daquele instituto, em resposta por escrito. Com base nos dados provisórios, disponíveis até sexta-feira, 19 de agosto, os mesmos consumiram "28 112 ha dos quais 22 065 ha do Parque Natural da Serra da Estrela (25% da sua área total)", revela a mesma fonte.
As matas de pinheiro-bravo (9 199 ha) e de carvalho (2 633 ha) foram as ocupações florestais com mais área queimada, sendo que a floresta (15 167 ha, 54% da área total ardida) e os matos e pastagens espontâneas (35%) foram os usos do solo mais atingidos, havendo ainda a salientar 2 801 hectares de área agrícola ardida.
A fauna e a flora sofreram também danos consideráveis, tal como revela o ICNF. "Entre as espécies da flora vascular com populações afetadas destacam-se, pelo estatuto corológico, estatuto de conservação e pelo estatuto de proteção legal, as populações das espécies Centaurea langei subsp, Rothmalerana, Armeria sampaioi, laborinho (Festuca elegans), Jurinea humilis, mostajeiro (Sorbus aria e Sorbus latifolia), e ainda em avaliação os danos na população de teixo (Taxus baccata). Das espécies da fauna atingidas merecem referência as populações de várias espécies de invertebrados (algumas endémicas da serra da Estrela e outras cuja única localidade conhecida em Portugal se situa na área do Parque Natural), e a lagartixa-da-montanha (Iberolacerta monticola su bsp. monticola), uma espécie endémica da serra da Estrela e cuja área de distribuição foi atingida pelo incêndio".
Já no que respeita às aves, a cegonha-negra, a águia-de-bonelli, águia-real, tartaranhão-caçador, águia-cobreira, falcão-peregrino, melro-das-rochas e petinha-dos-campos foram as mais afetadas. Entre os mamíferos, foram sobretudo atingidos a toupeira-d"água, o gato-bravo e comunidades de várias espécies de quirópteros.
Em resposta ao DN, o ICNF enumera um conjunto de trabalhos "de prevenção estrutural realizados no Parque Natural da Serra da Estrela, desde 2018".
Quanto ao governo, anunciou que durante os próximos 15 dias irá ser feito um levantamento exaustivo dos prejuízos causados no território.
ENTREVISTA Fernando Santos Pessoa
"Se não alterarmos tudo o que está a ser feito, os parques naturais vão arder todos"

© Sul Informação
Quando soube do incêndio na serra da Estrela, manifestou publicamente a intenção de ir para lá. O que queria ir fazer?
Estava pronto a ir para lá. Mas disseram-me para esperar uns dias, para poder passar. Foi o que fiz, é por isso que só vou esta quinta-feira [ontem]. Preciso de ver a tragédia que lá ocorreu. Porque fogos sempre houve, mas desde que ardeu a mata de Leiria, o Pinhal do Rei, já nada me admira. Quando deixaram arder aquilo, deixam arder tudo. Mas no que respeita à serra [da Estrela] quando o fogo começou, alguém terá dito "deixa arder que é só mato". E se o fogo começou de madrugada...era possível reverter um fogo desses.
Na sua opinião o que é mais importante: alterar a forma como se combate este tipo de incêndio, ou agir a montante, na prevenção?
Nós temos que alterar tudo. Quando o território estava ocupado por casas, postos e guardas-florestais, havia um acompanhamento durante todo o ano. Porque o combate aos fogos não se faz em junho e julho. E quando havia cortes de madeiras obrigava-se os madeireiros a tirar de lá a lenha toda. Hoje ninguém faz isso. Ia-se acompanhando ao longo do ano. Ora, com estas temperaturas, com o território neste estado, há combustível mais do que suficiente para arder.
Tem defendido recentemente a ideia de usarmos videovigilância a auxiliar os guardas-florestais. Ainda considera que seria fundamental esse regresso...
Claro que a tecnologia que hoje existe permitiria que aquela quadrícula que existia de guardas-florestais fosse mais pequena (não seria preciso tanta gente), mas também porque há meios de vigilância muito mais apurados. Hoje é possível estar em casa ou num posto e verificar se acontece qualquer coisa.
Na sua ótica temos então todas as condições para evitar que situações como as que temos assistido possam acontecer?
Não posso afirmar isso. Há realmente fogos que são provocados por golpes de vento e outras situações especiais que são complicadas. Agora, não se percebe como é que um fogo começa na Covilhã, vai até Celorico da Beira e depois volta para trás outra vez. É uma das coisas que eu quero perceber quando for à serra, falando com as pessoas que lá andam há uma vida inteira. Tenho que perceber como é que isso foi possível. Os bombeiros não têm a culpa. Toda a vida os bombeiros combateram incêndios. Mas quem os comanda hoje já não são os seus comandantes, são os senhores da Proteção Civil - que mandam avançar quando querem. E que não conhecem o terreno com proximidade.
Porque é que diz isso?
Porque foi exemplar o que aconteceu aqui em Monchique em 2017. Estiveram uma semana a ver o fogo aproximar-se. Podiam ter-se posicionado na linha da Fóia -- e estavam lá, com máquinas e bombeiros parados -- e não foram capazes de conter o fogo. Deixaram-no passar para a encosta sul. Hoje não sabem fazer fogos de corta-fogo (uma pequena faixa que se incendeia, para quando o fogo ali chegar já não haver nada para arder), que um bom engenheiro florestal sabe fazer, e os bons bombeiros também sabem. É uma técnica que se devia usar e que ninguém usa.
E quando se refere ao exemplo do Pinhal do Rei, para apontar depois o caso da serra da Estrela, teme pelos outros parques naturais do país?
Claro. O Pinhal de Leiria é o ícone da incompetência e do desleixo da política florestal neste país. Foi lá que eu fiz a minha formação inicial, de quase dois anos. Sempre houve um fogo aqui ou ali, mas como havia guardas-florestais e umas dezenas largas de trabalhadores que acudiam, resolvia-se sempre. A forma do pinhal permite isso. Só que agora não há lá lá ninguém! E a limpeza da mata já não se fazia há anos. Agora veja, ali há uma geografia completamente diferente, mas a incompetência é muito generalizada, seja na planície ou na montanha.
Mas não acredita no plano de intenções anunciado pelo governo, em Manteigas, para a regeneração da serra da Estrela?
Não acredito. Só se viesse algum milagre. O Parque Natural da Serra da Estrela já existe desde 1977, estava prevista a progressiva transformação da mata em floresta com autóctones e nunca se fez nada disso. Já ardeu a o Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros, já ardeu o da Serra da Estrela, hoje estava a arder o do Alvão... Vão arder todos. Eu só espero que alguém esteja de prevenção na Arrábida.
dnot@dn.pt
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