Sem reforço à Saúde no Orçamento do Estado, hospitais vão colapsar

Profissionais e gestores hospitalares alertam para efeito da inflação nos custos do setor e a necessidade de reajustar valores. Pressão afeta todos os sistemas de saúde europeus, admite Xavier Barreto. Hospitais alemães já fizeram um ultimato ao governo de Scholz.

Uma tonelada de algodão passou de 60 para 230 euros, o preço das seringas subiu mais de 20%, o custo dos equipamentos teve aumentos superiores a 60% e sem data certa para entrega, dadas as interrupções nas cadeias logísticas. É um retrato rápido do efeito que a guerra estava a ter na Saúde no início do verão. Com a inflação a chegar aos 9% nos meses mais quentes e em vésperas de arrancar o debate sobre o Orçamento do Estado (OE) para 2023, o disparar de custos na Saúde é uma enorme preocupação para quem trabalha e gere estruturas do setor. "Sem um aumento considerável no financiamento do OE, vamos ter grandes problemas", antecipa Xavier Barreto ao Dinheiro Vivo.

"Os custos totais dos hospitais estão a subir cerca de 7%", mas há elementos da cadeia de valor que dispararam bem acima disso, "como os fornecimentos e serviços externos, particularmente em eletricidade e combustíveis, onde se registam subidas entre 50% e 70 %, existindo casos de aumentos superiores a 100%", concretiza o gestor do Centro Hospitalar de São João. "O efeito da inflação tenderá a agudizar-se nos próximos meses", antecipa, lembrando que "vários fornecimentos são feitos através de contratos plurianuais e há cada vez mais fornecedores a pressionar a renegociação desses contratos."

A pressão é generalizada e afeta desde os simples consumíveis, como compressas hospitalares, à maquinaria, sobretudo aparelhos de exames que têm por base metais, cuja escassez no mercado já se arrasta desde os tempos da pandemia. E os custos energéticos são brutais, exigindo-se, por isso, dotação orçamental que permita acomodar a nova estrutura de custos.

"O reforço de 700 milhões de euros no OE deste ano não previa este cenário. Destinava-se, em grande medida, ao aumento de recursos humanos e ao desenvolvimento de projetos de construção e reabilitação de estruturas", lembra Xavier Barreto, defendendo a necessidade de reforçar o financiamento.

"Se o governo não previr um reforço significativo na dotação para os hospitais no próximo ano, será muito difícil continuar a dar resposta", resume ao Dinheiro Vivo o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães, lembrando que os custos dos atos médicos têm vindo a escalar e essa realidade tenderá a piorar conforme novas encomendas, contas e contratos vão caindo.

É a sobrevivência dos hospitais que está em causa nas contas públicas para o ano que aí vem. E o problema não é um exclusivo português, "afeta todos os sistemas de saúde europeus", admite Xavier Barreto. Até mesmo os alemães, que decidiram tornar público o alerta.

"Há camas de Urgências e UCI fechadas, os cuidados pediátricos estão no limite, os doentes esperam cada vez mais por tratamentos essenciais. Se o governo não agir já no sentido de compensar os efeitos da inflação, seremos obrigados a despedir, pondo em causa a capacidade de garantir atendimento de qualidade e eficiente, com menos burocracia e muito mais orientado para o paciente", lê-se no apelo dos profissionais de Saúde alemães.

Numa petição enviada ao governo de Scholz, os profissionais germânicos alertam para a extrema fragilidade que se vive no setor. "Os hospitais alemães com seus mais de 1,2 milhões de funcionários, bem como a Sociedade Hospitalar Alemã e suas associadas, pedem a Berlim que aja de forma decisiva e apoie os hospitais de forma eficaz. Os hospitais alemães estão em perigo. A falta de pessoal está a crescer. Cerca de 60% dos hospitais já estão a ter prejuízos e os efeitos estão a tornar-se cada vez mais evidentes para os pacientes", alertam.

"Um défice de investimento anual de 3,5 mil milhões de euros dificulta a criação e manutenção de estruturas modernas e eficientes", a necessária aposta nos recursos humanos "extremamente sobrecarregados" com processos administrativos, as subidas de preços "sem correspondente atualização de tabelas dos atos médicos", a recuperação urgente de atrasos provocados pela resposta à covid, são temas enumerados pelos profissionais alemães.

Os portugueses não diriam melhor. Como, aliás, são comuns outras preocupações, incluindo a necessidade de reestruturar serviços e o próprio funcionamento do Sistema de Saúde, olhando-o em toda a sua abrangência de resposta, "público, privado e setor social, imprimindo-lhe maior eficiência de gestão", conforme realça Miguel Guimarães.

O bastonário reforça, porém, que essa reorganização não será suficiente para responder aos problemas do SNS e garantir que se recupera "os cuidados que se atrasaram em 2020 e parte de 2021. Há muitas consultas, tratamentos e cirurgias por fazer, muitos diagnósticos atrasados, e tudo isto tem um preço", sublinha. O que implica também a necessidade de rever as tabelas dos atos médicos, de forma a evitar que os custos passem para as pessoas, por exemplo, em aumentos nos seguros de saúde, que já servem as necessidades de mais de 40% dos portugueses. Ou que se mantenham preços à custa da remuneração dos profissionais, que podia precipitar ainda mais saídas.

Com problemas semelhantes, "seria bom que houvesse uma estratégia de saúde europeia", diz Xavier Barreto, lembrando como essa visão permitiu resposta rápida na compra e acesso às vacinas contra a covid. "Uma visão que se alargasse também aos recursos humanos, outra preocupação comum à Europa, seria de valor."

Enquanto a prioridade vai sendo adiada, cabe aos governos nacionais garantir que a guerra e a inflação não precipitam a rutura dos respetivos SNS.

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