Relatório sobre abusos sexuais na Igreja é divulgado segunda-feira

Pedro Strecht já disse que "há um setor da Igreja Católica que quer manter os segredos" e que se tornou "muito claro que houve encobrimento da hierarquia católica em Portugal", apelando à instituição para "vencer o medo" e recusar "a ocultação da ocultação".

O relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que começou a recolher testemunhos em 11 de janeiro do ano passado, só será apresentado na segunda-feira de manhã em Lisboa.

O relatório deverá ser ainda entregue este domingo pelo coordenador da comissão independente, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), cujo presidente, o bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, agendou para as 16:00 de segunda-feira uma declaração sobre o seu conteúdo.

Para 3 de março foi já convocada uma assembleia plenária extraordinária da Conferência Episcopal para analisar o relatório.

Sem querer adiantar números finais até à apresentação do relatório final, a comissão divulgou no seu último balanço público, em outubro, que já tinha registado 424 testemunhos validados, compreendendo casos de abusos ocorridos desde 1950 e vítimas entre os 15 e os 88 anos.

Os membros da comissão esclareceram logo à partida que não estava em causa uma investigação criminal, mas adiantaram que as denúncias de crimes que não tivessem prescrito seriam encaminhadas para a Justiça, o que veio a confirmar-se com o envio, até junho, de 17 denúncias para o Ministério Público (MP).

No entanto, em outubro foi assumido pela Procuradoria-Geral da República que dos 10 inquéritos instaurados, mais de metade (seis) já tinha sido arquivada.

Em paralelo, foi divulgado no início deste mês que as Comissões Diocesanas de Proteção de Menores tinham recebido até essa altura 26 participações de abusos sexuais em todo o país.

Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a própria sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países.

Apesar da "tolerância zero" aos abusos decretada pelo Papa Francisco, Pedro Strecht disse ao longo do ano passado que "há um setor da Igreja Católica que quer manter os segredos" e que se tornou "muito claro que houve encobrimento da hierarquia católica em Portugal", apelando à instituição para "vencer o medo" e recusar "a ocultação da ocultação".

Em causa estavam alegados encobrimentos dos crimes, nomeadamente por parte do cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, e do bispo de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, José Ornelas.

Estes casos acabaram por ganhar impacto político quando o Presidente da República considerou que os mais de 400 testemunhos não eram um número "particularmente elevado".

Marcelo Rebelo de Sousa foi fortemente criticado e praticamente só o primeiro-ministro, António Costa, saiu em defesa do chefe de Estado, que, após dois dias de sucessivas explicações, acabou por se desculpar perante as vítimas.

Sob a liderança do pedopsiquiatra Pedro Strecht, que se havia destacado como médico dos menores abusados no processo Casa Pia há 20 anos, a comissão integra também o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos, dispondo ainda de acesso aos arquivos da Igreja.

Abusos sexuais na Igreja Católica no mundo e em Portugal

Portugal junta-se na segunda-feira aos países que coligiram informação sobre abusos sexuais de menores pela Igreja Católica e a divulgam e encaminham para a justiça, após décadas de encobrimentos daquela instituição à escala global.

As denúncias de abusos sexuais de menores pela Igreja Católica tornaram-se mais frequentes no final do século XX e início do século XXI, mas a maioria dos casos continua encoberta e raramente desencadeia ações judiciais com consequências para os perpetradores.

As queixas sobre tais casos foram quase sempre recebidas pela hierarquia da Igreja Católica com ceticismo e desvalorização dos testemunhos, tendo mesmo, em alguns países, bispos e cardeais a quem foram comunicados casos - muitos dos quais em contexto escolar - argumentado que, não sendo o abuso sexual de menores um crime público, não eram obrigados a denunciá-los às autoridades civis, pelo que acabavam por ser, em vez disso, ignorados pelas autoridades canónicas.

A nível mundial, não existem números fidedignos, apesar de relatórios ao longo dos anos elaborados sobre o flagelo, que estarão muito longe dos reais, precisamente graças a essa tendência perpetuada de geração em geração pela Igreja de proteger os seus, apenas quebrada pelo Papa Francisco, que já declarou que "um caso de abuso sexual de menores na Igreja Católica já é um caso a mais" e tem prestado atenção às denúncias e afastado os respetivos autores, independentemente de quão alto seja o lugar que ocupam na hierarquia eclesiástica.

Antes do argentino Jorge Bergoglio ocupar a chefia da Igreja Católica, em 2013, houve alguns escândalos com ecos à escala mundial, o primeiro dos quais talvez o resultante da investigação, em 2001, do diário Boston Globe, que valeu à equipa Spotlight, que a realizou, um prémio Pulitzer, pela denúncia de que a hierarquia católica encobrira crimes sexuais cometidos por cerca de 90 padres só naquela cidade norte-americana.

Nessa altura, o antecessor do Papa Francisco, Bento XVI, chegou a ser acusado pelo diário The New York Times de ter diretamente participado no encobrimento de casos de pedofilia ocorridos não só nos Estados Unidos mas também na Alemanha, na década de 1980.

A partir daí, sucederam-se denúncias de proporções gigantescas um pouco por todo o mundo, de França (onde um relatório de 2021 responsabiliza diretamente clérigos e religiosos católicos pelo abuso de 216 mil menores entre 1950 e 2020) à Polónia (um dos países mais católicos do mundo), passando pelo Canadá (nos 130 internatos para crianças indígenas geridos pela Igreja Católica), Áustria, Bélgica, Irlanda, Países Baixos, México, Chile, Colômbia, Austrália e Timor-Leste -, que obrigaram a Igreja a reagir.

Em 2013, quando Francisco iniciou o seu pontificado, o Vaticano criou uma comissão especial destinada a proteger menores vítimas de abusos sexuais e combater os casos de pedofilia no clero.

Em fevereiro de 2019, o Papa convocou a Roma os responsáveis pelas conferências episcopais de todo o mundo para um encontro sem precedentes destinado a debater e encontrar soluções para o flagelo do abuso de menores, já designado como "o 11 de Setembro da Igreja Católica".

Em maio desse ano, anunciou legislação mais rigorosa, impondo a obrigatoriedade de os sacerdotes e religiosos denunciarem suspeitas de abusos na Igreja, assim como qualquer encobrimento por parte da hierarquia.

Mais tarde, em dezembro, adotou uma das medidas consideradas mais relevantes nesta matéria: pôs fim ao segredo pontifício para denúncias de abusos sexuais, determinando que os processos canónicos conservados nos arquivos das dioceses e do Vaticano relativos a abusos sexuais cometidos por membros do clero fossem facultados às autoridades civis.

Apesar de tudo isso, em junho de 2021, uma equipa de relatores especiais do Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos criticou o Vaticano por continuarem as acusações de obstrução e não-cooperação da Igreja Católica com processos judiciais internos, para impedir a responsabilização dos abusadores e a indemnização das vítimas.

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