Recados, mensagens sexistas e de afirmação social. O que escondem as letras das músicas que os jovens ouvem
No ano passado o Relatório de Segurança Interna ligou a criminalidade de grupo aos gangues que se identificam com dois estilos musicais: hip-hop e drill. Há pais, professores e especialistas diversos preocupados com a consequência das mensagens das letras. Outros alertam para o lado de lá do espelho: é na música "pimba", amplamente aceite nas tv"s e em horário "familiar", que passam as mensagens de maior misoginia e subserviência.
"E traz a tua amiga ela é gira (mais que tu) Smash nessa puta... meu ghost é plus ultra". Sónia Marques ouviu uma e outra vez o que cantavam em coro os adolescentes que, naquele ano pré-pandemia, enchiam o recreio da Escola Secundária de Pombal, numa ação promovida por uma das listas candidata à Associação de Estudantes. Era uma música de Valdir (Bébi), então "em altas" entre os mais novos. "Primeiro julguei ter ouvido mal. Mas depois percebi que toda a canção era assim, num linguajar impróprio. Quando finalmente a minha filha -- que estava até envolvida na lista que tinha levado o rapper à escola -- chegou ao pé de mim, tive uma conversa com ela. Fiz-lhe ver que aquilo era muito pouco dignificante para as mulheres. Era um contra-censo, até porque estas novas gerações são tão conscientes sobre as questões de género...", conta ao DN, agora que a filha já está no primeiro ano da universidade. E passados dois anos em que a pandemia afastou da(s) escola(s) as festas das listas.
Relacionados
Mas não afastou a música, esta música, da vida dos adolescentes. E será que é só o rap, o hip-hop ou o drill (uma variação mais recente) que transportam com eles essas mensagens de misoginia e outras desigualdades? Até que ponto os mais novos têm consciência disso?
No ano passado, o Relatório de Segurança Interna fez soar campainhas entre as autoridades quando pela primeira vez falou do estilo musical associado à "criminalidade grupal" -- prática de crimes por três ou mais suspeitos, que registou um aumento de 7,7%. De acordo com o documento, o fenómeno tem apresentado maior incidência nas áreas metropolitanas, em especial nas chamadas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS). "Caracteriza-se maioritariamente por grupos de jovens com vasto historial criminoso centrado essencialmente na prática de roubo, furto, ofensa à integridade física e ameaça, durante o período noturno. Em termos de características gerais podemos inferir a existência de homogeneidade, designadamente a idade compreendida entre os 15 e 25 anos, a existência de uma multiplicidade de fatores, de lealdade ou de associação, seja através da identificação do grupo (gangue) como bairro, grupo musical (geralmente hip-hop ou drill) ou mesmo o meio escolar frequentado. Neste contexto, verifica-se grande influência das redes sociais na replicação desta subcultura", refere o relatório, que salienta "a preponderância da subcultura hip-hop como uma das principais formas de expressão de grande parte destes jovens, nomeadamente, através da gravação e edição de videoclips, com roupas e cartazes alusivos ao respetivo gangue ou bairro". Refere ainda "grande influência das redes sociais na replicação desta subcultura, já que as designações dos grupos -- comunicadas e agregadas através de hashtags -- são replicadas pelos membros e seguidores, potenciando a subsequente mediatização em órgãos de comunicação social".
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Perturbar sim, "fundamental para o progresso"
O professor Rui Correia -- que há dois anos se tornou conhecido em todo o país por ter sido distinguido com o galardão Global Teacter Prize Portugal -- solta uma gargalhada do lado de lá do telefone, quando ouve a pergunta. Ele, que além de ensinar História e escrever livros, a partir de Caldas da Rainha, também é músico, considera que a música "tem um efeito absolutamente brutal sobre a psique das pessoas, como qualquer outro fenómeno artístico", diz ao DN.
"Toda a arte tem a função de influenciar a pessoa que dela usufrui. E eventualmente de a perturbar. Essa é a função. Criar desconforto, perplexidade, retirar o sujeito do seu ponto de conforto. Dizer que existe um estilo musical que possa provocar este ou aquele sentimento é completamente verdade. Os impressionistas não fizeram outra coisa senão tentar colorir a vida das pessoas com composições artísticas, para produzir um determinado sentimento. Se ouvirmos o Wagner vamos ter esse empolgamento, Chopin essa intimidade e sensibilidade. Todos esses sentimentos são a ceara onde estes artistas vão ceifar", afirma Rui Correia, ao mesmo tempo que adverte: "Outra coisa é nós percebermos, quando se fala de um estilo de música, que ele possa ser utilizado com diferentes intenções.. e há estilos de música que têm objetivamente a intenção de suscitar a desordem e criar disrupção social e em muitas dessas circunstâncias, ela foi extremamente bem-vinda, com caráter progressista". Rui Correia aponta os temas de Pink Floyd, por exemplo, ou toda a música hippie. "Quando ouvimos o Bob Dylan, não é possível não ter a noção do grau de impacto que possa ter na disrupção e na crítica social. Tudo isso é absolutamente positivo. Tudo isto é fundamental para o progresso", afirma.
Subserviente e sexista? A música "pimba"
Quando confrontado com o facto de se apontarem dois estilos musicais como identitários de gangues, ligados à criminalidade de grupo, o professor é perentório: "Isso é um absurdo. Aquilo que nós vemos é que existe uma estética ligada ao gangsterismo, que faz parte de toda essa atmosfera. Nós percebemos hoje que o rap está completamente dentro do mainstream do jazz, por exemplo. Já não é um género artístico subversivo. Aliás, grande parte dos rappers hoje criticam o facto do género ter perdido o seu lado clandestino e se ter tornado uma indústria de biliões. E o que vamos verificar é que noutros estilos musicais existem mensagens que são tão nefastas e tão nocivas como essas. Por exemplo: qualquer música que conduza à subserviência e à aceitação das coisas e à resignação são produtos muito bem aceites por todos os programas de televisão. A chamada música 'Pimba', em grande medida, tem uma função de complacência. E se por acaso decidirmos pensar no lado machista ou sexista que muitas famílias de rappers têm, incrivelmente ofensivas para a condição feminina, nós encontramos exatamente isso também nesses estilos complacentes de música, e que passam em todo o lado, com aqueles joguinhos de palavras, completamente sexistas, de que muitas mulheres são portadoras também".
"Grande parte da introdução à literatura e à escrita nasce com as tentativas de fazer rap", enfatiza Rui Correia, sem nunca perder de vista "a urgência social que existe da disrupção. Não houve nada mais disruptivo que o movimento punk, e o que daí resultou foi uma renovação social e uma visão muito mais progressista da vida. Mas se formos para o Rock"n"roll foi a mesma coisa. O Miles Davis inventou cinco vezes o seu estilo no jazz".
A colagem de estigmas ou a denúncia de justiças?
Lina Oliveira é professora de português há vários anos na mesma escola secundária onde há dois anos se cantavam as rimas que incomodaram Sónia Marques. Não raras vezes, discute com os alunos o tema das letras, tão importante na música. Para ela, tal como qualquer outra das artes, "a música não é em si boa nem má. São manifestações artísticas que respondem à necessidade de criação, por um lado, e oferecem fruição estética, por outro. Todas essas manifestações estabelecem relações com o mundo, são formas de o interpretar e de intervir nele, e por isso veiculam ideias e ideais. No caso da música, temas igualmente aprazíveis do ponto de vista estritamente musical podem refletir, nas suas letras ou mesmo noutros aspetos mais específicos da arte, ideologias opostas, ser uma a denúncia de injustiças e a outra um hino à supremacia branca, por exemplo. Essa colagem de estigmas a géneros musicais, ou outras formas de arte, pode ser -- e a história diz-nos que já o foi muitas vezes -- um mecanismo, já muito antigo, de controlo, censura, e mesmo silenciamento de grupos minoritários", afirma ao DN, sugerindo exemplo como no blues, no jazz, no samba, "nas suas raízes e nas suas histórias, para perceber que a música, como manifestação cultural coletiva, e por isso com grande potencial subversivo, foi recorrentemente vista como uma ameaça à ordem social vigente e aos poderes instituídos".
É por isso que adverte para a importância de olhar com cautela para o fenómeno, a começar pelas próprias conclusões do relatório de segurança interna. "É fácil estabelecer este tipo de ligação direta entre estes géneros musicais e grupos específicos, devido aos contextos em que surgiram, especialmente o drill, muito enraizado em experiências de violência em bairros dominados por gangues, nos Estados Unidos. É um género musical que se afirma literal, que se apresenta como um reflexo não mediado da violência real de que é feito o dia a dia dos seus criadores. Ainda assim, dentro destes géneros, tendem a surgir outras vozes, como reação às posições expressas nas letras das música".
Lina Oliveira sublinha, contudo, que "não faltam exemplos de temas misóginos, por exemplo, no rap, não faltam também outros de afirmação feminista". A professora recorda, a propósito, o episódio que envolveu o rapper português Valete, há cerca de três anos, quando editou o tema "B.F.F.", em cujo em cujo videoclip surge um homem armado a ameaçar a companheira, num contexto de infidelidade amorosa: "Na altura, o vídeo gerou grande controvérsia, com tomadas de posição bastante discrepantes. Houve mesmo uma carta aberta ao artista intitulada "A violência contra as mulheres não é arte nem cultura", que dizia isso mesmo, e que este tema não era mais do que a "reprodução clara de misoginia e a banalização da violência contra as mulheres" que "não podem ser cronicamente escudadas na criação artística". Valete reagiu, ridicularizando as autoras, acusando as críticas de serem burguesas sem conhecimento da realidade das mulheres negras em Portugal, que onde algumas pessoas estavam a ver trivialização da violência contra as mulheres e sexismo gritante, ele via a representação das vidas reais que ele conhece. Em que ficamos?", questiona a professora, certa de que "este exemplo ilustra bem a complexidade inerente à discussão sobre se um objeto de arte, neste caso a música, como parte do problema ou parte da solução na luta contra as injustiças e a desigualdade".
Apesar de tudo, nota uma evolução nas letras, no que concerne às questões da misoginia e desigualdades. "É a arte, nesta e noutras formas, a fazer-se porta-voz de convicções individuais e coletivas, e é também a arte a responder ao exacerbar, no espaço público, político e nos media informativos, dos discursos de intolerância e ódio, num tempo em que as tecnologias permitem uma maior circulação das ideias. No entanto, há muito a fazer neste campo, também por causa dessa disponibilidade e alcance que as tecnologias permitem, e a escola é um lugar privilegiado para esse trabalho. Sem esquecer a importância da família para desde cedo fazer essa pedagogia (nos contextos familiares onde haja essa predisposição e sensibilidade), a sala de aula é o melhor sítio para pegar na própria cultura, não só a musical, das pessoas em formação que temos à nossa frente. Muitas destas ideias que referi sobre este assunto são objeto de reflexão nas minhas aulas, a propósito dos diversos temas que as obras estudadas na disciplina de Português, que leciono, propõem".
Drill, o paralelismo com as claques de futebol
A psicóloga e jurista Ana Luísa Conduto tem vindo a interessar-se pelo tema, paulatinamente. "É sempre importante não generalizar, porque nem todos têm mensagens agressivas", afirma ao DN, ela que reconhece noutros géneros musicais mensagens sexistas ou agressivas, "mas que não desenvolvem o mesmo que o drill, por exemplo, o objetivo de criar uma união. No fundo podemos comparar com os hinos das claques de futebol. Ou seja, não é só a mensagem que passa, mas é também a questão da identidade de grupo, em que muitas vezes são passados recados, ameaças". De resto, a psicóloga destaca a diferença entre "aquele hip-hop reivindicativo, com uma intervenção social e política, e o que se passa com alguns grupos, que estão a recorrer à música como forma de união, muito idêntico ao radicalismo que se vive nalgumas claques de futebol". E para combater o fenómeno é preciso compreendê-lo primeiro. Por isso, Ana Luísa Conduto acredita que só chegando muito perto se consegue. "É preciso ir aos concertos, e perceber estes jovens". Ela, que trabalhou durante muito tempo em bairros sociais, considera que a origem é sempre a mesma: "Estes jovens sentem-se abandonados, desprotegidos. E por isso a questão da pertenção, que é tão importante em qualquer jovem, nestes, que não têm por trás uma estrutura familiar mais coesa, com mais disponibilidade e com mais capacidade também [por vezes as pessoas não estão não é porque não queiram estar com os filhos, é porque trabalham desde as cinco da manhã às nove da noite]. Por vezes nessas idades e nestes bairros é difícil responder à pergunta "quem sou eu?", "quem é o meu grupo, a minha tribo?", e como esses grupos acabam por lhes oferecer proteção, é por isso que têm seguidores. Se formos ouvir, percebemos isso. Estamos a falar de status. E nós sabemos que o status na adolescência é importante".
dnot@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal