Onde eu estava por... Margarida Pereira Müller

Onde eu estava por... Margarida Pereira Müller

66 anos, nascida em Portalegre, licenciada em Filologia Germânica, tradutora e escritora.
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A vida era diferente. Não era melhor, nem pior. Diferente. A 25 de abril de 1974 tinha 16 anos e vivia na Amadora. Nada sabia de política. Sabia que havia a PIDE e que tínhamos de ter muito cuidado com o que se dizia. Poderia ser que algum vizinho fosse da PIDE. Era tudo o que sabia de política.

O ardina passava à nossa porta. Morávamos num 1.º andar. Ele dobrava o Diário de Notícias, dando um nó, e atirava-no-lo para a janela e nós atirávamos as moedas.

Só quando eu tinha uns 12 anos, passou a haver TV em casa. Até lá, ao sábado, os meus Pais iam à messe dos oficiais onde nós, as minhas irmãs e eu, e outras crianças víamos Lassie e Bonanza.

O leite era vendido à porta por leiteiros que traziam o leite em bilhas de metal. O leite tinha de ser fervido antes de ser bebido. Ao cimo ficava uma camada de nata que a minha mãe tirava cuidadosamente e que nós comíamos com açúcar depois de morno. As mercearias secas eram vendidas a granel; nós púnhamos num saco de papel a quantidade que queríamos, a vendedora pesava e nós pagávamos. Muita gente, porém, ficava a dever e todos os vendedores tinham um caderninho onde anotavam as compras que os fregueses levavam e que pagariam ao final do mês - às vezes não pagavam e era um grande problema para os vendedores.

Jogávamos Monopólio, em casa, com os nossos Pais. O jogo tinha sido feito por nós. O jogo original era muito caro. As minhas irmãs tinham desenhado a base e o dinheiro e o meu Pai tinha feito as casinhas com restinhos de madeira.

A minha Mãe tinha o curso Industrial da Machado de Castro e fazia as nossas roupas. Ia à Baixa ver as montras, desenhava num bloquinho de notas os vestidos que a atraíam e depois fazia-os em casa. Andávamos sempre na moda, só que feita pela nossa Mãe. Tive a minha primeira roupa de loja, o pronto a vestir como se chamava, aos 12 anos: uns shorts comprados nos Porfírios.

Para ir à Missa tínhamos de usar véu. Quando era mais pequena a Missa era dita em Latim com o padre virado de costas para o povo. Mais tarde, a Missa passou a ser em Português e o padre estava virado para nós.

Aos 9 anos tinha entrado no Instituto de Odivelas (IO), um colégio interno para filhas de militares. A diretora era conservadora, leal ao regime. O presidente Américo Tomás, sempre acompanhado pela mulher, Gertrudes, e pela filha, Natália, ia duas vezes por ano ao colégio: no aniversário do IO, a 14 de Janeiro, e na Abertura Solene das aulas, onde entregava os prémios às alunas com as melhoras notas no ano anterior - as melhores notas nas disciplinas curriculares e também em Comportamento e em Arranjo.

Por outro lado, a diretora tinha ideias algo até avançadas para a época. Nós éramos educadas para sermos fadas do lar, mas também para sermos boas profissionais. Só tínhamos professoras, algumas até um pouco revolucionárias. Lembro-me da professora de Arte de Dizer, a atriz Manuela Machado, que organizava os concertos Pro-Arte. Um dia, levou ao colégio o ator Norberto Barroca. Ambos fizeram um recital de poesia nada convencional que deixou a direção algo perturbada. Não me lembro que poemas recitaram, mas apercebemo-nos de que a direção não tinha ficado nada satisfeita.

As estradas eram péssimas. De Lisboa ao Alentejo demoravam-se umas 5-6 horas e ao Algarve 7 horas. Os carros não tinham aquecimento. No Inverno, a minha Mãe viajava com uma borracha de água quente nos pés e com uma manta nas pernas.

A vida era diferente. Mas tenho recordações de uma infância e adolescência no seio duma família feliz.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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