"O ministro da Saúde não tem autonomia e as Finanças não sabem o que é ter uma pessoa na urgência" 

A falta de estabilidade nas políticas é um dos problemas do país para a ex-ministra da Saúde. Aponta o dedo aos ministros seguintes que desfizeram o que ergueu no setor e diz que "o novo Estatuto do SNS tem de ser alterado e tem erros".

Foi presidente do PS, deputada, candidata à Presidência da República, trabalhou no governo com Maria de Lourdes Pintassilgo, mas quando se fala publicamente em Maria de Belém é da antiga ministra da Saúde que nos recordamos. Numa altura em que a saúde passa outra vez por alterações estruturais depois da criação da função do diretor executivo, a antiga responsável da pasta analisa o Serviço Nacional de Saúde (SNS) que, atualmente, não está a conseguir dar resposta a todas as necessidades.

Esteve como ministra durante quatro anos, entrou em 1995, há quase 30 anos e tentou já nessa altura fazer uma reforma do SNS. 30 anos depois como é que olha para o estado do SNS?
30 anos depois, olho para o estado do SNS como sendo um estado que decorre de não se terem dado os passos certos em devida altura. Se bem se recordam, na altura em que estive no Ministério da Saúde, havia duas prioridades estratégicas no governo. Uma delas a luta contra a pobreza e a outra a educação. Aliás, é nessa altura que se investe muito no ensino pré-escolar, precisamente porque já havia evidência de que as crianças que frequentam o pré-escolar depois têm mais sucesso no seu percurso de escolaridade. A saúde não era uma prioridade estratégica e muitas vezes os vossos colegas me perguntavam "então, mas se não é prioridade estratégica, porque é que aceitou?" E eu disse "porque lutar contra a pobreza e investir na educação a prazo é ótimo para a saúde. Como bem disseram, não tinha o financiamento adequado para levar a cabo de repente um conjunto de reformas estruturais, aliás também é muito complicado fazê-lo na saúde porque é uma área que além de extraordinariamente complexa é preciso envolver todos os atores, o que obviamente exige tempo. Mas investi muito em experiências inovadoras que avaliadas foram todas consideradas ótimas. Só que eu saí e acabou tudo. E uma das coisas que me incomoda muito que tenha acabado foi a rede das escolas saudáveis. Porque com a rede das escolas saudáveis, que foi feita com o ministro da Educação Eduardo Marçal Grilo, imagino a situação hoje, quase 30 anos depois de ter tido esse investimento nas escolas junto das crianças. Porque a lógica era investir na literacia em saúde junto dos mais jovens, porque tinha dado bom resultado o investimento que se fez relativamente à proteção do ambiente. Quando entrei para o ministério havia cinco, seis escolas promotoras de saúde, quando saí existiam mais de mil e um programa fantástico entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação. Depois, obviamente, há outras coisas que foram muito importantes e uma delas foi uma articulação muito sustentada e muito bem vivida pelas duas áreas de saúde e segurança social, porque são duas áreas irmãs. Nós não podemos separá-las em termos de governação sob o mesmo chapéu, mas evidentemente que além dos chapéus está aquilo que precisam as pessoas. Eu dei-me muito bem com o Ferro Rodrigues, tinha também uma visão muito esclarecida sobre a problemática, fizemos uma série de coisas que considero que foram importantes, desde a simplificação dos atestados médicos e simultaneamente também o combate à fraude nessa área. Também a identificação dos critérios daquilo que era a responsabilidade da saúde e da segurança social para a construção da rede de cuidados paliativos, cuidados continuados, ninguém fala destes temas, mas são importantes em termos locais, porque tem de haver um grande entrosamento entre a saúde e a segurança social. Referir também as experiências dos projetos alfa que deram origem às unidades familiares tipo B. Foi nessa época que se investiu e foi aprovado um regime remuneratório experimental associado ao mérito e muitas outras coisas como as unidades locais de saúde, de um projeto de gestão inovadora no Hospital da Feira que permitia, por exemplo, que nas urgências trabalhassem articuladamente o hospital e os centros de saúde da área. Ou seja, a questão das pulseiras verdes e amarelas não se punha. Aliás, agora colocou-se em concretização um projeto dessa natureza precisamente para aliviar a urgência hospitalar daquilo que não é da sua competência e construiu-se pela primeira vez as agências de contratualização para que o orçamento deixasse de ser o histórico. Eu não posso ter remunerações por mérito se não avaliar quem é que merece. E outra coisa também muito importante, e que às vezes vos passa despercebido, é o seguinte: tínhamos um modelo de reforma dos cuidados de saúde primários através dos projetos de alfa que depois iriam evoluir e tínhamos para os hospitais os centros de responsabilidade integrada que também permitiam remunerações com base no mérito. Um centro de responsabilidade integrado tinha uma direção que contratualizava com a administração do hospital e depois fazia uma gestão inteligente das remunerações das pessoas. O que é que se passa atualmente? Temos nos cuidados primários duas realidades: os médicos e os profissionais de saúde que estão integrados em unidades de saúde familiar modelo B recebem em função do desempenho e, portanto, há uma desigualdade enorme e injusta entre os profissionais de saúde que praticam o mesmo tipo de atos.

"Se a pessoa [médico] não tem um estímulo, não tem objetivos, não tem coisa nenhuma, fica muito incomodada."

Ou seja, é um fator para não retenção também desses médicos nos hospitais?
Com certeza, se a pessoa não tem um estímulo, não tem objetivos, não tem coisa nenhuma, fica muito incomodada.

Dessas primeiras palavras que disse, posso deduzir que tem alguma mágoa ainda por não ter continuado no ministério?
Não tenho nada mágoa por não continuar no ministério, porque não pedi para ser ministra e o meu objetivo de vida não foi ser ministra. Agora, se estou ministra é para fazer coisas e as coisas devem ser continuadas.

Mas depois passou a ministra da Igualdade, houve um ponto de rutura nessa altura.
Não, não houve rutura nenhuma.

Mas deixou de ser ministra da Saúde e passou a ser ministra da Igualdade.
Sim, mas isso não é uma rutura. Não há ninguém que tenha mais sensibilidade para as questões da igualdade do que alguém que percebe que a desigualdade mata.

Está a dar uma resposta política.
Não é política, é verdadeira.

"Sou absolutamente crítica em relação à falta de estabilidade nas políticas, porque repare, se eu invisto num determinado sentido, se esse sentido é sufragado pelo governo e depois pela Assembleia da República, se estou sempre a desfazer o que os outros deixaram feito..."

No segundo governo de António Guterres não continua na mesma pasta e na altura houve até polémica política com isso, mas a minha questão não era reavivar a polémica, era perguntar se sente que deixou alguma coisa por fazer?
Com certeza, sou absolutamente crítica em relação à falta de estabilidade nas políticas, porque repare, se eu invisto num determinado sentido, se esse sentido é sufragado pelo governo e depois pela Assembleia da República, se estou sempre a desfazer o que os outros deixaram feito...

E foi isso que aconteceu consigo?
Aconteceu comigo e com vários outros ministros

E esse é um dos grandes problemas da falta de reforma do SNS?
Esse é um dos grandes problemas no nosso país. Porque quem entra, como é evidente, tem as suas ideias e tem o direito de deixar a sua marca, mas deixar a sua marca pela positiva e não pelo que desfez. Isso é que eu acho que é importante. Eu aproveitei tudo o que os meus antecessores tinham deixado em ação.

E acha que o seu trabalho foi desfeito?
Em muitas áreas foi desfeito. Já lhe dei o exemplo das escolas saudáveis ou das escolas promotoras da saúde. Já lhe dei o exemplo de todas as experiências inovadoras que ficaram completamente paradas e sobretudo ter-se retirado todos os instrumentos que as identificavam de alguma maneira e que eram indispensáveis para que produzissem o seu sentido. Uma coisa que por acaso não acabou, mas que foi desvirtuada, foi a tal contratualização dos investimentos, porque não posso ter essa contratualização em função de objetivos se não lhe acrescentar uma capacidade de avaliação da qualidade clínica, daquilo que é feito clínica e humanamente. E depois com certeza que há todo um conjunto de outros aspetos que são essenciais, como garantir a paz social e as pessoas saberem para onde se caminha e esta foi a primeira vez em que existiu um planeamento estratégico.

O que é que aconteceu depois?
O que aconteceu depois foi que continuaram os planos de ação de saúde, mas entregues à Direção-Geral da Saúde, meu tempo o plano estratégico era conduzido pelo próprio ministro e pelas pessoas com quem fazia equipa. Muitas vezes a seguir se fizeram coisas soltas e nós precisamos de saber qual é a política de saúde, qual é a missão do SNS.

E continuamos sem saber qual é a política de saúde?
Não, quer dizer, já passaram pelo ministério muitas pessoas que sabiam o que tinham de fazer. Umas com mais dificuldade do que outras porque passamos a vida em crise, saltamos de crise em crise. Mas, como é evidente, quando há alguém que percebe do assunto, que sabe para onde vai e onde quer ir, normalmente acaba por mudar de função e isso leva também a que haja rutura na continuidade das políticas.

"Há uma sociedade, uma forma de comportamento global em que os cidadãos muitas vezes não exigem porque também não estão capacitados e os próprios governos estão sempre muito preocupados com o acontecimento do dia e não pensam a prazo."

Se pudéssemos resumir numa frase, posso deduzir da sua opinião que a responsabilidade do atual estado do Serviço Nacional de Saúde é uma responsabilidade iminentemente política dos ministros da Saúde e dos primeiros-ministros desde 1995?
Não, não pode retirar isso das minhas palavras. Porque como há muitas pessoas que intervêm nestas coisas, há uma responsabilidade global partilhada. Eu também posso dizer que há dos cidadãos, porque nós não temos o hábito de exercer os nossos deveres de cidadania, que é questionar porque é que determinadas coisas não são feitas em um determinado sentido. Portanto, há aqui uma sociedade, uma forma de comportamento global em que os cidadãos muitas vezes não exigem porque também não estão capacitados e os próprios governos estão sempre muito preocupados com o acontecimento do dia e não pensam a prazo. E há áreas em que é essencial, evidentemente, tomar conta das questões do dia, mas é fundamental pensarmos para onde é que vamos, para onde é que queremos ir e envolver as pessoas com esse objetivo.

E hoje neste governo continua a faltar essa visão de longo prazo daquilo que a saúde deverá ser no futuro?
Não, repare, eu já disse isto uma vez numa entrevista que dei, porque quando saí do Ministério da Saúde deixei um plano de formação de recursos humanos, porque é evidente que temos os mapas com a idade das pessoas, sabemos as especialidades que temos, sabemos e sabíamos que o país ia envelhecer e, portanto, há todo um conjunto de medidas que têm de se tomar. Se um médico nas especialidades que demoram mais tempo a alcançar demora hoje, talvez, menos um ano do que antes, mas na altura demorava cerca de 14 anos, eu tenho de programar isto a prazo. Tenho de programar, isto é, tenho o meu plano de integração de especialistas no ano 2023, mas já tenho de estar a pensar no que é que vai acontecer em 2030.

E não se está a planear nesse tempo?
Agora está a planear-se, mas é preciso que haja capacidade de planeamento.

A ausência de continuidade, a ausência de planos de longo prazo e a ausência em muitos casos de investimento, porque a saúde não foi em muitos governos do PS e do PSD prioridade, posso concluir que a responsabilidade do estado atual do SNS é, sobretudo, da gestão política dos ministros e dos primeiros-ministros.
Não, é dos ministros, dos primeiros-ministros, dos parlamentos, da sociedade em geral, evidentemente e os próprios profissionais da área, quando reivindicam coisas. Porque, repare, nós temos os maiores talentos do país em termos de quantidade, não só as notas para acesso às profissões são muito exigentes, são das mais elevadas, mas temos realmente gente muito capaz, gente completamente fantástica. E, portanto, essas pessoas têm de pensar, têm de ajudar a pensar e têm de ajudar a construir aquilo que é realmente a responsabilidade do SNS. Porque o SNS não se pode estragar, porque não há ninguém que possa dispensar o SNS. Pode dispensar hoje, mas de certeza que há de acontecer alguma coisa na sua vida em que percebe a importância vital, porque é de vida e de morte que nós estamos a falar ou de vida e capacidade ou incapacidade, não é dispensável, sobretudo numa época em que nós temos cada vez mais inovação à disposição das pessoas e a inovação transforma normalmente doenças fatais em doenças crónicas ou até as cura. Nós temos indicadores de saúde que comparam muito bem com os outros países em quase todos os domínios. Onde é que nós não comparamos bem? Nos anos de vida saudáveis depois dos 65 anos, em que temos uma diferença relativamente aos países nórdicos, que são aqueles com quem nos comparamos e por vezes até temos desempenho melhor, por exemplo, na mortalidade infantil ou na esperança de vida. Agora, o que nós temos é gente que vive muitos anos, mas muitos anos com doença e se não apostarmos na promoção da saúde, vamos estar sempre a ter de tratar doenças evitáveis, doenças que poderiam não acontecer e depois, obviamente, os recursos não são ilimitados, sobretudo num país como o nosso, que tem tantos problemas.

Vamos também falar de um outro assunto muito importante para a saúde, que é este novo estatuto do SNS. Acredita que vai ser mesmo implementado? Tem havido uma grande discussão acerca dele e se não seria necessário também ir mais rápido na implementação desse estatuto? Qual é a sua análise?

A minha análise é a seguinte, criou-se a função de direção executiva e até lhe chamavam CEO, mas alguém concebe um CEO que não tem nenhum controlo nem sobre o planeamento, designadamente recursos humanos, nem sobre o planeamento do investimento, nem sobre orientação de recursos financeiros para fazer acontecer as coisas. Portanto, desde o princípio, considero que aquele estatuto tem de ser alterado, o que implicará naturalmente uma alteração da orgânica do Ministério da Saúde, além de ter erros, a meu entender, que não são adequados.

Mas esta função é boa ou má para reorganizar o serviço?
Pode ser boa e a pessoa que lá está neste momento é fantástica e tem um conjunto de qualidades que aprecio: inteligência, humildade, conhecimento e obra feita que pode ser avaliada.

Mas depois não tem os instrumentos de que falou?
Não tem os instrumentos, e não tenho a certeza, mas penso que nem o próprio quadro de pessoal que deve dar suporte, porque não posso ter uma cabeça de cinco pessoas sozinhas para tomarem conta de uma estrutura com a dimensão e a complexidade do Serviço Nacional de Saúde.

E acha que vai haver coragem para alterar esse estatuto, uma vez que diz que é importante alterar?
Uma coisa é a função do SNS outra coisa é o estatuto do SNS, são coisas diferentes e uma coisa não está ligada à outra e obviamente que tem de estar. O que eu estava a falar é se acha que cinco pessoas sozinhas que tomaram posse há quase três meses podem estar sem um quadro de pessoal ainda aprovado. E aquilo que eu leio é que ainda há uma grande instabilidade porque com a questão da delegação de competências nas autarquias. Mas, por exemplo, quando na agricultura se diz as pessoas vão para as CCDR ou relativamente às administrações regionais de saúde, elas vão para as CCDR e aí fazerem a estratégia, digam lá como é que vamos ter pessoas a desenhar a estratégia quando estão fora daquilo que é uma área destas, que é considerada a área mais complexa de todas aquelas que há para governar.

"Se houve pessoa com provas dadas, como secretário de estado, é precisamente Fernando Araújo. Ele promoveu um conjunto de atitudes e defesas e mesmo de relações internacionais no âmbito da OMS."

O diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, diz que é preciso, vou citar, "governar para os utentes e acima de tudo para o futuro do SNS e para as próximas gerações". Nós já ouvimos isto antes, dito de outra maneira, por outros ministros e outros responsáveis. Mas o doente não devia estar no centro da decisão política? E, portanto, essas questões deviam estar resolvidas a montante para que nos pudéssemos concentrar no doente que é o mais importante?
E o mais importante nem é o doente, é a pessoa. Porque o SNS também tem de se concentrar na pessoa para evitar que seja um doente. E se houve pessoa com provas dadas, como secretário de Estado na governação do ministro Adalberto Campos Fernandes, é precisamente Fernando Araújo. Ele promoveu um conjunto de atitudes e defesas e mesmo de relações internacionais no âmbito da Organização Mundial de Saúde, no sentido daquilo que são os avanços e a doutrina que a Organização Mundial de Saúde vai elaborando, que levaram a que, por exemplo, o plano de atividade física a nível mundial tivesse sido apresentado em Portugal. Ninguém deu conta disso. Olhe, da mesma maneira que aqui ninguém deu conta que eu por acaso fui eleita presidente da Assembleia Mundial de Saúde por causa das reformas que estava a empreender no sistema de saúde. Isso só me provocou invejas, não provocou nenhum elogio, vossas excelências andam sempre muito distraídos daquilo que é importante, porque gostam muito das tricas do dia a dia. Eu não ligo nenhuma às tricas, digo aquilo que acho, aquilo que é a minha opinião, que é a minha ideia e acho que é a forma que devo ter com todas as oportunidades que a vida me deu e com o que conheço deste setor, que tenho todo o dever de contribuir para com os diagnósticos que faço e também ajudar a que as coisas melhorem. Agora há uma coisa, que vossas excelências também não estão...

Nós não somos deputados, não é preciso excelências.
Somos todas excelências, todos temos a mesma dignidade. Eu não sou muito formal, nunca quis, aliás, a primeira instrução que dei quando cheguei ao gabinete e tomei posse foi "ninguém me trata por ministra, porque estou aqui e vou deixar de estar". Mas estava eu a dizer que é muito importante que nós consigamos ver porque é que determinadas coisas acontecem. O que é que se passa hoje e que não é possível resolver em três meses nem num ano. Se eu tenho falta de especialidades em áreas críticas e se demoro não sei quantos anos a formar estes especialistas não vou resolver o problema em meia dúzia de meses. Portanto, esta pressão que tem agora de ser tudo resolvido não se consegue. Já alguém, por exemplo, questionou porque é que nós neste momento temos esta pressão tão grande sobre os serviços de saúde. Ela deve-se fundamentalmente a dois fatores, um deles o envelhecimento com multimorbilidade, a tal falta de qualidade de vida nos anos que se vive depois dos 65 anos. E o que é que determinou a paragem do atendimento das pessoas durante a pandemia? Com certeza que ouviram os milhares de consultas que deixaram de ser feitas, os milhares de meios auxiliares, os milhões de meios auxiliares de diagnóstico que deixaram de ser feitos. Pronto, isto agora está tudo a cair.

Como é que se recupera o atraso de forma mais célere?
Obviamente tem de haver um plano para o fazer.

E não está a haver esse plano?

Não é isso. Tem de haver um plano para o fazer. E eu também devo dizer que uma enorme diferença em relação à época em que eu estive como ministra e à época atual é que o ministro da Saúde praticamente não tem autonomia nenhuma. O ministro da Saúde não tem autonomia para contratar alguém para substituir, por exemplo, uma baixa por maternidade. Acha normal?

O que está a dizer é que as decisões vão todas ao Ministro das Finanças?
O que estou a dizer é que atualmente vai praticamente tudo ao Ministério das Finanças. Portanto, eu em vez de estar a simplificar processos, atribuo um orçamento ao Ministério da Saúde, não é verdade? E aquilo que eu devo ter é instrumentos para o acompanhar muito de perto, para tentar evitar os desvios ou quando eu os identifico ver se consigo atalhar, se há razão justificativa ou se consigo atalhar. Não posso estar a somar degraus de burocracia. Porquê? Porque as finanças não percebem o que é ter uma pessoa na urgência com uma fratura exposta e ter de a atender. Não sabem. Lidam com papéis, lidam com números e repare nas ineficiências que isto gera. Eu, na saúde, funciono por equipa, não posso ter uma equipa inteira, que é o mais caro, parada porque me falta o elemento que menos custa. Acha normal? Isto gera ineficiências brutais. Portanto, mais autonomia e mais responsabilidade.

O regresso de algumas PPP na saúde, na sua opinião, faria sentido?

O que faz sentido é que os hospitais públicos funcionem também na articulação entre os vários tipos de cuidados, têm de ter os mesmos instrumentos dos PPP. Porque é que as PPP deram um bom resultado?

Mas na sua opinião deram um bom resultado?
Com certeza que deram um bom resultado em termos de eficiência.

E terminaram por uma razão ideológica?
É meu entender que terminaram fundamentalmente por uma razão ideológica.

Foi a fatura da geringonça?
Pode ter sido a fatura da geringonça, não faço a mínima ideia pois não estive nos núcleos onde isso se discutiu. Com certeza que as PPP deram muita discussão do ponto de vista ideológico e quando surgiram eram importantes para demonstrar que com outros instrumentos podemos fazer muito melhor. Agora, as PPP podiam não ter a responsabilidade que têm os hospitais públicos. Porquê? Porque o contrato da PPP estabelecia determinados níveis de produção. Quando ultrapassassem esses níveis de produção podiam ter multas, ao passo que os hospitais públicos não podem fechar. Se aparecerem mais pessoas, têm que as trata, porque senão troco uma irregularidade administrativa por um comportamento que pode prefigurar um crime, que é não prestar assistência a uma pessoa que tem necessidade dela. Portanto, há aqui diferenças, não vamos confundir as coisas. Agora, o que eu defendo é parcerias públicas-públicas, ou seja, os mesmos instrumentos para o Estado.

Portanto, trazer o modelo das PPP privadas para o Estado?
Se estes instrumentos burocráticos que tenho no Estado, de complicação sobre complicação não dão resultado, porque é que continuo a insistir na mesma receita?

Precisamos de um simplex para a saúde para agilizar todo este processo e para tudo o que está a correr mal nesta gestão dos hospitais?
Com certeza que precisamos de um simplex, mas precisamos de mais coisas. Nós precisamos, por exemplo, de articular com a segurança social nos hospitais.

Porque é que isso não está a acontecer, na sua opinião?
Não faço a mínima ideia, no meu tempo acontecia muito bem. Eu e o ministro Ferro Rodrigues íamos resolvendo os problemas. Agora temos o PRR, que vai fazer investimentos para termos unidades de cuidados continuados e aumenta em bastante as vagas ou pode até identificar outras respostas. Porque acho que pôr as pessoas todas em estereótipos analisadas é um disparate, nós temos de partir para respostas mais leves, mais cuidados domiciliários. Agora, realmente, têm os dois ministérios que se entender e articular, porque as suas capacidades são muito diferentes do ponto de vista da elasticidade orçamental. Porque, repare, enquanto a saúde funciona com o orçamento que lhe é atribuído na discussão que se faz entre todos os ministérios sobre cada um, a segurança social cada vez que aumenta o salário mínimo recebe mais receitas. De cada vez que a economia sobe também recebe mais receitas, de cada vez que os salários das pessoas são aumentados recebe mais receitas e, portanto, tem realmente uma capacidade e tem depois as transferências que o orçamento lhe faz de acordo com fórmulas para, digamos, compensar todas as prestações não contributivas às quais não corresponderam os descontos por parte das pessoas. Aquilo que defendo é um sistema que obviamente deve privilegiar a pessoa, o seu conforto, a humanização com que é tratada. Pois com certeza que se as pessoas estão lá - em macas nos corredores - ou já tiveram alta e não podem ir para as suas casas porque não têm condições ou não têm famílias que tomem conta delas tenho de as pôr num sítio que não seja o hospital, senão estou a engarrafar a ida dessas pessoas para os internamentos.

Portanto, são precisas unidades de acolhimento que retirem essas pessoas dos hospitais e que possam acautelar esse serviço?
Sim, até porque não é só por causa disso, é que a partir do momento em que tenho alta, há determinados riscos para estar num hospital que tenho de aceitar porque é a única solução para o estado de doença que eu tenho, digamos assim. A partir do momento em que não preciso de lá estar, corro risco de infeção hospitalar, por exemplo. E o risco de infeção hospitalar, além de ser muito elevado e ter uma taxa elevada de mortalidade, é caríssimo a tratar. Agora, há uma outra coisa: um trabalho coletivo importantíssimo que a Fundação Calouste Gulbenkian levou à Assembleia da República para realmente garantir o apoio de todos os deputados às orientações que ali estavam. E se falar neste relatório já ninguém se lembra dele. Portanto, nós fazemos esforço de reflexão, esforço de melhoria, os diagnósticos estão mais que feitos e sabemos que precisamos de articulação de cuidados, de um plano de saúde com mais proximidade, que precisamos de fazer articulação entre as várias áreas da governação.

Mas os diagnósticos estão feitos e os mais críticos dizem que nem Manuel Pizarro, nem o CEO do SNS estão a conseguir fazer as reformas necessárias. O que é que está realmente a faltar?
Há uma coisa que é assim, pode estar a funcionar, mas tem de ter instrumentos e sobretudo não pode acontecer de repente também porque as coisas aqui demoram muito tempo. Por isso é que a continuidade das políticas é absolutamente essencial.

"O que é que mais me dói? É que o SNS não é uma questão ideológica, como dizia Arnaut. O SNS é uma questão de direitos humanos e não há democracia que se possa chamar como tal que não respeite os direitos humanos."

Nos últimos 21 anos o seu partido, o Partido Socialista, governou 14 anos. Tem muita responsabilidade no que aconteceu no SNS?

Se quer que diga que o partido que governou tem responsabilidade sobre aquilo que aconteceu, evidentemente que não posso dizer que não tem responsabilidade nenhuma, mas vou buscar as palavras do António Arnaut, que antes de morrer fez o apelo para que o SNS fosse salvaguardado. O que é que mais me dói? É que o SNS não é uma questão ideológica, como dizia Arnaut. O SNS é uma questão de direitos humanos e não há democracia que se possa chamar como tal que não respeite os direitos humanos. E realmente o direito à proteção da saúde é aquilo que nos permite mais gozar de todos os outros direitos fundamentais, não é? Aliás, um grande prémio Nobel da economia, o Angus Deaton, disse que a grande revolução que nós tivemos nos últimos anos foi precisamente o progresso que a saúde teve. E nós temos tido progresso hoje, mas queremos é mais, é isso que eu também quero, quero mais. E quero aquilo que lhe disse, quero realmente que os instrumentos que provaram bem sejam aplicados no público, na gestão pública, porque se eu identifico uma coisa como sendo absolutamente ineficaz, como desagradável para as pessoas, instrumentalizadora das pessoas, em vez de servir as pessoas, é evidente que tenho de mudar.

Se voltasse a ser ministra da Saúde hoje, qual seria a primeira decisão?
Reunir a equipa que tive, porque nunca houve equipa junta com tão grande qualidade. E, entretanto, como conheci pessoas fantásticas, convidava-as para integrarem a equipa também. Isto é um trabalho coletivo, não há nenhum ministro que faça nada sozinho. E por outro lado, como conheci muito bem a máquina da saúde, sei que é absolutamente indispensável atuar de uma determinada forma. Uma pessoa, a partir do momento em que vai para o governo, deve rodear-se das pessoas mais competentes que conhece independentemente do seu posicionamento ideológico. A única coisa que exigi sempre foi lealdade porque detesto subservientes, os subservientes são muito perigosos e passo a vida a dizer isto porque às vezes há uma tentação enorme para aquelas pessoas que nos vêm fazer vénias a partir do momento em que nós temos um determinado lugar e para mim ficam logo catalogados. Eu gosto das pessoas que se davam bem comigo, independentemente do lugar que eu tinha, que são trabalhadoras, que são competentes e que têm também de ser respeitadas. Portanto, conhecia muito bem a máquina do ministério, tive uma equipa excelente. Atualmente o que é que nós vemos? Uma grande divisão entre as máquinas que existem e aquilo que são depois os gabinetes, com gente cada vez mais nova que não conhece a história das coisas, não conhece as especificidades dos setores. Portanto, os políticos não estão a conseguir comunicar com a máquina, mas isto não acontece com a atual equipa, porque a atual equipa conhece a máquina. Olhe, depois tive uma coisa fantástica, porque tivemos pessoas muito generosas. O professor Walter Osvaldo esteve à frente da Comissão de Humanização da Saúde, de forma absolutamente voluntária, com um grupo de gente excecional, e andava por Portugal inteiro a identificar os bons projetos e a distinguir as pessoas e dando-lhes um prémio que permitia, de certa forma, colmatar algumas lacunas. E, portanto, temos gente fantástica, temos gente muito interessante. Agora há uma coisa que nós também temos muito que fazer que é captar os talentos. E fico doente quando dou com histórias, como ainda há poucos anos com um neurocirurgião brilhante, um jovem talentoso que teve sempre 20 ao longo da carreira de neurocirurgião e que quando acabou a especialidade e queria ficar no hospital onde completou a especialidade disseram-lhe assim "agora só tens um tempo operatório por mês". Um tempo? Agora imagine, se eu dissesse ao Ronaldo "só podes jogar um bocadinho, umas horinhas por mês"? Foi embora, está em Londres onde já está a fazer coisas fabulosas. Não podemos perder talento, não podemos ficar apenas com as pessoas que acabam por se acomodar, porque corremos o risco de ficar medíocres. Isto deixou-me doente.

Não fique doente, porque não sei se o SNS dá resposta.
O SNS está disponível. Porque, reparem, só é notícia o que corre mal, mas todos os dias há gente a fazer coisas fabulosas no SNS, mas só chegam cá as queixas. Se forem ler os elogios, há gente fantástica. Também é outro princípio de vida para mim, porque como em todas as áreas, há gente que presta, há gente que não presta e há gente que vai muito para além daquilo que seria expectável prestar. Os que não prestam continuam a não prestar e os que prestam são fantásticos, mas ficam completamente desmotivados e numa máquina com 150 mil pessoas eu tenho de ter toda a gente muito motivada, tenho de estar ao lado deles, tenho de os impulsionar, tenho de os agarrar, de outra maneira não chego lá.

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