"Num sistema complexo não se pode tocar uma nota de cada vez"

Se o Serviço Nacional de Saúde fosse uma orquestra dir-se-ia que o maestro tem a responsabilidade de manter o conjunto afinado, mas garantindo que cada membro toca a nota correta e com a intensidade necessária para que o resultado seja harmonioso. Uma metáfora que apela à descentralização, à autonomia, e à construção de soluções locais.

O sistema de saúde em Portugal precisa de uma abordagem sistémica. A opinião é de Constantino Sakellarides, que defende que "temos que ser capazes de olhar para o sistema no seu conjunto e de tocar as notas todas ao mesmo tempo, não com a mesma intensidade, mas conseguir abarcar tudo". A metáfora, como se de uma orquestra se tratasse, espelha a complexidade do sistema, que não pode ser ignorada, mas que, diz o professor catedrático jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, "tem que dar autonomia, de descentralizar e de permitir que sejam construídas soluções locais". O também antigo diretor-geral da Saúde, entre 1997 e 1999, acredita, contudo, que esta transição que parte de um sistema centralizado, com tendência burocrática de poder e controlo, está em curso, apesar da sua complexidade e do "arranque longo e difícil". Para fazê-lo defende a necessidade de uma governação capaz de fazer análise sistémica, e de um dispositivo de análise, direção e planeamento estratégico que permita olhar em conjunto para as várias "peças" do sistema, e encontrar a melhor forma entre essas interações.

Há 26 anos, quando assumiu o comando da Direção-Geral da Saúde (DGS), a sua missão era construir um sistema que cumprisse com os pressupostos do SNS, criado duas décadas antes. E, explica "para um sistema centralizado, construir é bom, porque avança-se com recursos e equipamentos, mas quando é para qualificar essa centralização já não funciona". Já na altura, recorda, "precisámos de transformar os centros de saúde - esses edifícios que pareciam inacessíveis - num conjunto de unidades funcionais, que tivessem autonomia suficiente para garantir respostas às necessidades sociais, que fossem utilizados e não comandados à distância".

Na mesma altura, foi igualmente "necessário introduzir uma grande montra de qualidade no desenvolvimento da medicina, com as chamadas normas clínicas. E isso também foi na DGS que se desenvolveu", complementa Francisco George. No entanto, concorda que no caminho da descentralização pouco se avançou. No fundo, salienta, "o país continua confrontado com problemas que são os mesmos de há dez anos".

Para o ex-diretor-geral da Saúde e presidente da Sociedade Portuguesa de Saúde Pública, "há aqui uma questão mais ligada às políticas públicas de todos os setores, sobretudo da economia, mas também da fiscalidade e das finanças". No fundo, reforça, um problema de contrato social, de construção do Estado Social, que não envolve apenas o SNS, mas também outros setores públicos, nomeadamente a educação e a justiça. "Tudo aquilo que é insubstituível num Estado Social tem agora problemas que não eram predominantes no nosso tempo. Há aqui um fenómeno novo que tem a ver com outros riscos como, por exemplo, pôr em risco a confiança na prosperidade". Um problema que é, na sua opinião, "iminentemente político, governamental e dos órgãos de soberania. É preciso que pensem estes problemas de forma diferente e que haja um esforço para reganhar a população, e a sua confiança, para este combate da prosperidade e do desenvolvimento".

Garantir o acesso aos SNS, com profissionais motivados

O SNS tem, na perspetiva de Constantino Sakellarides, dois problemas básicos cuja resposta depende de olhar para o sistema como um todo. Por um lado, o acesso aos cuidados de saúde que, na sua opinião, não está a ser feito da forma como os cidadãos precisavam e, por outro, a dificuldade do setor público em reter os seus profissionais.

"Se não descentralizarmos os cuidados, criarmos condições atraentes para os profissionais e formos capazes de remunerar em função do desempenho, nem conseguimos oferecer acesso, nem conseguimos reter profissionais", defende. Contudo, para descentralizar e criar uma economia local mais confortável e realista será necessário um acordo entre os prestadores e quem financia, em termos de desempenho e resultados.

"A contratualização não pode ser anual, é um ciclo muito curto, tem de ser plurianual, atempada e de proximidade. Não pode ser burocrática e baseada em papéis que vão e voltam", reforça o professor, que questiona: "Onde está na administração pública esse dispositivo de análise, planeamento e ação estratégica? Não está porque na nossa administração pública, se não for alterada, estamos todos na primeira linha a resolver os problemas imediatos, mas não está ninguém numa segunda linha a pensar nos problemas à distância". Uma opinião partilhada por Francisco George que defende que "o futuro não pode ser gerido no imediato e aquilo que hoje se faz e hoje se decide não pode prejudicar o futuro. Portanto, as medidas que hoje são adotadas, antes de serem adotadas, tem de haver um trabalho de saber se forem implementadas, o que acontecerá nos próximos 20 anos".

Constantino Sakellarides e Francisco George foram os convidados do último episódio da iniciativa "Diálogos: Saúde e Futuro", promovida pelo Diário de Notícias, com o apoio da Abbvie, cujo tema foi "O Estado da Saúde em Portugal". Fecha-se um ciclo de debates iniciado há cerca de um ano, após a 10.ª Conferência "Sustentabilidade em Saúde". No próximo dia 18 de abril terá lugar a edição deste ano da iniciativa, cujo tema será, precisamente, "O Futuro do SNS". A conferência decorre no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, entre as 9h30 e as 13h00.

dnot@dn.pt

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