Mulheres, jovens e os mais pobres: as grandes vítimas da pandemia
Um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos que é apresentado esta sexta-feira, no Teatro Camões, em Lisboa, conclui que os dois anos de pandemia deixaram sequelas em todos os eixos da sociedade, mas afetando sobretudo três grandes grupos: as mulheres, os jovens e os mais pobres.
"Um novo normal? Impactos e lições de dois anos de pandemia em Portugal", foi coordenado por Nuno Monteiro e Carlos Jalali, e juntou mais de 20 investigadores, ao longo de um ano e meio.
Maria Manuela Calheiros, que integrou essa vasta equipa, extrai como maior conclusão deste estudo "o facto de termos estado não perante uma pandemia, mas uma sindemia. O que quer dizer que não foi só o sistema de saúde das pessoas que foi afetado - e mesmo dentro da saúde não foi só a questão do covid, foi o excesso de mortalidade, que é uma área que ainda não está muito estudada -, mas houve em cascata uma crise nos outros sistemas da vida das pessoas". A professora fala da vida familiar, do ensino, da saúde mental, entre tantas áreas.
Os resultados do estudo apontam para impactos de dois anos de pandemia, tratando esta crise de uma forma multidimensional. Assim, examina os efeitos sociais, económicos e políticos, demonstrando que Portugal é particularmente vulnerável aos efeitos imediatos de uma crise pandémica. "Em termos do impacto das medidas restritivas sociais (como os confinamentos) na saúde e no bem‑estar dos portugueses, destaca-se o aumento de peso (31% dos inquiridos), a redução das horas de sono (30%), o aumento do consumo de psicofármacos (9,4%), bem como do consumo de tabaco e álcool (8,1%). Estes impactos negativos afetaram sobretudo os mais jovens (menos de 30 anos) e foram mais evidentes entre as mulheres, exceto no que se refere ao consumo de tabaco e álcool", conclui o estudo.
"Os indicadores são um bocadinho feios", reconhece Maria Manuela Calheiros, aludindo à vulnerabilidade social que ilustra bem o rasto que a pandemia deixou, e por isso insiste tanto em falar de sindemia. "Ao início dizíamos muito que estávamos todos no mesmo barco, e que o covid não distinguia pessoas. Hoje sabemos que não é verdade. O nosso estudo aponta para três grandes grupos mais sacrificados: as mulheres, muito mais sacrificadas; os jovens - surpreendentemente - e depois as classes sociais mais desfavorecidas, embora nesse caso já fosse expectável. Dizemos que é uma sindemia porque alastrou à sociedade toda e a todas as áreas de vida das pessoas".
O grupo de investigadores deixa algumas recomendações, por acreditar "que as políticas públicas devem ser feitas muito à medida dos grupos e das necessidades de grupos específicos", refere Maria Manuela Calheiros. "Tem que haver muita participação das pessoas, mas também das regiões, de zonas, mas também de grupos de risco. Porque há políticas que são muito urgentes, como as questões ligadas ao ensino, nomeadamente à aprendizagem e ao desenvolvimento - este processo deixou sequelas que têm que ser recuperadas nos próximos dois anos".
"Tenho muita pena que esta ideia de sindemia ainda não esteja imbuída na sociedade e nos decisores políticos, porque tem a ver com uma visão sistémica do fenómeno", sublinha a investigadora, certa de que, enquanto isso não acontecer, não será possível olhar para os efeitos "além dos indicadores da Saúde, que ainda hoje são os que se divulgam - número de mortos e infetados -, quando já estamos noutro nível. E não nos dão indicadores de como é que a sociedade está". "A própria economia depende dos outros sub-sistemas que não estão incluídos nesta linguagem: se as pessoas tiverem problemas de saúde mental, de bem-estar com a vida, não produzem", conclui.
De acordo com o documento que hoje vem a público, os últimos dois anos reforçaram as desigualdades já existentes. Aumentaram o prémio de empregabilidade para os mais qualificados e simultaneamente penalizaram os mais jovens e os mais velhos, sobretudo aqueles com menor escolaridade e com vínculos de emprego mais instáveis. Teve também um efeito regressivo, penalizando principalmente os trabalhadores com salários mais baixos e as classes de menor rendimento.
A fatia de rendimento dos 20% mais ricos passou a ser 5,7 vezes superior à dos 20% mais pobres em 2020, quando no ano anterior era cinco vezes superior. Uma parte importante deste aumento esteve associada a situações de afastamento do mercado de trabalho, seja devido a uma situação de desemprego, seja por reforma. Cerca de 18% dos reformados estava em 2020 em risco de pobreza (uma subida de 2,3 pontos percentuais e um valor significativamente mais alto do que em anos anteriores). Cerca de 46,5% dos desempregados estavam também nesta situação, um aumento de 5,8 pontos percentuais. Segundo este estudo, o impacto social da pandemia parece também ter operado a partir de aspetos de organização familiar, visível nomeadamente no aumento do risco de pobreza em famílias monoparentais com crianças e agregados familiares com mais de dois adultos e crianças.
O nível de confiança dos portugueses nas instituições europeias aumentou durante a pandemia: cerca de 80% confiam no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia. Segundo o estudo, mais de metade dos inquiridos (56%) considerou que o Estado deve dar prioridade à saúde pública em detrimento da atividade económica/emprego (17%). Os resultados mostram também que a emergência da pandemia está associada a um agravamento da desigualdade no que diz respeito às competências dos cidadãos para a ação política (por exemplo, no que toca à obtenção de informação e ao interesse sobre política), o que penaliza os indivíduos que têm menos formação e rendimentos.
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