Investigação da PJ confirma que Danijoy morreu na prisão de "morte natural" causada por "enfarte"
Desde março de 2022 que a PJ passou a investigar todas as mortes consideradas "violentas" nas cadeias, como os suicídios. Até agora não registou nenhuma causa diferente da que tinha sido apontada pelos Serviços Prisionais. Inicialmente arquivado como "morte natural", o inquérito à morte de Danijoy Pontes, que morreu aos 23 anos, na prisão de Lisboa, foi reaberto na sequência de protestos e alegações de que teria sido assassinado.
A Polícia Judiciária (PJ) concluiu que a morte de Danijoy Pontes, de 23 anos, ocorrida a 15 de setembro de 2021 no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), foi "natural", motivada por um "enfarte", confirmando o diagnóstico inicial do Ministério Público (MP), que tinha sido contestado pela família.
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Os exames do Instituto de Medicina Legal identificaram em Danijoy uma "cardiopatia congénita", segundo fontes judiciais, certificando que a causa da morte foi um "enfarte".
Ainda não foi revelado o relatório final da investigação que poderá clarificar as dúvidas que inicialmente foram colocadas, designadamente as relacionadas com medicamentos que teriam sido encontrados no corpo, no âmbito da autópsia.
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As perícias feitas pela PJ não detetaram, ainda assim, indícios que levassem a suspeitar da intervenção de terceiros nesta morte.
Movimentos e organizações antirracistas (este cidadão era de origem são-tomense) manifestaram-se a exigir "justiça para Danijoy" e a Procuradoria-Geral da República (PGR) acabou por ordenar a reabertura do inquérito, delegando-a à 11ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, coadjuvado pela PJ, a qual nem sequer tinha sido chamada a investigar.
Este caso acabou por influenciar uma alteração aos procedimentos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e, na sequência de uma notícia do DN dando conta de que a PJ não era chamada a investigar praticamente nenhuma morte (nem sequer os suicídios, apesar de serem classificados como morte violenta) de reclusos, um despacho da então ministra da Justiça Francisca Van Dunem determinou que os Serviços Prisionais são obrigados a comunicá-las diretamente à Judiciária.
Danijoy estava preso desde agosto de 2020 e, apesar de não possuir antecedentes criminais, fora condenado a uma pena de seis anos de prisão por, durante um mês, ter roubado telemóveis em transportes públicos.
Danijoy estava preso desde agosto de 2020 e, apesar de não possuir antecedentes criminais, fora condenado a uma pena de seis anos de prisão por, durante um mês, ter roubado telemóveis em transportes públicos.
A sua família foi informada da morte quando o corpo já se encontrava no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) para autópsia. Os responsáveis do EPL comunicaram aos familiares que tinha sido encontrado morto na cela. "Na abertura da cela do falecido, onde pernoita sozinho, não se levantou da cama, ao que o guarda prisional se dirigiu ao mesmo sacudindo-o, não obtendo qualquer resposta ou reação", refere o relatório da autópsia, citado pelo Público, que noticiou o caso cerca de um mês depois.
A autópsia concluiu que a morte de Danijoy tinha sido "natural possivelmente consequente a patologia cardíaca" e neste exame póstumo foi detetada a presença de um medicamento para o tratamento da esquizofrenia.
Incongruências e coincidências
No entanto, de acordo ainda com o Público, havia incongruências no processo, a começar pelo facto de a família desconhecer que alguma vez a esquizofrenia lhe tivesse sido diagnosticada.
Acresce que um relatório do Instituto de Medicina Legal (pedido pelo tribunal dois meses antes da morte, para aferir eventuais perturbações psiquiátricas, porque Danijoy dizia que ouvia vozes quando estava detido e quando praticou os crimes) afasta doenças do foro psiquiátrico.
Outra contradição, indicada ainda por aquele jornal, foi que a autópsia referia que Danijoy confessou ter consumido cocaína, algo que não está nem na sentença nem no relatório de avaliação psicológica anterior do INML, assinado em julho. Estaria ainda a consumir metadona, segundo ficou registado no auto de notícia da PSP - uma substância utilizada como "terapêutica de substituição" no tratamento de dependentes de opiáceos (heroína e morfina) mas que também é usada como substância de abuso e comercializada para esse efeito no mercado negro.
Por decisão da procuradora de turno do Ministério Público, Alexandra Catatau (a mesma que autorizou que o cadáver de Ihor Homeniuk fosse removido da sala do SEF no aeroporto sem chamar a PJ, depois de lhe ser comunicada a morte e de um inspetor daquela polícia a alertar para o facto de o corpo estar "um bocado mal tratado"), Danijoy tinha sido retirado da cela e o processo teve proposta de arquivamento cerca de um mês depois.
A mãe afirmou ter "quase a certeza de que o filho foi assassinado", dizendo não acreditar que Danijoy, que era saudável, tivesse morrido de ataque cardíaco.
Perante tudo isto, inconformada, a sua mãe, Alice Costa, afirmou ter "quase a certeza de que o filho foi assassinado", dizendo não acreditar que Danijoy, que era saudável, tivesse morrido de ataque cardíaco. Alegou existir "uma marca bem grande na testa" do filho quando este foi para o Instituto de Medicina Legal (INMLCF) e que as suas roupas estavam "cheias de sangue".
Além disso, contou ainda que outros reclusos do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) lhe tinham comunicado que a cela onde Danijoy Pontes foi encontrado morto estava repleta de sangue.
A agravar toda a apreensão em torno deste caso, minutos antes do óbito de Danijoy, morreu outro recluso, Daniel Rodrigues, de 37 anos, na mesma ala D. Terá sido o colega de cela a alerta os guardas prisionais de que estava com dificuldades respiratórias.
Foi levado para a enfermaria onde acabou por morrer. Tal como em relação a Danijoy, a conclusão da autópsia apontou para "morte natural", no caso de Daniel por Acidente Vascular Cerebral (AVC).
A estas duas mortes no mesmo dia no EPL, somou-se mais uma, igualmente a 15 de setembro, na prisão de Alcoentre: Miguel Cesteiro, 53 anos, cuja causa "morte natural" atribuída foi igualmente contestada pela família e pela Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso.
Protestos antirracistas exigem justiça
Estas coincidências adensaram o clima de dúvida sobre o que realmente se estava a passar nas cadeias. O facto de Danijoy ser afrodescendente elevou a contestação para o patamar antirracista e várias organizações e movimentos deste ativismo juntaram-se em protesto com as mães de Danijoy e de Daniel.
À manifestação compareceu a então deputada do Bloco de Esquerda (BE) Beatriz Gomes Dias, que manifestou preocupação com a "diferença e desproporcionalidade de encarceramento de pessoas africanas, afrodescendentes e pessoas ciganas nos serviços prisionais".
Mamadou Ba, do SOS Racismo, defendeu logo a necessidade de que o MP reabrisse o inquérito para "apurar as circunstâncias" em que morreu Danijoy Pontes, observando que "a forma como o inquérito foi aberto não corresponde às regras convencionais", já que, no seu entender, o caso exigia que a PJ fosse chamada para investigar o caso, o que não aconteceu.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também acompanhou o pesar da família de Danijoy.
A reabertura do inquérito à morte de Danijoy acabou por acontecer poucos dias depois, a 23 de novembro, e remetido finalmente à PJ a 29. O resultado foi nesta semana, mais de um ano depois, comunicado pela PJ ao DIAP.
A reabertura do inquérito à morte de Danijoy acabou por acontecer poucos dias depois, a 23 de novembro, e remetido finalmente à PJ a 29. O resultado foi nesta semana, mais de um ano depois, comunicado pela PJ ao DIAP.
Conforme o DN tinha noticiado, em cinco anos (2017-2021), ocorreram pelo menos 303 mortes em meio prisional, 66 das quais classificadas como suicídio - as restantes foram registadas como devendo-se a "doença" / causas naturais.
Na altura, janeiro de 2021, a PJ assumia ter sido chamada a investigar apenas seis: duas em 2018 (Estabelecimento prisional anexo à PJ e Ponta Delgada); três em 2021 (uma em Pinheiro da Cruz, mais as de Danijoy e de Maria Malveiro) e outra ocorrida já em 11 de janeiro de 2022, no EPL, comunicada à PJ, segundo noticiou o Público, por exigência da advogada do recluso.
Era então entendimento da DGRSP que a iniciativa de chamar a PJ não podia ser dos responsáveis das prisões, porque, defendiam, a lei determina que quando ocorrem óbitos tem de ser avisado o MP e é chamado o Órgão de Polícia Criminal (OPC). O que esta entidade interpretava como correspondendo à polícia territorialmente competente, ou seja, a PSP ou a GNR, dependendo do local.
Nesta perspetiva, seria a estas polícias - as quais, tendo divisões de investigação criminal, não as mobilizam de imediato numa situação deste tipo, em que quem vai ao local são os agentes que estão de escala, sem competências específicas para investigar mortes - que caberia então decidir, em face dos indícios encontrados, se a PJ deve ou não ocupar-se da situação.
Mortes em meio prisional são sempre "suspeitas"
Perante a sucessão de casos polémicos, a direção da PJ fez saber à tutela da sua apreensão e advogou uma mudança neste status quo. Um perito em homicídios da PJ, que falou na altura com o DN, sublinhou que "uma morte violenta, como é o caso de um suicídio, deve ser sempre objeto de investigação pelo OPC competente". Até porque "as suspeitas de crime podem ser evidentes ou não. São mortes em locais fechados e em ambiente hostil, tratá-las sempre como suspeitas devia ser sempre o ponto de partida".
Sucede que não sendo a notícia dos óbitos comunicada ao piquete da Polícia Judiciária, tal impossibilitava que a PJ fizesse um exame ao local da morte. O que é considerado uma falha grave para a investigação, ao impedir que os peritos forenses do Laboratório de Polícia Científica possam realizar um diagnóstico aprofundado para determinar se a morte foi suicídio, homicídio, acidente ou se deveu a causas naturais.
Sucede que não sendo a notícia dos óbitos comunicada ao piquete da Polícia Judiciária, tal impossibilitava que a PJ fizesse um exame ao local da morte. O que é considerado uma falha grave para a investigação, ao impedir que os peritos forenses do Laboratório de Polícia Científica possam realizar um diagnóstico aprofundado para determinar se a morte foi suicídio, homicídio, acidente ou se deveu a causas naturais.
A então ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, foi sensível aos argumentos e ordenou em março de 2022 que doravante a PJ seria chamada para investigar as mortes nas cadeias.
De acordo com fonte oficial da DGRSP, "de então para cá e no estrito cumprimento do despacho, passou-se sempre a chamar a Polícia Judiciária".
Mas para que tipo de mortes? Apenas nos casos de suicídio ou suspeita de outro tipo de violência? Recorde-se que a morte de Danijoy tinha sido logo classificada de "natural".
Esclarece a DGRSP que "são comunicadas à PJ as mortes que têm lugar "nas situações previstas no artigo 36º, nº 4 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade", ou seja, "havendo indício de morte violenta ou de causa desconhecida".
Duarte Nuno Vieira, perito forense do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos e ex presidente do Instituto de Medicina Legal, não concorda: "Todas as mortes em meio prisional devem ser encaradas como suspeitas por princípio de precaução, ou seja, deve ser seguido o procedimento adequado a uma morte suspeita."
"Os detidos e reclusos são pessoas num espaço fechado, sujeitas a um controlo externo, ao cuidado e sob tutela do Estado. É pois preciso perceber exatamente o que levou à morte, garantindo a transparência e o apuramento de responsabilidades."
Tal implica, defende este especialista, uma verdadeira investigação, com adequada e atempada recolha de indícios. E explica porquê: "Os detidos e reclusos são pessoas num espaço fechado, sujeitas a um controlo externo, ao cuidado e sob tutela do Estado. É pois preciso perceber exatamente o que levou à morte, garantindo a transparência e o apuramento de responsabilidades."
No mesmo sentido vão As Normas para a Investigação de Mortes em Custódia, exaradas em junho de 2020 pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha: "O local da morte deve ser encarado como uma potencial cena de crime, especialmente se o óbito foi inesperado."
O que, detalha o documento, significa que a ninguém, a não ser um médico que possa certificar a morte, deve ser dado acesso ao corpo até à chegada da equipa de investigação; deve ser feito um registo de qualquer pessoa que entre no local e um levantamento fotográfico e/ou videográfico exaustivo.
14 suicídios em 2022 e já dois este ano
Em 2022, segundo os dados oficiais da DGRSP, "faleceram 64 reclusos, sendo 14 por suicídio e 50 em consequência de patologias diversas". Já este ano, "entre um de janeiro e 15 de fevereiro, registaram-se seis óbitos, sendo dois decorrentes de ato suicida e quatro em consequência de doença".
Questionada a PJ sobre o resultado dos inquéritos às mortes que lhe foram comunicadas não informa sobre o total nacional, mas apenas sobre a Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo.
Questionada a PJ sobre o resultado dos inquéritos às mortes que lhe foram comunicadas não informa sobre o total nacional, mas apenas sobre a Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo.
Fonte autorizada desta unidade, que tem vários estabelecimentos prisionais sob a sua jurisdição, salienta que "desde 2019 até ao dia de hoje (17 de fevereiro) foram feitas 21 comunicações relacionadas com reclusos", sendo que desses, "15 tinham sido suicídios e OU? foram confirmados como morte natural". As restantes seis comunicações diziam respeito "a casos de agressões à integridade física". Não houve "nenhum caso em que a conclusão tenha sido outra que não a de morte natural", atesta.
Realça este fonte que, destas 21 comunicações, mais de metade, 12, "já foram feitas após o despacho de março de 2022" da ex-ministra da Justiça. Note-se que estes 12 corresponderão praticamente o total de suicídios (14) reportados pela DGRSP em todo o país.
Este porta-voz oficial assegura ainda que "a investigação não foi prejudicada, apesar ter havido alguns processos em que a comunicação não foi feita de imediato". No caso de Danijoy, recorde-se, a PJ só interveio dois meses depois da morte.
Atualizada a 20/2/2023, às 18:30
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