Aristides de Sousa Mendes e a viagem do caminho da liberdade
É a primeira vez que Jeffrey e Laurence acompanham a mãe na viagem que os trouxe de Bordéus, em França, até Lisboa e já depois de terem parado em alguns dos locais mais marcantes para as famílias de sobreviventes e do cônsul Aristides de Sousa Mendes, o homem que concedeu milhares de vistos a judeus para que fugissem da Europa ocupada durante a II Guerra Mundial. Uma viagem para assinalar os 76 anos que passaram sobre essa data. Chamaram-lhe a viagem do caminho da liberdade.
No final do documentário O Cônsul Desobediente, realizado por Diana Andringa, e que já leva mais de 20 anos, com a história de Aristides de Sousa Mendes e de muitas das famílias e no qual participa Lissy Jarvik, o filho Jeffrey não resistiu a dar-lhe um beijo. Lissy é uma das sobreviventes de Aristides. Tem 92 anos, 16 na altura em que fugiu da Holanda com os pais e a irmã. Maio de 1940. Viviam em Amesterdão e preparavam-se para ir de férias para a Bélgica. "Acho que o meu pai deve ter ouvido qualquer coisa sobre exercícios do exército, porque partimos mais cedo de férias", recorda, sentada numa das mesas do Museu do Aljube, antes prisão e agora espaço dedicado à liberdade.
Esperavam voltar à Holanda. Não aconteceu. "Aquela foi a noite em que os alemães invadiram a Holanda. Lembro-me que no dia a seguir a termos chegado ao apartamento na Bélgica ir à padaria e as senhoras estavam muito exaltadas. Disse-lhes que só podiam estar erradas porque tínhamos saído na véspera e não havia alemães." A fuga estava iniciada e já só queriam sair da Bélgica. "Fomos para Paris. Todos achavam que era inconquistável. Parte do caminho foi feito a andar a pé. Víamos os aviões alemães e já havia bombardeamentos. Muitas pessoas iam na mesma direção que nós, outras ao contrário. Era o exército para nos salvar."
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Lissy já não era uma criança. Sabia bem o que estava acontecer. "O que sentíamos? Muito medo, que queríamos fugir o mais rápido e o mais longe dali. Combinámos que se nos apanhassem faríamos tudo para ter uma morte rápida, para não sermos torturados". Já estavam em Biarritz (França) quando ouviram que o governo português estava a dar vistos a refugiados.
"Uns amigos do meu pai, um grupo que estava muito bem informado, foram os primeiros a ouvir isso. Fomos logo para Bordéus, porque sabíamos que depois poderia ser mais complicado." Vieram de comboio para Portugal, mas por Lisboa estar cheia de refugiados as portas só se abriram na Figueira da Foz, onde viveram sete meses antes de terem vistos para os Estados Unidos. "Só em 1986, quando a minha mãe leu um artigo no The New York Times é que soubemos que os vistos tinham sido emitidos contra as ordens do governo".
Uma grande família
O grupo reuniu-se no dia 25 em Bordéus, passou por Bayonne, Salamanca e com entrada em Portugal por Vilar Formoso. Fronteira simbólica para muitos dos que fugiram do terror nazi. Cabanas do Viriato, Viseu, foi a paragem seguinte. A casa da família de Sousa Mendes, ainda em reconstrução e que se espera, depois de estar concluída, vir a acolher como museu a história da guerra, dos sobreviventes e do homem que os salvou.
Uma passagem por Coimbra e uma noite passada nas Caldas da Rainha, onde conheceram uma família de refugiados sírios, que tal como eles fugiram da guerra na esperança de uma vida segura. Protagonistas diferentes, épocas diferentes, mas histórias de medo que teimam em repetir-se. É por isso, explica Olivia Mattis, presidente da Fundação Aristides de Sousa Mendes nos Estados Unidos, que "é tão importante colocar o foco nas pessoas que correm para ajudar os outros. Numa altura com tantos refugiados, com tanto mal, temos de olhar para o exemplo de alguém que fez a diferença. Queremos ensinar que todos nós podemos fazer a diferença".
Olivia é filha e neta de beneficiários de vistos atribuídos pelo cônsul português. Foram 12 elementos da família que receberam o passaporte para a liberdade assinado pelo cônsul português. O pai de Olivia tinha na altura 7 anos. "A minha avó contou-nos sempre a história - escreveu um livro com a história da família -, mas não sabíamos o seu nome nem que tinha sido castigado pelo que fez. Quando descobri, senti que não podia continuar como estava, que tinha de fazer alguma coisa. Foi quando avançámos com a fundação, para que o mundo soubesse quem foi este homem e o que fez", diz.
Esta é, afirma, "uma jornada de lembranças das famílias que receberam vistos entre maio e junho de 1940. Há aqui pessoas que vieram da Áustria, de Itália, Israel, África do Sul, Holanda e Estados Unidos. Todas temos em comum esta ligação com Portugal e os vistos atribuídos por Aristides de Sousa Mendes. Somos uma grande família, apesar de só agora nos termos conhecido", refere Olivia Mattis. Esta é a quinta viagem de homenagem ao cônsul, mas a segunda organizada pela fundação norte-americana.
Por cada caminho, cada paragem, conhecem um pouco mais a história dos outros. Dos pontos em comum. Hoje podem descobrir um pouco mais quando nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros consultarem os registos originais dos vistos passados em 1940 por Sousa Mendes para verem os nomes originais das suas famílias.
Descendência que não existiria
Como foi fazer esta viagem? "Muito emocional", diz Linda Rozenfeld, para de imediato fazer sinal com a mão de que precisa de um minuto para limpar as lágrimas e retomar o fôlego. "Dois dos nosso filhos vieram com ele [o pai, Stefan]. Se não fosse o Aristides de Sousa Mendes não estariam aqui. Quatro filhos e sete netos que não existiriam se não fosse o Sousa Mendes. Quantas famílias assim..."
Linda está casada há 57 anos com Stefan Rozenfeld. Celebraram o aniversário na semana passada. Conheceram-se quando ela tinha 10 e ele 14 anos. Stefan, o seu nome polaco como o próprio esclarece - "tinha apenas 6 anos quando cheguei aos Estados Unidos e quis mudar para Stephen, queria um nome americano" -, tem 82 anos. Quando fugiu da Polónia com a mãe, em novembro de 1939, estava entre os 5 e os 6. O pai era o único produtor de veludo em Lodz e, como fazia em todos os agostos, viajou para a Bélgica para contactar com atuais e futuros clientes.
"Percebi que ele não queria ir, mas a minha mãe disse-lhe para ir que sabia se alguma coisa acontecesse ele nos tiraria dali. A guerra começou e eu e a minha mãe fomos apanhados no meio. O meu pai estava em Bruxelas e ouviu que o cônsul da Bolívia na Alemanha estava a passar vistos. Estava marcado sairmos da Polónia em novembro, mas tive uma apendicite. Só pudemos sair da Polónia em janeiro de 1940", recorda, durante o almoço na Pastelaria Suíça, no Rossio. Na mesma mesa António Mendes, neto de Aristides, e a sua mulher ouvem com atenção o relato.
A caminhada foi feita com outras pessoas num carro puxado por um cavalo. "Passámos por cidades queimadas. Um dia, quando ainda estava a amanhecer e ainda estava a acordar vi uma coisa no céu, que ia ficando cada vez maior. Deitámo-nos no campo. Era um avião alemão. Não sei se vinha à procura de pessoas. Fechámo-nos na arrecadação de um apartamento. Aprendi a ler à luz das velas."
A família separou-se e uma parte seguiu para a Lituânia onde conseguiram vistos para o Japão. Ele e a mãe seguiram para a Bélgica. Antes de entrar no comboio para a Alemanha, a mãe deu-lhe um recado que recorda com exatidão: "Se alguém te perguntar alguma coisa não digas nada. Eu falo." Stefan não falou. A mãe sabia alemão e foi ela a responder a todas as questões. Foi a mulher do cônsul boliviano que os ajudou a atravessar a fronteira da Bélgica. A família estava finalmente reunida, mas novamente em fuga com a ocupação alemã.
À medida que Stefan conta a história, Linda mostra fotos que tem no telemóvel e o documento que confirma a detenção de Plotr, um tio do marido, que morreu no campo de concentração Neuengamme, na Alemanha. "Fomos para França. O meu pai ainda tentou vistos com os ingleses, mas não conseguiu. Fomos de comboio até Bordéus e foi quando o seu avô nos deu os vistos. Penso que os tivemos cedo, ainda antes da grande fuga de junho. Do que me lembro entrámos em Vilar Formoso em direção a Lisboa", conta Stefan a António. Já na capital, com a ajuda de uma americana, Marie Cole, que lhes emprestou dinheiro, comparam a passagem e rumaram aos Estados Unidos a bordo do navio grego Nea Hellas.