30 outubro 2017 às 00h23

"É um acórdão de um coletivo. Houve discussão?"

Conceição Gomes dirigiu a equipa que comparou 500 decisões judiciais relacionadas com o crime de violência doméstica, um estudo pedido pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

Céu Neves

Apenas em 20% dos processos houve sentença e das 70 condenações só sete corresponderam a prisão efetiva. Concluíram que há uma desvalorização da culpa e que as narrativas dos tribunais denotam ausência de reflexão aprofundada e sistemática, permitindo uma maior permeabilização a discursos dominantes.

Surpreendeu-a o teor do acórdão do desembargador Neto Moura [em que o juiz faz censura moral a uma mulher que cometeu adultério]?

Sim e não. Podemos olhar para o acórdão em vários planos, mas há dois que são fundamentais e que é importante que se analisem. Um é o que nos indica a forma como o sistema judicial responde ao crime de violência doméstica, e esse é um plano sobre o qual devemos refletir. O outro plano é o argumentário utilizado por aquele juiz.

Comecemos pelo argumentário.

Relativamente ao argumentário surpreendeu-me de alguma maneira. Com recorrência ouvimos pela comunicação social que os juízes colocam nos processos perceções morais sobre determinada situação, o que não é admissível, devem ser objetivos. Mas desta forma e com este tipo de argumentos não é vulgar. Estes argumentos são inconstitucionais, inadmissíveis num Estado de direito e atentatórios de princípios fundamentais. Este tipo de argumentário é excecional, já não o é o desempenho funcional do sistema judiciário.

Tem que ver com a forma como as decisões são tomadas?

É preciso ter em atenção o seguinte: este é um acórdão de um tribunal coletivo, não é decidido por um único juiz. No Tribunal da Relação há um relator, que é este juiz, mas depois é analisado por um coletivo de juízes. O sistema tem regras de organização e funcionamento que deveriam levar a que estas decisões fossem discutidas.

E terá existido essa discussão?

A questão é essa. É importante questionarmos como estas decisões são tomadas nos tribunais superiores, houve realmente discussão? Se houve, então não devemos pôr o ónus num juiz, foi um tribunal coletivo que assinou e decidiu. Houve alguém que dissesse que não se argumenta desta maneira? O presidente do Tribunal de Relação pode intervir. O chocante desta sentença foi o argumentário, mas o problema coloca-se perante outras decisões judiciais que tendem a desvalorizar o crime de violência doméstica.

É de questionar a ação do Conselho Superior de Magistratura (CSM)?

Obviamente que tem de ser questionado. Os órgãos de gestão e de governação do sistema judiciário têm de ser questionados. O CSM é um órgão de gestão e é o único que pode tomar posição. Num primeiro momento disse que não era com eles e, agora, já veio tomar posição. Mas não nos podemos satisfazer com a abertura de um processo de averiguações a este juiz, é preciso ir mais longe. O poder judiciário não pode furtar-se a um debate sobre o que é necessário ser feito para que isto não volte a acontecer.

O que é preciso fazer?

Tem de haver o passo seguinte, é preciso questionar o que leva a esta argumentação e garantir que não volte a acontecer. Não tem nada que ver com jurisdição, não tem nada que ver com independência e autonomia que obviamente os juízes têm de ter e que é sagrada na tomada de decisões. Em primeiro lugar, avaliar se estas decisões são discutidas. E não devemos esperar que seja o poder político a intervir, é o órgão de gestão judiciária que deve fazer esta reflexão.

Analisou decisões judiciais. Conseguiu perceber se esse debate existe?

Não tenho dados empíricos para lhe responder. Sabemos que nos tribunais superiores, normalmente, os desembargadores só vão aos tribunais para as sessões. É verdade que em muitos não há condições para promover essa discussão e as plataformas informáticas permitem que possa haver um conhecimento dos processos à distância. A minha perceção é que, até pelas condições logísticas, os magistrados vão para os tribunais e rapidamente aprovam um conjunto de processos. É preciso avaliar como é que isso se faz. O que digo é que não se pode esgotar na questão disciplinar, tem de ser avaliado o funcionamento do sistema judicial.

Esse tipo de atuação descredibiliza a justiça?

Obviamente. Mostra a distância que há entre a dinâmica social e os tribunais. A justiça é para hoje e tem de acompanhar as dinâmicas sociais. Tem-se feito caminho nas políticas sobre estas matérias, mas o sistema judicial também tem de compreender estas dinâmicas, olhar para elas e refletir sobre o seu desemprenho funcional. Não é um sinal de fraqueza o poder judicial abrir o debate sobre esta matéria, pelo contrário.

O vosso estudo conclui que as sentenças são muito permeáveis aos valores sociais e culturais dos magistrados.

Olhando para a sentença e esquecendo o argumentário, verifica-se que, mais uma vez, o juiz valorou de uma forma exagerada o estado de perturbação do agressor e acha que é desculpabilizador da sua culpa, o que tem implicações na sua culpa. Olhando para a forma como o sistema judicial dá resposta ao crime de violência doméstica, mostra que há muito a fazer. É evidente que foram dados passos importantes, como as medidas de proteção à vítima, mas é preciso fazer mais porque são situações de uma grande vulnerabilidade para as vítimas, quer na fase do inquérito quer no julgamento.

Ser bom pai, trabalhador, a dependência do álcool, a promiscuidade da vítima, são fatores que detetaram como desculpabilizadores do crime.

Exatamente, o que vimos nas sentenças é que quase tudo serve como atenuante na desvalorização da ação, na desculpabilização. "Batia na mulher, mas era bom pai", veja o conceito de bom pai - como é que alguém que bate na mulher é bom pai? Está "socialmente bem inserido", "tem um emprego estável", "estava alcoolizado". Ou, ainda, "não são visíveis sinais verdadeiros de violência doméstica, apenas uns murros e pontapés". Neste discurso sentimos que há uma desvalorização do crime e obviamente reflete-se na sentença, na suspensão da pena de prisão.

O que justifica que apenas 10% das sentenças resultem em pena de prisão efetiva, sendo 20% dos processos do crime de violência doméstica vão a julgamento?

Se compararmos com a forma como se punem os crimes contra a propriedade parece que há uma desvalorização do crime contra as pessoas, particularmente as vítimas de violência doméstica. Ainda se valoriza determinados atenuantes, sobretudo nas questões que têm que ver com a criminalidade praticada em meio familiar. Também em processos de maus-tratos e de abuso sexual de crianças ouvimos decisões que nos chocam. Penso que tem que ver com uma cultura judiciária ainda conservadora. Uma cultura para qual a nossa Constituição não aponta. Gostaria de realçar a reação da sociedade, é preciso que o sistema judicial perceba que a sua ação tem de ser compreendida pela sociedade.

A sociedade é menos tolerante?

Nos tribunais há uma tolerância no sentido de desvalorizar a culpa, de encontrar atenuantes que desculpam a criminalidade no seio da família e isso é o peso cultural. Há 30 ou 40 anos era diferente, mas a lei é clara, proíbe esses comportamentos, não permite que se maltratem os filhos, a mulher. Estamos a falar de valores e mentalidades, o que leva muito tempo a mudar, daí a importância da formação.

Reforçar a formação dos juízes?

Sim. A formação, quer inicial quer contínua, dos magistrados é muito importante. Não pode ser apenas dar os quadros legais, as convenções, isso é uma questão técnico-jurídica. O que aqui está em causa é formação para uma forte sensibilização do fenómeno de violência doméstica, para a violação dos direitos humanos e direitos fundamentais. É preciso saber que formação é dada, quais foram os conteúdos, quem foram os formadores. E é preciso avaliar o modo como é feita a seleção dos juízes. Tem de haver magistrados especializados, o que não é o mesmo do que tribunais especializados. Há tribunais especializados e depois os juízes não têm formação específica.