Há mais de seis mil jovens em Portugal a morar em centros temporários

Apesar de uma descida, os números continuam altos: mais de 6300 jovens continuam em casas de acolhimento, cujo dia nacional se assinala esta sexta-feira. O DN foi conhecer a Casa do Canto, em Chão de Couce, no concelho de Ansião onde moram 20 raparigas.

Se pudesse escolher, chamar-se-ia Yasmin. Será assim que a vamos tratar, na frescura dos seus 18 anos, em que os últimos foram passados entre Casas de Acolhimento. Para seu bem, a lei mudou. E permite agora que possa permanecer na Casa do Canto, em Chão de Couce (Ansião, Leiria), até aos 20, pelo menos. É ela uma no meio de 6369 crianças e jovens em acolhimento, de acordo com o último relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (CASA), relativo a 2021. O acrónimo não deixa de ser uma ironia do destino: a maioria daqueles que ali são apenas um número não está em casa há muito tempo. Alguns desde bebés. Mas para muitos, o acolhimento é ainda o único porto seguro que conhecem.

É isso que a Casa do Canto tenta ser, seguindo a filosofia da Associação Crescer Ser, criada em 1986 por um grupo de magistrados e técnicos assessores dos Tribunais de Família e Menores, "que sentiram a necessidade de levar mais longe a proteção das crianças e dos jovens, contribuindo para uma maior e melhor promoção e concretização dos seus direitos". Quase 20 anos depois, nascia em Chão de Couce a Casa do Canto, um dos sete Centros de Acolhimento Temporário da associação, divididos entre crianças dos 0 aos 12 anos, rapazes e raparigas dos 12 aos 25 anos.

A socióloga Carla Palaio dirige aquela Casa desde o início: 17 de maio de 2007. Percorre connosco os corredores do Centro, onde atualmente moram 20 raparigas, a mais nova com dez anos e a mais velha com 20. Tem capacidade para receber 23 adolescentes (todas do sexo feminino), nos dois pisos autónomos, existindo ainda três camas de emergência.

Ao princípio não foi fácil a convivência entre a aldeia e a Casa, recorda. Mas, com o passar dos anos, a comunidade foi assimilando a novidade e recebendo melhor a iniciativa. As raparigas estudam nas diversas escolas do concelho de Ansião e frequentam atividades diversas, desde a natação à dança, passando por outras atividades desportivas.

Carla Palaio é a primeira a reconhecer que nenhuma jovem está ali porque quer e aponta a revolta que, não raras vezes, se manifesta entre as paredes. "São jovens que vêm de contextos complicados, de várias problemáticas, muitas vezes vítimas de agressões, negligência e maus tratos. Por isso temos aqui um trabalho desafiante a árduo", conta ao DN. "Todas as 20 meninas se encontram acolhidas ao abrigo da lei 147/99, de promoção e proteção de crianças e jovens", sublinha a diretora, elencando os casos das que são encaminhadas ou pelos tribunais, ou pelas CPCJ (Comissão de Proteção a Crianças e Jovens).

Ao longo destes 15 anos passaram por ali cerca de 200 raparigas. "Com cada uma é feito um projeto de vida, seja ele de retorno à família, ou de autonomização." Por isso os laços nunca são cortados. Muitas vão a casa regularmente aos fins de semana, "embora isso nem sempre se revele positivo", admite a diretora da Casa do Canto. Há casos com finais felizes, mas muitas acabam por não regressar à casa dos pais, muito à custa "do projeto de autonomia que vamos desenvolvendo com elas, traçando objetivos".

Maria (chamemos-lhe assim), a mais velha, talvez não volte. É agora estudante universitária, na licenciatura de Educação Social, em Santarém. Volta regularmente à Casa, cujas técnicas têm feito o acompanhamento do seu caso - e dos estudos. "Sentimos que ela ainda precisa muito deste suporte", diz Carla Palaio, que ao longo dos anos coleciona histórias e casos diversos. Afinal, "criam-se laços", confessa.

Na Casa do Canto trabalha atualmente uma equipa multidisciplinar. À diretora técnica juntam-se uma diretora adjunta, uma assistente social, uma psicóloga e 11 ajudantes de ação educativa, mais uma cozinheira e uma ajudante de cozinha, para além de uma auxiliar de serviços gerais. "Primamos muito pela formação contínua", explica Carla, certa do quanto é importante "não só ir formando as pessoas ao longo do tempo, como também ir atualizando as problemáticas".

Além das necessidades básicas, o foco da Casa está muito concentrado na escolaridade das adolescentes. Além das aulas, cada uma das meninas tem apoio individualizado, através de professores que se deslocam ao Centro. "Muitas delas têm baixa motivação e pouco interesse na escola, o que se traduz em dificuldades. Para além disso, também fazemos atividades extracurriculares. O que tentamos incutir sempre é que, apesar do seu passado menos bom, o futuro pode ser sempre melhor."

Durante a pandemia, "foi preciso fazer várias adaptações, e foi um período difícil", admite a diretora, aludindo ao tempo em que as jovens estavam proibidas de sair, o que incluía as visitas às famílias. Num grupo que, à partida, já é caracterizado por vários problemas de saúde mental, tudo se agravou. "Sentimos muito a falta desse apoio, nomeadamente de consultas, em áreas tão importantes como a psicologia ou a pedopsiquiatria". A recuperação tem vindo a ser feita, garante.

Sonhos e fugas

Yasmin entusiasma-se com a possibilidade de ser fotografada. Gostava de ser modelo. Se não for possível, talvez venha a ser massagista. "Sempre gostei de fazer massagens, desde pequena", conta ao DN, apressada para tirar a touca e a bata que enverga: esteve a ajudar a cozinheira no peixe cozido com batatas e legumes para o almoço. Reaparece cheia de energia. Está ali há dois anos e sete meses, mas antes já fora encaminhada para outro Centro, em Abrantes. Natural de uma aldeia dos arredores de Leiria, é uma de quatro filhos de uma família desestruturada. "Aqui aprendemos a cuidar de nós e das nossas coisas. Mas ao princípio não é fácil", realça a jovem, que este ano cancelou a matrícula numa escola profissional da região e, enquanto não regressa ou entra no mercado de trabalho, ajuda as auxiliares nos trabalhos domésticos.

A seu lado, a tímida Joana, 15 anos, prefere não falar. Está ali há pouco tempo e ainda em fase de adaptação. "O ideal é que não fiquem aqui muito tempo", refere Carla Palaio, que carrega na bagagem os mais diversos casos. Desde logo, várias fugas, "porque muitas vêm muito revoltadas". O pior, porém, foi o suicídio de uma jovem, há alguns anos. E a morte (de cancro) de uma outra, que marcou a todas na instituição.

Lidar com as regras

Quando chegam à Casa do Canto nem todas as jovens se mostram cooperantes para aceitar as regras. "Não são nada de especial, mas existem, e muitas não gostam, o que torna o trabalho difícil". A diretora considera que a casa dá às raparigas "a liberdade, que é fundamental, embora sempre com cuidado na sua proteção"

À semelhança do que acontece nos outros centros de acolhimento temporário, as jovens da Casa do Canto moram ali no mínimo seis meses. Mas muitas estão mais de um ano, por vezes dois ou três. Para a história da Casa ficou "uma menina que aqui esteve dez anos. Chegou com 11 anos e foi ficando, até quase aos 21. Não é o desejável, mas há situações que o exigem. Era uma menina com deficiência, paralisia cerebral. Daqui saiu para um Lar Residencial".

Desde 2012 que esta casa da Crescer Ser é parceira num projeto da Fundação Calouste Gulbenkian. Através do "Projet"Art", tem sido possível desenvolver várias iniciativas que tornam melhores os dias das adolescentes que para lá são encaminhadas. Desse envolvimento resultou o livro "Transições - desafios e práticas no acolhimento de jovens em instituição". É lá que figura o testemunho de Ana Maria, e o que pensava em 2015, quando saiu. "Quando saímos cá para fora, o mundo já não é o mesmo. O mundo muda a cada minuto. E nós, estando dentro de um espaço fechado, por mais que tenhamos saídas (para escola, etc.) nunca sabemos o que ele realmente é. Nem os nossos pais às vezes sabem como lidar, quanto mais nós, que ainda por cima estivemos afastadas da pura realidade."

ENTREVISTA

João Pedro Gaspar: "O acolhimento familiar está a crescer, mas não ao ritmo que queríamos"

Presidente da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-acolhidos revela que 62% das crianças e jovens em acolhimento em Portugal têm 12 ou mais anos.

Os números dizem-nos que nos últimos anos há uma diminuição do número de crianças e jovens em acolhimento. Isso deve-se a quê?
Isso deve-se a vários fatores. Primeiro que tudo à própria demografia: se há menos crianças e jovens, necessariamente também há menos acolhidos. Mas deve-se, também, por outro lado, ao investimento em entidades de primeira linha, criando outras respostas. Falo das CCPJ, por exemplo, e de entidades que tentam trabalhar com as crianças no seu meio natural, sendo cada vez menos retiradas e colocadas em acolhimento.

Mas o acolhimento é ainda um mal necessário, como costuma dizer?
É mesmo essa a expressão. O ideal é as crianças crescerem numa família, seja a família biológica, adotiva ou alargada, seja numa família de acolhimento. Mas não havendo ainda famílias de acolhimento em número suficiente e havendo alguns perfis de entrada no sistema, nomeadamente jovens já com histórico de pré-delinquência, não é fácil uma família de acolhimento conseguir esse desempenho. Daí que seja importante a manutenção deste modelo. Por vezes a força das medidas (esse encaminhamento) também ajuda a atenuar comportamentos. O acolhimento familiar está a crescer, embora não seja ao ritmo que queríamos. Considero que não é antagónico, mas antes um e outro são complementares. A própria lei prevê que nenhuma criança deveria estar numa casa de acolhimento, mas antes em famílias.

Essas crianças e jovens continuam a ser maioritariamente maiores de 12 anos?
Sim, cerca de 62% das crianças em acolhimento têm 12 anos ou mais. E isso justifica de alguma maneira o facto de termos ainda tantos jovens em acolhimento residencial. A maior parte não são pequenos que frequentam o primeiro ciclo.

A PAJE nasceu precisamente para fazer a transição para a vida "cá fora". Como é quem corrido esse processo?
Nós conseguimos uma importante alteração à lei, que permite que os jovens permaneçam em acolhimento até aos 25 anos. Anteriormente era até aos 18, mais tarde aos 21 - desde que cumulativamente a criança aceitasse e o próprio gestor de caso concordasse. Mas isso só é possível reunindo um conjunto de fatores: que a Casa aceite, o gestor também, e este jovem esteja a estudar ou no mercado de trabalho. Isto tranquiliza-nos mais, e só não é suficiente por causa da operacionalização. A questão é que nós temos muitos jovens que nunca decidiram nada na vida. Alguém decidiu sempre por eles.

Os 18 anos era muito cedo?
Claro. Eu costumo dizer que aos 18 anos um jovem tem aquela noite mágica, e quando acordam julgam-se muito capazes de tudo, até de tomar uma decisão - por ventura a primeira - que é irreversível. E isso faz com que alguns decidam sair, na ânsia de uma liberdade que, por vezes, as casas de acolhimento não conseguem acompanhar, porque são estruturas que não vão muito ao encontro das necessidades e das especificidades da individualidade, e têm regras que são transversais a um jovem de 16 anos ou a um jovem de 19 anos...

Isso remete-nos para a formação dos recursos humanos das Casas de Acolhimento?
Não só. Tem a ver com a própria matriz das próprias casas de acolhimento, de quem está à frente dos projetos. As direções nem sempre estão familiarizadas com a juventude que temos agora, não acompanharam a evolução da sociedade. E alguns miúdos chegam a dizer que se sentem a viver num ovo.

Nos últimos anos, desde que foi criada, a PAJE organiza sempre iniciativas para assinalar o Dia do Acolhimento. O que vai acontecer este ano?
A iniciativa surgiu em 2016, mas em Portugal comemorámos pela primeira vez no ano passado. Acontece sempre na terceira sexta-feira de fevereiro. A nossa ideia é simples: que nesse dia as Casas de Acolhimento aproveitem para mimar particularmente as crianças e jovens que lá estão. Seja através de um doce especial, ou de uma assembleia geral em que eles possam expressar as suas ideias, o que mudariam na casa, ou através de mensagens deixadas nas mochilas de forma sub-reptícia, ou através de outras iniciativas. No ano passado funcionou muito bem, com a participação de dezenas de casas. Por outro lado, é um dia em que procuramos trazer para a opinião pública dois aspetos determinantes: a nobreza da profissão de cuidador e o reconhecimento das pessoas que trabalham no acolhimento.

E para os jovens, qual é o objetivo?
Que sintam de alguma maneira também o carinho da opinião pública. E que o manto de invisibilidade possa ser retirado.

dnot@dn.pt

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