Feminismo é bom para a natalidade
Políticas que aliviam o fardo das mulheres no cuidar dos filhos e beneficiam a partilha com os homens são três vezes mais eficazes do que os subsídios, diz estudo americano.
A desigualdade na distribuição das tarefas domésticas entre mulheres e homens e sobretudo no tratamento dos filhos está intimamente ligada à baixa natalidade nos países desenvolvidos. É a conclusão de um estudo de novembro de 2015 apresentado na semana passada no encontro anual da Associação Americana de Economia, que aponta essa desigualdade como uma das mais importantes razões de desacordo entre membros de um casal sobre terem ou não um bebé e demonstra ser a decisão das mulheres que prepondera sobre a dos homens.
Contrariando correntes que preconizam o "regresso das mulheres ao lar" e o reificar da divisão "tradicional" de tarefas, o estudo, da autoria de Matthias Doepke e Fabian Kindermann, das universidades de Northwestern (Chicago) e de Bona, Bargaining over babies: Theory, Evidence, and Policy Implications (Regateando sobre bebés: Teoria, Factos e Implicações Políticas) indica, como reconhece um dos seus autores, que o feminismo é bom para a natalidade.
"Depende do que entendemos por feminismo", diz Matthias Doepke ao DN. "Mas se considerarmos que é a apologia da igualdade de género, sim, é verdade. Agora, porque nem sempre foi assim; há 40 anos, quando as taxas de natalidade eram muito mais elevadas e muitas das mulheres estavam em casa a tomar conta dos filhos, as feministas diziam que elas deviam sair de casa e terem carreiras, portanto isso não era bom para a natalidade. Mas na situação que hoje temos, com a maioria das mulheres a trabalhar e a querer trabalhar, a igualdade é boa para a natalidade."
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E uma forma de contribuir para esse objetivo é, segundo outro estudo de 2015, da autoria da economista indiana Ankita Patnaik, da Universidade de Cornell (EUA), a criação de licenças parentais específicas para pais. A partir de uma nova política aplicada no estado canadiano do Quebec, onde desde 2006 existe uma licença parental de cinco semanas alocada especificamente aos pais, Patnaik compara a evolução naquele estado com a dos outros do país, onde a legislação não mudou (permite partilha da licença mas não tem um período específico para o pai), e conclui que a alteração no Quebec não só aumentou a adesão dos pais à licença em 250% como conduziu, no longo prazo, a uma redução da desigualdade na divisão das tarefas domésticas. No mesmo sentido, aliás, da experiência sueca: tendo sido o primeiro país do mundo a criar a licença parental, em 1974, a partir de 1995 a Suécia alocou um mês só aos pais, resultando numa adesão de 77% dos homens nos anos subsequentes; em 2002 esse período foi duplicado, com novo incremento do número de pais que pediram licença, e foi agora estendida para três meses.
Apoio mais eficaz do que dinheiro
Baseado num inquérito no âmbito de um programa da ONU levado a cabo em 19 países, na maioria europeus, entre 2003 e 2012, Regateando sobre bebés conclui que de 25% a 50% dos casais discordam sobre ter (mais) um bebé e que as mulheres estão mais frequentemente em desacordo com o desejo do parceiro de ter um bebé do que ao contrário. Este desacordo das mulheres é mais pronunciado nos países com baixas taxas de fecundidade, enquanto naqueles, como França, Noruega e Bélgica, onde a taxa de fecundidade é relativamente elevada, a percentagem de mulheres e homens que discorda da ideia de ter um bebé é quase igual (Portugal não faz parte do inquérito).
"Um casal que está de acordo tem quase três vezes mais hipóteses de ter um bebé do que um casal em que o homem discorda. E acima de quatro vezes mais possibilidades do que um casal em que a mulher discorda", escrevem Doepke e Kindermann. Ou seja, de acordo com estes dados, as mulheres preponderam mais do que os homens na decisão. "Parece uma conclusão intuitiva mas isso só sucede em sociedades mais desenvolvidas. Nos países menos desenvolvidos, onde as mulheres não estão empoderadas e não têm acesso a anticoncecionais ou não conseguem impor o seu uso, são os homens que têm o poder de decidir", sublinha Doepke, que se tem debruçado sobre questões relacionadas com a igualdade de género mas que só agora tratou da formação da decisão de ter ou não filhos. "Um dos motivos pelos quais há ainda poucos estudos sobre isso é que antes não existiam dados, informação estatística de qualidade que o permitisse."
Partindo das respostas às questões colocadas no programa da ONU Gerações e Género, como "quem veste as crianças ou se certifica de que estão adequadamente vestidas/ põe as crianças na cama ou as manda irem-se deitar/ fica em casa com as crianças quando estão doentes/ ajuda as crianças nos trabalhos de casa", etc., a dupla Doepke/Kindermann conclui que "nos países onde as mulheres fazem a maior parte do trabalho no que respeita a criar os filhos, há maior probabilidade de elas se oporem a ter mais, e a fertilidade é baixa. Este efeito é especialmente pronunciado nos casais que já têm filhos."
Considerando que as baixas taxas de natalidade existentes em vários países desenvolvidos são um dos grandes desafios económicos da atualidade e uma preocupação crescente dos governos, os cientistas debruçam-se no final do estudo sobre as implicações práticas da sua análise: "As políticas que visam aumentar a taxa de natalidade serão mais eficazes se forem especificamente dirigidas ao género que mais discorda de ter outro filho. No nosso modelo quantitativo calibrado para as baixas taxas de natalidade europeias concluímos que uma política que diminua o fardo das mulheres com o cuidado das crianças (por exemplo, oferecendo apoio para que as mulheres possam voltar mais cedo ao trabalho) é três vezes mais eficaz do que um subsídio monetário dirigido aos pais." Nesse sentido, para casais já com um filho, o facto de usarem apoio institucional ou pago para cuidar da criança influi positivamente na intenção de ter outro filho, conclui o estudo.
Ideologia da "mãe desnaturada"
"Haver uma infraestrutura de apoio para cuidar das crianças desde tenra idade é muito importante", sublinha Doepke. "Mas há outras questões que têm que ver com a pressão cultural e dos pares. Sou alemão mas vivo nos EUA e noto algumas diferenças relevantes entre os dois países. Na Alemanha há jardins infantis e subsídios para o cuidado das crianças pequenas, mas nos EUA acaba por haver mais oferta porque existe um bom mercado; porém, o que mais distingue as duas realidades é que na Alemanha existe a expectativa de que as mulheres fiquem em casa a tomar conta das crianças. Há proteção no emprego para as mães que estejam ausentes até três anos - na verdade, creio que a lei é neutra quanto ao género, mas interpretada como sendo dirigida às mulheres - e portanto criou-se a ideia de que o normal é elas ficarem três anos em casa. Até temos uma expressão para as mães que não o fazem: "rabenmutter", que quer dizer "mãe corvo": uma mãe má, "desnaturada". Uma economista alemã muito conhecida disse há pouco tempo numa entrevista que queria ficar aqui nos EUA porque tem três filhos pequenos e trabalha a tempo inteiro e isso é bem aceite pelos americanos, enquanto no nosso país seria malvista." Suspira. "A maior parte das pessoas quer ter filhos. Num mundo perfeito, teriam mais filhos. E para isso é necessário perceber que não pode continuar a haver uma tão grande desproporção entre o que se exige às mães e aos pais. Mesmo nos países com mais igualdade, como a Suécia e a Noruega, ainda são as mulheres que fazem 60% do trabalho doméstico." Porque acha que isso continua a ser assim? "É muito cultural. Os homens esperam que elas façam mais e as próprias mulheres têm dificuldade em largar esse papel."
Por outro lado, os pais que querem tirar licença são ainda alvo de desaprovação e perplexidade. "O meu irmão é executivo numa companhia alemã e teve um bebé. Quis partilhar a licença e isso é visto como estranho."Um facto referido por Patnaik no seu estudo: "A existência de uma licença só para pais reduz o estigma. Estabelece o direito individual do pai a passar tempo com o filho, elimina a necessidade de negociar com a mãe e melhora a sua capacidade de imposição junto dos empregadores e colegas que poderão ver o seu uso da licença com melhores olhos por lhe ser especificamente dirigida. Além disso, a licença específica para o pai envia uma mensagem pública clara no sentido da promoção do envolvimento dos homens no cuidado dos filhos, o que pode reduzir o estigma social em relação aos que tiram licença e pode até criar um estigma reverso em relação aos que não aproveitam esta possibilidade de passar tempo com os seus filhos."
Explorando também as consequências da licença paternal no longo prazo, a economista conclui que os pais que a gozaram passam em média mais 37 minutos diários em trabalho não profissional, o que representa um aumento de 23%, e mais 18 minutos em trabalho doméstico. Por outro lado, as mães cujos parceiros tiraram a licença específica estão em média mais 79 minutos no local de trabalho (correspondendo a um aumento de 44%) e a probabilidade de estarem empregadas a tempo inteiro aumentou 5,4 pontos percentuais. Ou seja, o investimento das mulheres em causa no mercado de trabalho cresceu. Não despicienda também é a anotação de que a licença específica para pais, correspondendo a uma espécie de estágio intensivo de trabalho doméstico, "pode limitar a possibilidade do estratégico "fugir com o rabo à seringa", pois os pais não podem mais desculpar-se com serem incompetentes no tratar das crianças e das tarefas da casa."
Acresce que estudos recentes, como o da economista Yana Gallen (da mesma universidade de Doepke) demonstram que se em média a produtividade das mulheres é em 12% inferior à dos homens, essa diferença só se deve às mulheres com filhos, que seria, de acordo com o estudo de Gallen, baseado no mercado de trabalho dinamarquês, de menos 20%; a das mulheres sem filhos é idêntica à masculina. Ou seja, a baixa produtividade das mães, que em parte justifica o diferencial salarial em relação aos homens igualmente qualificados (e que em Portugal é de menos 23%) "contamina" a de todas as mulheres.
Num recente artigo no Observador, o também economista Luís Aguiar-Conraria, da Universidade do Minho, defendia, com base no trabalho de Gallen, um tratamento mais igualitário nas licenças de parentalidade: "Em vez de se definir uma licença de seis meses que cada casal pode dividir como entende, define-se que cada progenitor tem direito a três meses de licença paga. O mesmo raciocínio se aplicaria a outros aspetos relacionados, como licença de amamentação/aleitação ou as faltas para assistência a filhos. Assim, uma empresa que tenha de optar entre um homem ou uma mulher para um dado lugar-chave deixa de ter razões objetivas para preterir a mulher." Mas, conclui, "sempre que discuto este assunto, apercebo-me de que muitas mulheres resistem veementemente à ideia. Possuem um indisfarçável sentimento de propriedade em relação aos bebés. Mas é bom que se perceba que enquanto forem elas as cuidadoras inquestionáveis, a discriminação no local de trabalho é uma consequência inevitável."