Faltam transportes privados para pessoas com deficiência

Há muitas cidades em Portugal que não têm sequer um táxi adaptado a pessoas com deficiência. Lisboa tem pouco mais de 50. Porto e Coimbra apenas um. Em Leiria, a pandemia levou um taxista a investir no primeiro carro adaptado.

Patrick Pinto tem duas licenças de táxi na cidade de Leiria. Uma delas adaptada a passageiros de mobilidade reduzida. Mas é um caso único na cidade, e percebeu que o país é ainda um deserto nessa matéria, quando decidiu, sozinho, investir nessa área. Aconteceu há um mês.

"Era uma ideia que eu já tinha há alguns anos. Mas quando tive necessidade de trocar um dos carros, estava a iniciar-se a vacinação das pessoas mais velhas. E então, a maior parte das pessoas que eu transportava, eram casais com mais de 80 anos, em que pelo menos um deles já tinha perdido a mobilidade".

Patrick viu-se assim confrontado com uma realidade que até então lhe era mais distante. "Às vezes eram os dois, no casal, com muitas dificuldades. Outras vezes apenas um deles, mas o outro, mesmo que quisesse ajudar, também não tinha grandes condições", relata ao DN, na semana em que está a estrear o primeiro veículo com licença para táxi adaptado na cidade de Leiria. A carrinha Mercedes foi sujeita a uma adaptação que custou mais de 8 mil euros, um investimento que nem toda a gente está em condições de fazer.

"Assim se percebe que, por exemplo em Coimbra, uma cidade muito maior que a nossa, em 103 licenças de táxi apenas um esteja adaptado", afirma Patrick Pinto, que quando pensou em dar este passo tentou perceber, no Porto, como era essa realidade. "Também só havia um carro nestas circunstâncias". Entretanto, o primeiro contacto para um serviço foi feito pela deputada Diana Santos (ver entrevista), do Bloco de Esquerda, durante a campanha eleitoral, numa ação de campanha que acabou por não se concretizar.

Um investimento "com pouco retorno"

"Para além do investimento ser bastante elevado, na adaptação de um veículo, o retorno que uma pessoa possa ter existe, mas por vezes o que acontece é que esses carros também são utilizados para outros fins e a necessidade acaba por não ser combatida na totalidade", afirma ao DN Joana Abreu Gorgueira, da Associação Salvador. Recorda que há alguns anos, em Lisboa, a Câmara cedeu algumas licenças (50) para colmatar essa falha, mas "muitas vezes esses táxis estão a ser utilizados para outros fins, porque as empresas também têm que rentabilizar os investimentos que fazem".

Joana Gorgueira não tem dúvidas de que a oferta é insuficiente, quer ao nível dos privados quer ao ao nível do Estado, no que respeita ao transporte. Fala da rede de táxis mas também de todas as operadoras que nos últimos anos invadiram o mercado.

"O que acontece a nível nacional, e das pessoas que nos chegam, é que os contactos são feitos diretamente com os taxistas. Ou seja, não ficam à espera de chegar a uma praça de táxis e estar lá um táxi adaptado", acrescenta Joana Abreu. Gorgueira.

A Associação Salvador tem os dados atualizados e sabe que o problema está longe de ser resolvido. Olhando apenas para a realidade de Lisboa - aquela cujos dados estão mais acessíveis, a partir do Diagnóstico Social feito entre 2015-2017 - 52.930 pessoas tinham algum tipo de dificuldade ou incapacidade total para andar ou subir degraus, o que representa 9,8% da população total de Lisboa, revelando uma prevalência ainda maior das dificuldades a nível motor no município de Lisboa. Além disso, as principais barreiras reportadas por cidadãos portugueses com deficiência são a mobilidade (48%), acesso ao meio edificado (36%) e ainda serviços de transporte (34%).

Depois de 20 anos de avaliação das condições de acessibilidade de forma empírica, a Associação Salvador e o Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade - ICVM lançaram um repto aos Municípios portugueses, através da criação de um inquérito, que pretendia estabelecer uma "radiografia" das acessibilidades e da forma como esta temática está incorporada nos processos e no dia-a-dia de cada município.

Cidades "desenhadas" para 40% da população

Os resultados revelam o Estado da Arte em Portugal, através das entidades que têm o papel mais importante na área das acessibilidades, as Câmaras Municipais. "Vivemos em pleno século XXI, num país desenvolvido e infelizmente ainda é esta a realidade com que nos deparamos." - Salvador Mendes de Almeida, Presidente e fundador da Associação Salvador. De resto, Paula Teles, presidente do ICVM, continua a insistir que apenas desenhamos as cidades para 40% da população.

O inquérito foi lançado em outubro de 2020, precisamente há um ano, para todos os Municípios, em parceria com a Associação Nacional de Municípios Portugueses, que colaborou na sua divulgação. Os principais resultados são esclarecedores: 70% nunca planearam as condições de acessibilidade (não fizeram o PLANO no âmbito do Projeto RAMPA - Regime de Apoio aos Municípios para as Acessibilidades ou os Planos de Promoção das Condições de Acessibilidade, projetos cofinanciados pelo Estado Português, entre 2009-2013, nem outro plano similar. A verdade é que 80% das autarquias não têm nenhuma estrutura dedicada a esta matéria e não têm técnicos afetos às acessibilidades, o que revela que não o assumem como uma prioridade.

"Outro dado grave que este inquérito informou, foi sabermos que, não obstante o Decreto-Lei 163/2006 de 8 de agosto exigir às Autarquias o envio anual ao Instituto Nacional para a Reabilitação - INR, de Relatórios com o estado da arte, 80% indicaram que nunca os enviaram", refere a Associação Salvador.

No que diz respeito às boas práticas, 80% dos Municípios refere que não tem um único equipamento ou espaço público 100% acessível, nem certificado.

"Não há um reconhecimento da importância das acessibilidades físicas para a integração social das pessoas com mobilidade reduzida. Existe uma falta de contacto com a realidade das pessoas com mobilidade reduzida, pois este grupo da população representa uma pequena parte da procura, uma vez que vivem numa situação de isolamento social significativa. As barreiras na deslocação, a pouca informação disponível que permita preparar as deslocações para espaços e serviços e a pouca autonomia funcional e financeira, levam a esta situação", sublinha a Associação.

Entrevista

Diana Santos, deputada do BE, a única parlamentar que se desloca em cadeira de rodas

"Chego ao caricato de ter de recorrer ao transporte de doentes para fazer turismo dentro do meu país"

Que dificuldades maiores se colocam, em Portugal, aos cidadãos portadores de deficiência em matéria de mobilidade em meio urbano?
Em Portugal ainda não se encara a mobilidade como um direito. Continuamos presos a um modelo caritativo e assistencialista em que ainda temos de agradecer por conseguir entrar num edifício público por uma entrada alternativa que foi preparada para o efeito, aos comerciantes que ao cumprirem a lei colocam uma rampa que permite o acesso a todas as pessoas e às (poucas) empresas dedicadas aos transportes que permitem às pessoas com deficiência exercer o seu direito de livre circulação como os demais cidadãos e cidadãs do país. É como se o espaço público não nos pertencesse, logo, o nosso usufruto ao mesmo depende da boa vontade alheia. Em pleno século XXI temos pessoas com deficiência reféns do seu território, quem viva com mobilidade reduzida por exemplo em Beja, Vila Real ou outras zonas do interior, só poderá deslocar-se de carro o que tem um impacto negativo brutal nas oportunidades destas pessoas, seja ao nível dos estudos, trabalho e até na construção de relações sociais e afetivas ou no acesso a cuidados de saúde, lazer e cultura.

O facto de existirem menos de uma centena de licenças de táxi adaptados em todo o país (mais de metade em Lisboa) é preocupante? Como é que se pode incrementar o apoio e investimento neste tipo de resposta?
Estamos mais uma vez a falar de direitos humanos e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada por Portugal há mais de 12 anos é muito clara quando, no seu artigo 9º, postula que os Estados Partes têm de tomar as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em condições de igualdade com os demais, ao ambiente físico, ao transporte, à informação e comunicações. A discriminação acresce quando não somos considerados consumidores que é o que acontece com a maioria da companhia de táxis existente no nosso território. Sentem que o investimento financeiro que estão a fazer ao adaptar um táxi para pessoas que se desloquem em cadeira de rodas, nunca lhes trará o retorno merecido. Falta visão para perceber que um táxi que responda às necessidades de qualquer cliente é um táxi com muito menos hipóteses de "ficar parado" em condições adversas, como foi a situação pandémica que agora vivemos. É sim muito preocupante a escassa oferta que existe a nível nacional. Chego ao caricato de ter de recorrer ao transporte não urgente de doentes para fazer turismo dentro do meu país por ser a única resposta existente. Poderá ser favorável haver apoios financeiros para as adaptações das viaturas, desde que os mesmos sejam acompanhados de fiscalização intensa e continuada. Lisboa é neste momento detentora de mais de meia centena de táxis adaptados porque, há cerca de 10 anos atrás, quando não havia disponibilização de licenças para nenhum taxista, a CML decidiu atribuir 50 licenças a quem quisesse operar com táxis adaptados, precisamente para incentivar esta resposta. Contam-se pelos dedos de uma mão aqueles que disponibilizam os seus serviços a esta franja da população.

Enquanto deputada tem tido oportunidade de dar maior visibilidade a esta causa. Sente algum retorno prático da sua intervenção?
As pessoas com deficiência só poderão ser encarados como cidadãos e cidadãs plenos de diretos quando as temáticas que nos digam respeito deixem de ser encaradas como causas que afetam apenas uma minoria de pessoas. Os problemas de mobilidade urbana que existem afetam todas as pessoas, seja ao nível das acessibilidades, da eficiência e efetividade dos transportes públicos, da segurança na deslocação das pessoas ou do desenvolvimento sustentável das cidades. Para haver efetiva mudança a curto prazo é essencial ter pessoas com deficiência em lugares de decisão, no entanto, para que a mudança se concretize é igualmente importante que sejamos vistos como cidadãos de primeira, com necessidades e preocupações (embora específicas) transversais a todas as outras pessoas.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG