Elvira e Joana são vítimas de assédio laboral, mas por razões diferentes. Uma por que recusou um caso com o diretor de serviço, a outra porque ocupava funções onde este queria colocar um "amigo", mas Elvira há mais tempo do que Joana. Ambas aceitam falar ao DN, por os advogados considerarem que os seus casos integram os requisitos definidos na lei do assédio, embora sob anonimato, receiam mais represálias, porque "no SNS a prática é igual a impunidade.".Entre Elvira e Joana há uma geração a separá-las, cidades natais diferentes e a própria formação geral e especifica em universidades e unidades diferentes. Conhecem-se há poucos anos, quando Joana é contratada como especialista para o serviço onde Elvira é médica do quadro há muitos anos. Assim que Joana entrou no serviço percebeu que a relação era tensa entre o diretor de serviço e alguns colegas, mas ela não tinha razão de queixa, até um dia..Elvira, pelo contrário, é vítima de assédio laboral, pelo menos desde 2015, por parte do mesmo diretor de serviço, com quem trabalhou antes lado a lado, como colega. Dele diz que "sempre foi um elemento desestabilizador, em relação aos colegas e às próprias chefias, mas mais controlado do que agora. Tivemos três chefias antes dele e a dinâmica era completamente diferente, não havia insultos, humilhação ou medo"..Mas a verdade é que um dia ele conseguiu o que queria: "A nomeação. E alguns de nós até achámos que poderia dar novo ritmo ao serviço. Foi buscar muita gente nova. No início, precisava das pessoas e o relacionamento era cordial, depois começou a mostrar-se, a chamar colegas ao gabinete e a repreendê-los aos gritos, a mudar-lhes horários, a insultá-los e a humilhá-los em reuniões. Comigo, tudo mudou a partir do momento, em que recusei passar do relacionalmente profissional para um mais pessoal. Custa-me a acreditar nisto, mas é a única razão que vejo para ele me começar a infernizar a vida depois de o ter recusado, porque continuei a ser a mesma profissional"..Ambas são médicas especialistas em Medicina Interna e diferenciadas em outras especialidades. Por todos os serviços e hospitais em que passaram eram consideradas mais-valias. Agora, assumem, "somos também tratadas de forma humilhante. Contado ninguém acredita que os médicos, uma classe diferenciada, passem por situações destas", mas é verdade e com a conivência de direções clínicas e administrações..DestaquedestaqueDesde serem chamadas ao gabinete para serem repreendidas, convocadas para reuniões onde são humilhadas, a terem uma carga horária tão elevada que não dava sequer para cumprir o período de descanso na lei. Elvira e Joana já viveram de tudo. .A certa altura, ganharam coragem e apresentaram queixa à cadeia hierárquica, sem nunca falar em assédio laboral, mas em discriminação e ambiente tóxico. Pediram ajuda psicológica ao gabinete que, supostamente, deveria apoiar os profissionais na luta contra o assédio, mas o resultado foi pior. A administração e o diretor de serviço ficaram a saber o que ali tinham dito. Deixaram de confiar numa solução interna e começaram a procurar alternativas e avançaram com queixa no gabinete jurídico do sindicato, na Federação Nacional dos Médicos (FNAM)..Joana, com quase 20 anos de serviço, diz que nunca viu nada assim, confessa que gosta do trabalho que faz, de estar naquele hospital, mas, aos 43 anos confessa: "Não estou para isto. Quero continuar ali, mas não sei se haverá alguma mudança. Provavelmente, vou para outro hospital"..Elvira tem a vida pessoal alicerçada junto ao hospital e, aos 54 anos, e com dois filhos pequenos, confessa que não lhe apetece começar tudo de novo, embora tenha chegado ao ponto de "deixar de dormir e ter de meter baixa". Até quando? Não sabe. Sabe que a única solução para o caso dela e de outros colegas era a mudança da direção de serviço, dizendo mesmo "não vou voltar àquele ambiente"..Sente-se exausta. Quando começou a ser alvo de repreensões, de chamadas ao gabinete e até a reuniões com outros colegas, onde o seu trabalho era questionado sem ninguém poder dizer nada, começou a isolar-se de tudo e de todos. "Só queria estar concentrada no meu trabalho, fazê-lo bem, fazer tudo pelos doentes, e não ser humilhada", mas teve de aprender a responder - ou pelo menos a tentar responder, "porque quando ele (diretor) chama alguém ao gabinete não é para nos ouvir, não deixa ninguém falar. É insultuoso, humilha as pessoas, atua como se nos fosse bater. Diz-nos que não prestamos, que nem deveríamos ser médicos, que se não fosse ele não éramos nada e cada pessoa que ali vai sai de rastos, sem palavras e, muitas vezes, a chorar, porque sabemos que, depois, ninguém faz nada"..O que contam do comportamento do diretor de serviço parece um filme. Elvira mostra-se desgastada, não sabe como tem aguentado e conta que, "desde 2015 até agora, só tive duas escalas que foram cumpridas integralmente tal como está definido no meu contrato. Ao longo deste tempo, a minha escala tem sido mudada semana a semana, mês a mês. Tenho dois filhos pequenos, no início ainda eram mais pequenos, e tinha de me organizar como podia, a minha vida era um stress, mas tentava tudo para não gerar mais confusão"..Depois, começou a perceber que lhe "estava a retirar funções que me tinham sido atribuídas por ser especialista e que as entregava a quem chegava de novo. Não disse nada, só queria passar pelos pingos da chuva". Foi ao sindicato para ter a certeza se era ou não legal o que lhe fazia, mas não avançou com queixa..DestaquedestaqueDeu-me uma carga horária tão elevada que para eu desistir. Todas as semanas fazia duas urgências, os sábados fazia de 15 em 15 dias 24 horas e todas as quartas-feiras tinha urgência toda a noite. .Quando chegou a altura de ela fazer mais formação numa especialidade, voltou a ser castigada: "Deu-me uma carga horária tão elevada que para eu desistir. Todas as semanas fazia duas urgências, os sábados fazia de 15 em 15 dias 24 horas e todas as quartas-feiras tinha urgência toda a noite. Isto juntamente com a formação e com os turnos que tinha de fazer no outro hospital. Ele podia atribuir as noites a outra pessoa, havia especialistas para isso.".Começaram também a aparecer-lhe horários sobrepostos nas escalas. "Cheguei a estar escalada para duas urgências no mesmo dia, no hospital da formação e no meu. Ele sabia a nossa escala no hospital de formação, questionei por email se era engano, nunca me respondeu. E eu tinha de resolver a situação. Outras vezes marcava-me turnos a partir das 08:00 quando estava a sair de 24 horas de urgência do outro hospital. Tinha de fazer vários quilómetros e não cumpria tempo de descanso, o que não é legal, mas tive de resolver tudo durante oito meses. A pessoa que me estava a dar formação percebeu o que estava a acontecer, já tinha trabalhado comigo e conhecia-me como profissional. Abordou a questão de eu não estar as horas que devia na formação, eu disse que era impossível. E ele passou-me"..Paralelamente, conta que recebia mensagens escritas, áudios, emails com ameaças se não fizesse isto ou aquilo, embora nunca a tenha ameaçado com processo disciplinar, como fez a outros colegas. "Ele ameaça uns, mas consegue sempre o apoio de outros que acham que ao lado dele podem ascender, deixando-nos completamente isolados"..Para Elvira, a "essência disto tudo é o haver um homem que, por motivos pessoais, quer chegar à direção clínica ou a cargos políticos e com uma vontade insaciável de poder, de mandar, e por isso explora todas as fragilidades de quem trabalha com ele. Quando ele não está a equipa até trabalha bem"..Joana recorda que a frase que mais retém do diretor, e que nunca ouviu da boca de outro chefe para a equipa, é: "Quanto menos fazem, menos querem fazer. E isto não é de todo verdade, porque se o serviço tem resultados é pelos profissionais que lá estão. Ele já não vê doentes e só pensa em fazer horas extras"..Conta que quando entrou no serviço, precisamente na fase da Covid-19, não notou muitas coisas, mas "o diretor também fazia trabalho mais organizativo, não passava muito tempo no serviço, estando só nas reuniões de departamento, mas fazia algo que já não achava correto, criticava as pessoas e ia-se embora, nem as ouvia. Mas na altura estávamos todos cheios de trabalho e com muita pressão, mas com o esforço de todos o hospital conseguiu organizar-se e dar resposta"..Mais tarde, notou que "o tipo de assédio laboral que exercia era mais cerrado com as mulheres. O meu caso tem mais a ver com o facto de ele me ter atribuído funções de chefia, embora nunca tivesse sido nomeada, para coordenar um trabalho que deu grande crédito ao serviço e ao hospital, e depois me querer tirar essas funções"..Mas quando a covid alivia começo a perceber que também me está a pressionar, a chamar ao gabinete para repreender, quando até ali tinha feito tudo bem, a mudar-me as escalas e a desorganizar a minha vida, a ligar-me nas folgas e nas férias a fazer reparos e críticas sem sentido, a questionar as minhas decisões. No fundo, a dar a entender que, afinal, eu não servia para o cargo. Mas, afinal, o que queria era nomear para o cargo a pessoa mais próxima dele, que estava a terminar a especialidade"..DestaquedestaqueJoana, com quase 20 anos de serviço, diz que nunca viu nada assim. Gosta do trabalho que faz, mas aos 43 anos diz: "Não estou para isto. Provavelmente, vou-me embora". Elvira deixou de dormir e acabou por meter baixa..Nesta altura, Joana percebeu o que Elvira sabia há muito: "Primeiro, explora as pessoas com trabalho, porque estão de boa-fé, depois desvaloriza-as. E decidi deixar as funções e ele ficou passado, queria que eu ficasse até o colega acabar a especialidade. Não fiquei. A partir daí, ora estou no grupo de consulta, ora de prevenção, ora sou chamada para a urgência, ora sou convocada para reuniões para presenciar colegas a serem enxovalhados. Não estou para isto. Levei a situação ao sindicato e vamos ver o que dá, embora acredite que só com a mudança das estruturas hierárquicas é que e resolver a situação", porque "a gestão deste senhor é tóxica"..Desde que está no serviço, saíram quatro médicos. Elvira diz que entre 2015 e 2020 outros já tinham saído, "ele continua" e é "vergonhoso que a tutela não se envolva e que as administrações permitam esta prática". Aos olhos de todos, isto significa que "o assédio no SNS é igual a impunidade."