Sociedade
02 fevereiro 2023 às 00h11

Um chef à procura de trufas pelo país profundo

Com a ajuda do italiano Giovanni Longo e das cadelas pisteiras Lolla e Laika, o chef Tanka Sapkota percorre o país durante um mês, à procura de um dos ingredientes que o notabilizou: as trufas. O DN acompanhou-o pela serra de Sicó.

Tanka Sapkota veste um fato impermeável verde-tropa, à laia de camuflado, que lhe permite enfrentar a humidade gélida da serra de Sicó. O que para a comitiva que o acompanha pode parecer uma adversidade, pode bem ser uma benção para o futuro: é ali que o chef espera encontrar trufas, ou as condições propícias para as ver propagar.

Desde o dia 6 de janeiro que o cozinheiro nepalês - proprietário das pizarias Come Prima e Forno d"Oro, além dos restaurante Il Mercato e casa Nepalesa - anda pelo país à procura desse cogumelo hipógeo, ou subterrâneo, que germina naturalmente junto às raízes de azinheiras, carvalhos e choupos, em terrenos com altos índices de calcário e silicatos, em zonas de pedra-mãe.

Começou no norte, e tem vindo a descer nas últimas semanas. Ele e a mulher, Sita, são acompanhados por Giovanni Longo, um caçador de trufas do Piemonte (Itália), e as suas duas cadelas pisteiras, Lola e Laika. São elas, afinal, que farejam os terrenos à procura da iguaria com que Tanka trabalha desde o início dos anos 90 - e cuja vontade de explorar ainda mais tem vindo a crescer. Porque ao contrário do que sucede em Itália - ou mesmo na vizinha Espanha -, em Portugal são tão raras que nunca foi identificado um "filão" que desse origem a uma exploração sustentada. É esse obstáculo que o chef Tanka tenta agora superar, por sua conta e risco, contando apenas com o apoio logístico de alguns professores das universidades de Coimbra, Évora e Lisboa.

É o caso de Pedro Bingre do Amaral, do Instituto Politécnico de Coimbra, que há-de juntar-se ao grupo ao início da tarde, quando Tanka já tiver identificado alguns exemplares de trufas vermelhas (as de menor valor comercial), na fronteira do concelho de Ansião com Alvaiázere, a norte do distrito de Leiria. "Este solo é o ideal do ponto de vista geológico e climático", afirma o professor, que conhece bem a zona. Porém, a comitiva deparava-se, não raras vezes, com um problema: o terreno ardido. Aquela foi também uma zona bastante atingida pelos incêndios no verão passado (como de resto é usual) e o solo nessas condições já não reúne as várias propriedades elencadas para a criação de trufas. "Assim já não é possível inocular", refere Pedro Bingre.

Além do meio académico, o chef andou meses em conversas com o poder político. "Como sempre faço na minha vida, meti isto na cabeça e não desisti. Há três ou quatro anos que pensava nisto. Mas no verão passado decidi-me a fazê-lo. Falei com o Ministério do Ambiente e com o Ministério da Agricultura. E foram eles que disponibilizaram três engenheiros florestais, fundamentais para identificar as zonas onde poderíamos ir, para localizar os terrenos", diz ao DN. A maioria dos que agora calcorreamos estão já revoltos. "Andaram por aqui os javalis", avisa Tanka, à medida que avança, atrás de Laika e Lola. Quem ali mora sabe que são eles [os javalis] os maiores "farejadores" das trufas, e de tudo o que é cultura, afinal. Numa região fortemente despovoada, acumulam-se terras em pousio. Os carvalhos, os choupos, as azinheiras e as oliveiras vão embelezando a paisagem à medida que atravessamos as aldeias daqueles dois concelhos, mascarando essa realidade sombria do abandono.

"Os proprietários quase sempre ficam contentes de nos verem nos terrenos, quando aparecem. Temos sido muito bem recebidos por onde andamos", conta Tanka, quando questionado a respeito dessa "invasão" da propriedade privada. Há de acontecer nesta manhã de janeiro. Alertado pelo movimento, um morador desce a encosta para ver do que se trata. Pensou "que era a televisão, por causa da Feira dos Pinhões", que animou a vila de Ansião no final do mês. De trufas "nunca tinha ouvido falar", e "cogumelos já não é tempo deles".

Tanka acredita que este esforço nunca foi feito em Portugal. Neste trabalho de campo, todas as amostras serão enviadas para laboratório, para validação. A trufa branca é a mais rara e valiosa, mas também há trufas negras, vermelhas e de outras espécies. No Alentejo encontram-se as "trufas do deserto", ou túberas, que se desenvolvem mais em solos arenosos e ácidos. Mas por vezes também se encontram na Beira Baixa e Beira Litoral.

Da serra de Sicó o cozinheiro seguiu para as serras de Aire e Candeeiros, numa linha traçada de norte para sul, qual "Cavaleiro das Trufas Brancas (e dos vinhos de Alba)", título com que foi agraciado em 2019 pela Ordem dos Cavaleiros do Tartufo de Alba, sendo o único em Portugal a ter recebido essa distinção por parte daquela confraria eno-gastronómica.

"Receber o diploma de Alba representou para mim um grande orgulho, mas melhor ainda seria conseguir encontrar esta maravilhosa matéria prima em Portugal", afirma Tanka Sapkota, certo de que "a trufa pode ser um símbolo da valorização que um produto gastronómico pode fazer por uma região, a nível turístico e económico. E do que em Portugal também poderia ser feito em torno dos produtos icónicos de cada região".

Desde 1992 que o chef Tanka trabalha com este produto e o serve todos os anos aos seus clientes, o que fez dele uma referência na área da trufa branca no país. "Serve-se sempre com ovo, ou com massa fresca", recomenda, ele que conseguiu trazer para Portugal, em 2018, uma trufa branca de 1153 gramas - a maior da década na Europa, e uma das maiores da História. O valor de mercado deste ingrediente ronda atualmente os 1000 euros/quilo.

O chef nepalês está em Portugal desde 1996. "Vinha por 15 dias e acabei por ficar", conta ao DN. Antes disso, viveu e trabalhou na Alemanha e em Itália. Foi aí que se apaixonou e especializou-se na gastronomia italiana.
Tanka está visivelmente mais magro, ao cabo de dias e noites empenhado nesta empreitada. O primeiro objetivo é encontrar trufas, sim, mas o segundo é inocular. "Ficaria muito feliz se daqui a um tempo voltasse aqui e encontrasse uma floresta limpa e cheia de cogumelos, mesmo que não fosse de trufas", sorri Tanka, com o mesmo ar de menino com que descreve a ideia desta aventura, inteiramente suportada por si. Há quem lhe possa chamar louco. O chef sorri de novo. "Sabe, eu não fumo, bebo pouco, trabalho muito, acho que tenho o direito de fazer isto".

dnot@dn.pt