Sociedade
17 agosto 2022 às 22h31

Restauração. Falta mão-de-obra ou faltam condições?

Os empresários do setor queixam-se da falta de pessoas para trabalhar. O que lhes vale são os imigrantes, mas falta-lhes formação. Os trabalhadores culpam os baixos salários e os horários, que afastam quem estudou para a profissão.

Céu Neves

Os restaurantes e cafés queixam-se de falta de mão-de-obra. Estes empresários pedem ao governo incentivos e que se dinamize a contratação de imigrantes. Sindicatos e trabalhadores contrapõem que há pessoas, o que falta são condições. Argumentam que trabalhar aos fins de semana e feriados, com horários repartidos, muitas vezes só com uma folga semanal, e por pouco mais do que o salário mínimo, não é atrativo. Manuel e João ilustram bem essa realidade: o primeiro está há 27 anos no mesmo restaurante; o segundo vai mudar-se para um call center.

Manuel Afonso, 53 anos, nasceu em Castelo Branco, migrou para Lisboa e entrou logo para o ramo. Posteriormente, tirou o Curso de Empregado de Mesa na então Escola de Hotelaria das Olaias. Está há 27 anos no Bonjardim, na Travessa de Santo Antão, na Baixa lisboeta. É chefe de mesa. "Gosto do que faço, temos uma boa união e o ambiente é excelente".

Os argumentos poderiam ser os mesmos de João Azevedo, 24 anos, só que ele está de saída d"O Forninho Saloio, na Travessa dos Parreiras, perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa. Entrou em 2019, também gosta do ambiente e o patrão elogia-lhe as capacidades profissionais. Mas, ainda assim, vai sair. "É uma grande carga horária e estou saturado de trabalhar aos sábados. Vou à procura de outras oportunidades, ainda sou jovem". O ordenado será o mesmo, cerca de 750 euros mensais limpos.

Estudava e começou a trabalhar numa cadeia de fast-food, conseguiu terminar o 12.º ano, mas concluiu que não dava para conciliar os estudos de nível superior. Fez depois formação na área, num restaurante conceituado na Baixa.

Manuel e João têm horário repartido, apresentam-se ao serviço ao almoço e ao jantar, um dos aspetos mais negativos da profissão. O chefe de mesa entra às 10.30 e sai às 15.00 para regressar das 17.00 horas até à meia-noite. "Não dá para ir a casa, temos uma sala para descansar". Isto, apesar de morar em Lisboa, na Penha de França. O jovem colega entra às 10.30, sai às 16.00, para voltar as 18.30 e acabar perto das 00.00 horas. "Consigo ir até casa descansar uma hora". Reside em Loures.
Ainda assim, os dois restaurantes não são os locais mais difíceis para trabalhar.

Manuel consegue folgar aos fins de semana, caso único no seu estabelecimento. O ordenado mensal é de 770 euros brutos, mas as gorjetas representam mais 300 euros por mês. São apenas partilhadas entre empregados de mesa e é uma das razões por que se mantém mais tempo - há vários com mais de 20 anos de casa.

O Bonjardim nasceu há 72 anos e a especialidade é o frango assado. Começam a servir às 11.30, sem interrupção até fechar, todos os dias da semana. Muitos turistas à mesa.

O Forninho Saloio serve comida tradicional portuguesa, com pratos mais acessíveis ao almoço, o que lhes permite ter uma clientela assídua entre os funcionários das empresas locais. E há os fregueses pontuais, sobretudo aos fins de semana, também estrangeiros. O que recebem em gorjetas não é muito expressivo, mas os períodos de descanso são uma vantagem. Encerra ao domingo e à segunda e terça só funciona ao almoço, as cozinheiras conseguem fazer um horário seguido.

Destaquedestaque177 500 empregados

Fecham cinco semanas para férias. Tem 12 funcionários, na maioria portugueses.
João Azevedo explica porque não há mão-de-obra: "A carga horária é muito grande e com horário repartido, o que tira bastante tempo, sobretudo aos jovens". Raramente participa nas festas da família e amigos, em geral, à sexta-feira e ao sábado à noite. Fala inglês e vai trabalhar a partir de outubro numa multinacional de call center.

Manuel Afonso admite que é difícil trabalhar na restauração. "Há quem venha de manhã e já não volte à tarde. O motivo é o tipo de trabalho (os clientes têm de ser servidos rapidamente) ou é o horário, não querem trabalhar ao fim de semana".
O Bonjardim tem 34 funcionários, portugueses e brasileiros. Precisam urgentemente de dois empregados para o balcão para voltar a abrir o primeiro andar. São eles que fornecem a comida e bebidas para as mesas. Não têm gorjetas, recebem o salário mínimo, 705 euros mensais, tal como os ajudantes de cozinha e os empregados de mesa de 2.ª . Os cozinheiros ganham mais.

Diogo Estêvão, 35 anos, é o filho mais velho do casal Estêvão, que abriu O Forninho Saloio há 27 anos. Formado em Psicologia, tendo trabalhado no futebol, acabou por se dedicar ao restaurante. Ficou-lhe o bichinho das horas ali passadas desde miúdo. Estão num ciclo de contratação e com muitas dificuldades. "Temos bastante falta de mão-de-obra e, se for qualificada, é muito raro encontrar. As margens de lucro são muito pequenas, não nos permitem pagar salários mais altos. Trabalhamos com produtos frescos e queremos ter uma boa relação qualidade/preço". Ao almoço, os pratos variam entre 9 e 13 euros, ao jantar, são mais caros.

Sublinha a mãe, Anabela Estêvão, 56 anos: "O meu marido é que vai às compras e faz questão de comprar o que é bom. Se o produto é bom e o soubermos trabalhar, com certeza que o cliente volta". Recorda os tempos iniciais, quando eram "muito jovens"."Era fácil encontrar quem viesse trabalhar."

Diogo reconhece que é uma área difícil. "São muitas horas de trabalho, muito stress , e a maioria dos salários não são grandes, dependendo uma boa parte das gorjetas e que não são significativas". Pagam ordenados em média de 900 euros brutos, o que reduz para 750 limpos. Lamenta a saída do João, que se fez na casa e é "um bom empregado de mesa". O penúltimo funcionário que saiu foi trabalhar para um grande supermercado grossista. Mas não lhes pode levar a mal.

O pessoal da cozinha mantém-se mais tempo. Uma delas é Rute Silva, 47 anos, há 20 na casa. Porquê? "Gosto de trabalhar aqui, o ordenado é um pouco melhor que nos outros sítios, há um bom ambiente. É como em todos os empregos, ficamos se nos sentimos bem."

São quatro mulheres na cozinha, todas com um único turno diário. Rute entra às 07.10 e sai às 17.00. "Usam-se os horários repartidos, com duas horas de intervalo. Ou vivem perto do local de trabalho ou não dá. É por isso que as pessoas não vêm para a restauração. Eu tenho sorte, às 17.00 vou à minha vida".

A carruagem-bar Luar da Barra, na Praia da Torre (linha de Oeiras), existe há 31 anos, passou de pai para filho, que é Afonso Ribeiro. Tem mantido o grosso da equipa, mas ultimamente está a ser mais difícil. "Há maior rotação, talvez por haver mais oferta de emprego. E sinto que há falta de seriedade, é tudo descartável, qualquer motivo é razão para faltar", lamenta.

Os funcionários têm um horário seguido - das 10.00 às 19.00 ou das 16.30 às 01.00 -, geralmente com uma folga semanal, e recebem salários entre 900 e 1200 euros brutos.

"Prefiro fazer um esforço e pagar acima da média para não estar sempre a dar formação, fica mais caro. Só se conseguem segurar as pessoas se oferecermos condições. Ter uma equipa regular também é melhor para os clientes. Por mim falo: se vou a uma casa com muita rotação, acho que algo não está bem. Manter os funcionários é importante, até para os clientes habituais", defende Afonso Ribeiro.
O Luar da Barra serve refeições ligeiras, bebidas e cocktails ao longo do dia.

"Trabalha-se bem no verão e aguenta-se o inverno". Tem 17 funcionários todo o ano - dois portugueses, seis nepaleses e nove brasileiros. O mais antigo é Manuel Fernandes, 62 anos, barman, o mais recente entrou há dois meses. Um dos gerentes é nepalês e chegou a Portugal há seis anos, tantos quantos tem da casa. E uma angolana, cozinheira, foi a primeira pessoa, e a única, a reformar-se na empresa.

Manuel tirou o curso de barman na Escola de Hotelaria do Estoril, grande parte da sua vida foi em bares e discotecas. Está há 14 anos na carruagem-bar. "Entrei com o pai do proprietário, estou enraizado e sempre me trataram bem." Começa às 16.30 e sai às 01.00, tem uma folga semanal. Mora na zona, onde as rendas são mais acessíveis que em Lisboa, o que é uma vantagem para quem ali trabalha.

Considera que não há falta de mão-de-obra. "O que falta são melhores condições, mas quem abraça a hotelaria sabe que é uma missão, que não pode ter vida. Ou gosta do que faz ou não há hipótese."

Anju Shestha, 24 anos, começou há sete meses e é cozinheira. Imigrou de Katmandu, a capital do Nepal, há quatro anos e meio. Trabalhou na apanha de laranjas no Algarve. Três anos depois veio para Lisboa, para a cozinha de um café, de onde saiu para um restaurante na Linha. Voltou a mudar e não foi pelo ordenado - ganha o mesmo, cerca de 800 euros limpos. As gorjetas são divididas por todo o staff.

"Queria mudar e vim aqui perguntar se tinham falta de pessoas. Pagam tudo certo, os colegas são simpáticos, trabalha-se bem", justifica. Entra às 10.00 e sai às 19.00, folga à terça-feira. Anju tinha uma loja online de venda de ténis no Nepal, mas queria emigrar e ouviu falar bem de Portugal, "do Ronaldo". Veio e comprovou as boas informações.

"É um país bonito, as pessoas são simpáticas". Mora em Paço de Arcos com o namorado, um português que também está na restauração.

O restaurante bar Grande Onda, em Carcavelos, tem 30 funcionários, cinco são portugueses, três africanos, um venezuelano e um peruano, os restantes são brasileiros. "Os funcionários que aparecem são imigrantes, vamos funcionando com esses e com os antigos a darem formação. Vêm à procura de uma oportunidade e é mais fácil arranjar emprego na restauração", explica Afonso Crisóstomo, 66 anos. Tem outro espaço em Cascais.

Os estrangeiros precisam de ter número de contribuinte, um contrato de trabalho e a inscrição na Segurança Social para obter autorização de residência. Só que não podem prestar um trabalho de qualidade, reconhece o empresário. "Muitos vêm de um meio que nada tem a ver com a restauração e há o problema da língua". Daí optar pelos brasileiros quando pode.

Afonso também atribui a escassez de trabalhadores nacionais à pandemia. "Fechámos e as pessoas tiveram de se agarrar a outros trabalhos e muitos não voltaram".

Estão à beira-mar e, no verão, "tinha muita oferta de estudantes, o que já não acontece". O restaurante tem três turnos, não há horários repartidos, e os funcionários podem fazer todas as refeições, inclusive levar para casa. É uma vantagem para Afonso Crisóstomo, que paga cerca de 710 euros mensais. No fim do verão não consegue ficar com toda a equipa e reduz de 30 para 20.

Pablo Lima, 41 anos, saiu de Santa Catarina, no sul do Brasil, há cinco anos. Imigrou à procura de qualidade de vida. Tem sete filhos, três já nascidos no país. Está no Grande Onda há cerca de dois anos e é dos mais antigos na casa. "É um ambiente muito familiar e o patrão é uma pessoa muito carismática. Fiquei também pela perspetiva de crescimento. Quando cheguei não sabia abrir uma garrafa de vinho e hoje sou chefe de mesa".

Era controlador ferroviário. É ele quem faz a gestão dos clientes. Entra às 12.00 e sai às 22.00. Não revela quanto ganha, apenas que recebe entre 50 a 150 euros de gorjetas por mês.

O Sindicato de Hotelaria, Turismo e Restauração tem vindo a denunciar as más condições de trabalho, salientando que "centenas de milhares de trabalhadores" recebem o salário mínimo. "Não se compreende por que é que, existindo formação no setor, não se fixam estes jovens, que optaram por fazer um curso profissional e, depois, vão para outras áreas. E os governos fizeram investimento em escolas", argumenta António Baião, presidente da estrutura do Centro.

Destaquedestaque50 000 trabalhadores em falta

Realizam várias ações de sensibilização na região, a última será no dia 30, na Figueira da Foz. As razões que apontam para as pessoas não quererem ir para a restauração são os baixos salários, os horários desregulados, carga horária excessiva e falta de compensação pelo trabalho extraordinário. "Em vez de se dizer que há falta de mão-de-obra, devia questionar-se quais os salários praticados e em que condições se trabalham", salienta António Baião.

Critica o facto de não se exigir formação a quem quer abrir um estabelecimento na restauração e que o empresário que investe queira ter lucro rápido. Dá o exemplo do IVA na restauração, que entre 2012 e 2016 foi de 23% e, depois, passou para 13%, mas nem os funcionários receberam melhores ordenados, nem os clientes viram os preços baixar. E elogia a Espanha. "Não só o salário é maior, como há uma preocupação social e económica. Só a qualidade do serviço pode trazer turismo com capacidade económica para aumentar o custo dos serviços e os ordenados dos trabalhadores".

No dia 12 deste mês assinaram com a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) uma nova tabela salarial para a restauração e bebidas, num processo negocial que classificam de "muito difícil". Acordaram salários entre 705 euros (copeiro até dois anos) e 1110 (chefe de cozinha/ mestre pasteleiro); um cozinheiro, um barman, empregado de mesa ou pasteleiro de 1.ª recebe pela tabela 805 euros mensais brutos.

Ao DN, a direção da AHRESP refere que a "escassez de trabalhadores no turismo não é uma via de sentido único, mas sim uma responsabilidade partilhada por todos e que é preciso agir em várias frentes".

"É fundamental que as empresas tenham capacidade para gerar riqueza, para poderem oferecer melhores condições aos colaboradores, pois apesar da retribuição financeira não ser o único tópico a ter em conta nas soluções para o problema, é um ponto incontornável", sublinha. Congratula-se com os passos dados pelo governo, nomeadamente na agilização dos vistos para os imigrantes oriundos da Comunidade de Países da Língua Portuguesa e pede também outras medidas, como a redução dos encargos fiscais.
ceuneves@dn.pt