Sociedade
30 janeiro 2023 às 15h56

"O caso do bebé sem rosto foi o mais difícil dos meus mandatos. Senti-me pequenino no mundo"

Em fevereiro, Miguel Guimarães passará o testemunho ao candidato que vencer a segunda volta das eleições para bastonário dos médicos. Foram seis anos de "missão", "dedicação exclusiva" e de "muito trabalho feito", assumindo mesmo que, durante a sua liderança, a Ordem fez de tudo: regularizou o Ato Médico, vacinou profissionais e pediu desculpa por alguns profissionais. Balanço feito, "compensou", diz.

Tinha marcado uns dias de férias para depois das eleições à Ordem dos Médicos, cujos resultados foram conhecidos a 19 de janeiro. Não contava com uma segunda volta, que foi o que aconteceu, e com o ter de prolongar, pelo menos, o seu mandato como bastonário por mais um mês, mas o balanço há muito que o tem preparado. E à pergunta sobre os momentos marcantes dos últimos seis anos, Miguel Guimarães, de 60 anos, especialista em Urologia e em Transplantação, não hesita: "Tive três momentos muito fortes. Um foi o caso do bebé sem rosto, em Setúbal, e os outros dois durante a pandemia: o caso das mortes no Lar de Reguengos de Monsaraz, ao qual a Ordem teve de fazer uma auditoria clínica, e depois o processo de vacinação aos médicos que não integravam o Serviço Nacional de Saúde (SNS)".

Mas o caso do bebé sem rosto, ocorrido em outubro de 2019, quase no final do primeiro mandato, "foi o momento mais difícil e mais forte que vivi, talvez até tenha sido o momento mais difícil vivido por uma direção da Ordem, porque teve uma dimensão internacional nunca vista. O caso abriu os jornais de todas as cadeias de televisão europeias, da CNN, nos EUA, foi notícia na Austrália e na Ásia, não me lembro de alguma vez haver um caso com esta projeção", diz. E continua: "Senti-me pequenino no mundo. Tinha de defender a Ordem dos Médicos portugueses e tinha tudo contra mim. Tive de pedir desculpas publicamente a todos os portugueses", confessa ao DN, recordando: "Fui eu que abri a queixa disciplinar ao médico, que já tinha outras queixas no Conselho Disciplinar da Secção Sul, mas que não tinham tido resposta. Hoje, penso que se tivessem tido, se calhar este caso não teria existido", admite, embora "esteja de consciência tranquila, porque tudo o que dependia da Ordem em relação a este caso, a Ordem fez". "A ação do médico foi avaliada e o caso acabou com a sua expulsão da Ordem dos Médicos. Falei com ele algumas vezes, sei que deixou de exercer, por sua iniciativa, mas que recorreu da nossa decisão para os tribunais administrativos."

Para Miguel Guimarães o caso do bebé sem rosto foi mais do que apenas uma questão de ação médica, foi também um caso que "mostrou as dificuldades que os organismos do Estado têm em regular e fiscalizar os cuidados em Saúde praticados através das convenções que as ARS fazem com unidades privadas ou outras". Aliás, diz mesmo, "foi um caso que veio mostrar a grande fragilidade da Entidade Reguladora da Saúde, podendo até questionar-se se esta serve ou não para alguma coisa".

Três anos depois deste caso - e com o bebé sem rosto, de nome Rodrigo, a sobreviver, furando todas as expectativas da Medicina, e depois de o Ministério Público de Setúbal ter arquivado o caso contra o médico -, Miguel Guimarães diz que a Ordem conseguiu criar regras para melhorar a qualidade da Medicina, na área da realização de ecografia obstétrica avançada, tendo feito uma proposta de mudança do próprio estatuto à Assembleia da República, para que fosse aceite a criação da figura do Provedor para a Saúde, que defendesse os doentes. Mas, comenta, "já lá vão mais de três anos e nunca obtive resposta da Assembleia". O caso foi difícil e o único em que teve de assumir "a responsabilidade da Ordem como um todo, mas nada deixámos por fazer".

A seguir, logo após ter sido eleito para um segundo mandato, é decretada a pandemia. "Sou reeleito em janeiro de 2020 e rapidamente a Ordem teve de se reorganizar para lidar com o que estava a acontecer no mundo e no país. Criámos um gabinete de crise para apoiar os médicos e as autoridades de Saúde e nunca mais parámos", conta. E no primeiro ano de pandemia elege a morte de cerca de 20 pessoas no Lar de Reguengos de Monsaraz como momento marcante.

"Tivemos de avançar com uma auditoria, a qual mostrou claramente à sociedade civil a forma como estamos a tratar os nossos idosos. Em plena pandemia, o lar não tinha implementado as medidas de proteção individual e coletiva que eram preconizadas pela Direção-Geral da Saúde. A Ordem chamou a atenção para a situação nos lares no país e para o facto de não ser sequer obrigatório terem médicos. Não quer dizer que os lares sejam todos maus em Portugal, porque não o são, mas ficou demonstrado que muitos dos que controlam os lares não têm capacidade técnica, nem preparação para o fazer".

Na altura, relembra, "muita gente pediu responsabilidades ao governo, mas que eu saiba nada de substancial se fez em termos de mudança de atitude em relação aos lares, o que é lamentável".

O último momento que considera marcante destes seis anos tem a ver com o facto de ter sido a Ordem a assumir o processo de vacinação de todos os médicos que não estavam integrados no SNS, porque os do serviço público foram os primeiros a serem vacinados, eram profissionais de risco, mas "os outros estavam a ser esquecidos e a Ordem fez uma coisa que vai ficar para a história: planeou e organizou o processo de vacinação a nível nacional de todos os médicos que estavam a ficar para trás. Obviamente, que tudo foi autorizado pela Task Force, liderada pelo vice-almirante Gouveia e Melo, que nos deu vacinas, que nos ajudou a criar quatro centros de vacinação, três em unidades militares e um no hospital do Algarve, para vacinarmos sete mil médicos no país. Foi um processo em que tínhamos também todos os holofotes virados para nós, mas que correu bem e nos trouxe grande satisfação".

Miguel Guimarães não resiste à tentação de sublinhar: "Fomos a única entidade deste género em toda a Europa a fazer a vacinação a nível nacional dos médicos que não estavam no setor público. Um dia tive uma colega a dizer-me: "Muito obrigada. Senti-me abraçada pela Ordem dos Médicos". E este sentimento do abraço deixou-me completamente rendido, porque era o que eu gostava, que todos os médicos se sentissem abraçados pela sua Ordem, que vissem na Ordem uma estrutura que os representa e que faz por eles o melhor possível, defendendo acima de tudo os doentes, porque esta é a principal missão de um médico".

Além destes momentos, fica trabalho feito, não tendo medo de assumir, "mais do que em muitos outros mandatos", dando logo como exemplo o regulamento do Ato Médico. "Em 84 anos de Ordem, nunca se tinha conseguido esta legislação. Fomos nós que a conseguimos, com a oposição da então ministra Marta Temido, mas com a aprovação da procuradora-geral da República. E, neste momento, este regulamento já foi usado dezenas de vezes pelos tribunais, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional, pelos tribunais da Relação de Lisboa, Porto e Coimbra e pelos Tribunais Administrativos. Trata-se de um regulamento que protege os doentes e que já está a fazer jurisprudência".

"Mas há mais", diz, nesta conversa com o DN, dando o exemplo de mais um regulamento, o das equipas-tipo para os Serviços de Urgência. "A Ordem empenhou-se muito nisto e, neste caso, tínhamos contra nós, e com uma ameaça pública, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, por considerar que a definição das equipas-tipo eram uma missão do Estado. A Ordem defendeu sempre que esta definição tinha a ver com as boas práticas da medicina, com a garantia da qualidade da resposta clínica e publicou esse regulamento. E até hoje ninguém o veio contestar". Outro regulamento aprovado foi o do "padrão da consulta, mais uma definição importante para a relação entre médico e paciente, evitando que fosse desprezada".

Relembra ainda a prescrição eletrónica, que teve a intervenção da Ordem e que hoje em dia é um sucesso, pois, diz, "99,9% dos médicos usam-na". Houve ainda a coordenação do Grupo Técnico Independente que avaliou as listas de espera no SNS, um trabalho do qual resultou um relatório entregue ao então ministro Adalberto Campos Fernandes, e que "poderia ter sido melhor aproveitado para se implementar mudanças". Mas nestes anos recorda que a Ordem fez centenas de normas de orientação com a DGS, pois "o objetivo era deixar uma marca centrada na qualidade da medicina". Nesse sentido refere também a reativação do Fórum Médico. "É um fórum que reúne várias estruturas da classe, Ordem, sindicatos, as associações de Medicina Geral e Familiar e de Saúde Pública, e que estava morto há 20 anos. Foi reativado e discutiu temas importantes para a classe e tomado posições".

Miguel Guimarães não deixa para trás uma batalha de muitos anos dos estudantes de Medicina, o fim do exame mais temido, o Harrison, para acesso à especialidade. "Foi a nossa direção que o conseguiu e, em 2019, passámos a ter uma Prova Nacional de Acesso, com base num modelo diferente". Enumera ainda os mais de mil pareceres que a Ordem teve de dar na área da ética e da disciplina, que vão desde a eutanásia até à relação médico-doente, ao apoio aos profissionais vítimas de burnout entre "muitas outras coisas".

Como diz, foram seis anos de "dedicação à Ordem dos Médicos e à Saúde. Em termos práticos, de dedicação à qualidade e à ética na Medicina. Demos o que pudemos dar ao país. E tudo é público". A nível pessoal ficam também "as lições e a aprendizagem" que obteve durante estes anos. A partir daqui, diz, vai "continuar a fazer a minha atividade clínica, nomeadamente no CHSJ, e manter a intervenção na área da Saúde sempre que se justifique. Estes são os meus objetivos imediatos. O futuro logo se verá".

anamafaldainacio@dn.pt