Sociedade
11 agosto 2022 às 22h13

Mais de mil médicos de 45 unidades apresentaram escusa de responsabilidade

O número de escusas de responsabilidade enviadas à Ordem dos Médicos aumentou significativamente este ano. Ao todo, as secções do Sul e Ilhas, Norte e Centro registaram até esta semana quase 900 declarações, envolvendo mais de mil médicos. Mas este número deve ser muito superior, podendo chegar até aos 2500 ou mais. Tudo depende do número de médicos que assina uma declaração.

Esta semana, 14 médicos do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, assinaram uma declaração de escusa de responsabilidade pelas condições de trabalho nas urgências gerais. Mas esta semana também, a urgência geral do Hospital Garcia de Orta, em Almada, voltou a estar fechada aos pedidos do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), por não haver médicos especialistas escalados em número suficiente. Fontes desta última unidade contam ao DN que, durante este agosto, "tem sido assim uma a duas vezes por semana". E quanto à entrega de escusas de responsabilidade "são poucos os turnos de urgência que se fazem sem haver uma declaração de escusa de responsabilidade", assumem. "Já somos muito poucos em cada turno e tudo piora quando há imprevistos. Na última semana, uma colega entrou de baixa de parto e outro partiu um pé, isto resulta em menos elementos por equipa. Portanto, se não há mais escusas de responsabilidade é porque, às vezes, a exaustão é tão grande ao fim de 24 horas, que nem há forças para descrever e justificar o que se viveu nesse período", argumentaram ao DN.

O bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, admite mesmo que "Portugal está a viver uma situação quase inédita", com a entrega de tantas escusas de responsabilidade, mas se tal "está a acontecer é porque os médicos atingiram um limite em relação ao esforço que têm de fazer no exercício da sua prática no Serviço Nacional de Saúde (SNS)". E justifica: "Se há tantas escusas de responsabilidade é porque não há condições mínimas de segurança e de qualidade para que os médicos possam exercer as suas funções. E os médicos portugueses são dos que assumem, de facto, o que fazem. Entre o não fazer um turno de urgência com uma equipa mínima e o apresentar uma escusa, o médico prefere trabalhar, sofrer, muitas vezes durante as 12 ou as 24 horas, e depois denunciar a situação. Se não fizesse o turno, seriam os doentes a sofrer com a situação". Se isto está a acontecer é porque "Portugal é dos países da União Europeia que cumpre as regras de boas práticas na medicina. E se estas não estão a ser cumpridas, alguém tem de assumir a responsabilidade".

Nos dois últimos anos - ou melhor, durante a pandemia - quase não se ouviu falar de escusas de responsabilidade, porque "os médicos fizeram tudo, mas mesmo tudo, para se conseguir responder à pandemia", mas antes deste período, e sobretudo, em momentos de férias ou de feriados, já havia médicos a assumir esta posição, devido à falta de pessoal.

O bastonário diz mesmo que, nesta altura, e numa crítica à tutela, quando a ordem dizia que faltavam à volta de 5000 médicos no SNS, "os governantes respondiam com o número de profissionais que tinham sido contratados desde 2015, mas nunca referiam o número de profissionais que estavam a sair do SNS".

Portanto, neste momento, a questão básica da crise do setor público já não é o que falta a nível de condições físicas e de logística e de material em muitas unidades, mas a falta de médicos e de outros profissionais da saúde. E sem estes, "não se prestam cuidados", afirma, ressalvando: "E a solução não pode ser substituir um médico especialista por um que ainda não é especialista ou substituir um médico especialista por um enfermeiro especialista. Cada profissional tem o seu papel. A solução tem de ser outra".

O DN pediu às três secções regionais da Ordem dos Médicos, o número de escusas registadas desde o início de 2022 e os dados recolhidos até esta semana, dia 9, revelam que deram entrada 814. Deste total, 347 respeitam a unidades hospitalares e de cuidados primários da Secção Sul e Ilhas, 237 da Secção Norte e 230 da Secção Centro, sendo que, no caso do sul, as 347 declarações foram assinadas por 562 médicos.

Em relação, às secções do Norte e do Centro, o DN fez o mesmo pedido, mas só nos foi disponibilizado o número de declarações entregues. No entanto, e tendo em conta que, no mínimo, cada escusa é assinada por um médico especialista, só o número de declarações registadas no Centro e no Norte indicam que estas foram assinadas por 467 médicos. Ou seja, no mínimo dos mínimos, nas três secções houve mais de mil médicos (1029) a assinar escusas de responsabilidade.

Mas a verdade "é que este número deve ser muito superior", admite o bastonário, confirmando que as declarações chegadas à Ordem durante este ano "aumentaram muito significativamente, sobretudo a partir de junho, em relação aos anos anteriores à pandemia".

Por isso, o número de médicos a assinar declarações de escusa pode mesmo já ultrapassar os 2500, caso cada escusa tenha sido assinada por três médicos, ou chegar mesmo aos quatro mil, caso cada uma tenha sido assinada por cinco médicos. "Bastava uma chefe de equipa assinar e os 3 ou quatro internos com que fez o turno assinarem para se ter esse número", referem ao DN médicos de hospitais da Grande Lisboa. "Veja a escusa apresentada esta semana pelos colegas de Loures, foram 14 a assinar a mesma declaração", rematam.

Por outro lado, explica o bastonário, nem todas as declarações são enviadas à Ordem, muitos médicos acabam por as enviar só às administrações hospitalares, que é o que deve ser feito em primeiro lugar, e aos sindicatos médicos, reforçando que o número pode ser superior. Alertando a própria classe que se o motivo da escusa de responsabilidade for a denúncia das condições de trabalho, o documento "deveria ser enviado para todos os organismos competentes do Ministério da Saúde, administrações hospitalares, tutela, administrações regionais de saúde, Ordem e sindicatos".

Isto porque, "quando um médico apresenta uma escusa de responsabilidade tem de a fundamentar. Tem de especificar com detalhes as condições em que esteve a trabalhar e estas condições podem e deveriam ser fiscalizadas pelos organismos da Saúde, que é quem deve fiscalizar o funcionamento das unidades de saúde do setor público, privado e social".

Questionado pelo DN sobre se tantos pedidos de escusa não poderão banalizar este meio que os médicos e os outros profissionais de saúde têm ao seu alcance, o bastonário diz que não, reforçando: "Um médico não assina uma escusa de responsabilidade de ânimo leve. Só o faz por considerar que não tem as condições adequadas para garantir a qualidade do que é o seu exercício profissional".

Miguel Guimarães explica ainda que "um médico não pode ir contra uma ordem hierárquica superior, quando é dada pelo diretor de serviço ou pelos diretores clínicos ou dos hospitais. É o que acontece quando alguém destes superiores lhes diz que têm de fazer a urgência, porque se um médico recusar não está protegido pela lei. Daí, o terem de denunciar o que está a correr mal e o que pode interferir na sua atividade como médico".

Uma escusa tem também como objetivo diluir a responsabilidade e o impacto disciplinar que pode ter uma situação com um doente que corra menos bem e que leve a uma queixa por parte deste à Ordem dos Médicos ou à justiça. Quando assinada, a responsabilidade passa a envolver também os conselhos de administração, embora "o diretor clínico, que é um médico, passa a ter a responsabilidade maior". Por isto mesmo, "a escusa de responsabilidade tem de estar fundamentada".

Até agora, os motivos invocados nos documentos enviados à Ordem são "carência de recursos humanos, escalas incompletas, não cumprindo os mínimos definidos pela Direção-Geral da Saúde e pelos colégios da OM, deficiente organização e gestão de serviços, insuficiência e inadequação das condições de trabalho, carências logísticas e de materiais, etc.". E os serviços mais atingidos são as urgências, embora haja queixas relativamente a situações nos serviços de internamento. As especialidades mais visadas são a Ginecologia-Obstetrícia, Medicina Interna, Cirurgia Geral, Anestesia, Pediatria e Neonatologia.

No fundo, as especialidades que têm de assegurar a urgência presencialmente. Mas também há outras, como Medicina Geral e Familiar, Radioncologia, cuja falta de especialistas tem visado a atividade do IPO de Lisboa e de Coimbra, Radiologia, Reumatologia, Pneumologia, Psiquiatria, Medicina do Trabalho e Cirurgia Plástica e Reconstrutiva.

Dos dados disponibilizados ao DN, há a destacar que dos grandes hospitais do país, só o Centro Hospitalar Universitário São João, no Porto, não registou nenhuma declaração de escusa de responsabilidade em 2022. Na área da Grande Lisboa, o Hospital de Cascais também não está na lista. Mas as declarações continuam a chegar à ordem todos os dias. "Nenhum de nós quer fazer mais horas extras, queremos trabalhar o número de horas normal, mas com segurança e qualidade", sublinham ao DN médicos do Garcia de Orta.

O bastonário defende que se nada for feito, "é a imagem do SNS que ficará completamente de rastos".