Sociedade
18 março 2023 às 07h00

Hospitais de Lisboa mandam retirar "panfletos"do Papa e do cardeal patriarca

Esta quarta-feira, mensagens do Papa e do cardeal patriarca de Lisboa foram colocadas nas cadeiras de salas de espera de dois hospitais da capital. "Mal nos demos conta de que estavam lá os panfletos foram retirados", assegura a respetiva administração, que diz não saber quem os colocou. Patriarcado garante igual desconhecimento: "Não se faz distribuição de panfletos nesse tipo de locais."

Fernanda Câncio

"Não pode acontecer, temos de ter tratamento igual para todos". Esta é a posição do conselho de administração dos hospitais centrais de Lisboa perante a colocação, na manhã de quarta-feira, de mensagens religiosas católicas, assinadas pelo Papa Francisco e pelo cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, nas cadeiras das salas de espera de pelo menos dois hospitais da capital - Capuchos e Curry Cabral.

Questionada pelo DN sobre se qualquer organização - religiosa, cívica, partidária, desportiva, etc. - pode deixar mensagens na sala de espera de hospitais públicos ou se para tal necessita de autorização, e nesse caso quem a dá e por que meio, e se considera que a colocação das referidas mensagens de responsáveis católicos cumpria a Lei de Liberdade Religiosa, a qual determina que "ninguém pode ser obrigado a professar uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a atos de culto, a receber assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa", a administração hospitalar limitou-se a certificar, através do respetivo gabinete de comunicação, que "foi apanhada de surpresa", e "quando se deu conta de que estavam lá os panfletos, foram retirados".

Quanto a quem terá sido o responsável ou responsáveis, diz não haver pistas: "Não sabemos quem foi que colocou ali aquilo. Até pode ter sido um doente".
Porém o facto de ter sucedido em (pelo menos) dois hospitais indicia uma ação concertada, não a iniciativa de um cliente mais fervoroso.

Acrescendo que o testemunho de Maria João, 56 anos, que foi ao hospital dos Capuchos tirar sangue para análises, demonstra terem os ditos panfletos sido colocados bem cedo, apanhando os primeiros clientes daquele estabelecimento público de saúde: "Eram 8H30 da manhã quando cheguei e vi que em todas as cadeiras vazias havia umas folhas impressas." Ao sentar-se, naturalmente, retirou as folhas para ver de que se tratava, como tinham feito todas as pessoas que se ali encontravam. "Quando li o que era, fiquei pasmada."

E o que Maria João leu foram dois textos impressos em quatro páginas A4. Um tem o título "Mensagem do Cardeal-Patriarca para a quaresma de 2023", e o outro, da autoria do papa Francisco, é também uma mensagem quaresmal (a quaresma é, nas religiões cristãs, o período que antecede a celebração da Páscoa, festa relacionada com a alegada ressurreição de Cristo). De tão espantada que ficou por encontrar este proselitismo religioso num hospital público, Maria João tirou fotos aos textos, enviando-as para o DN.

Cerca de meia hora depois, quando saiu da recolha de sangue e voltou a passar na sala de espera, havia ainda folhas nas cadeiras vazias - ou seja, ninguém as recolhera até então, apesar de a sala de espera estar à vista de um guichet com funcionários administrativos do hospital. "Devia ter ido perguntar "que raio estão estes papéis aqui a fazer"", comenta. "Mas como odeio agulhas e tirar sangue só queria despachar-me dali."

Exortando à conversão - "(...) Repetimos convictamente as palavras do profeta: "Convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso..." Aliás é esta certeza, que também é esperança, que nos justifica e garante como Igreja de Cristo, qual barca vogando entre ondas alterosas, que nos poderiam afogar: Mas certos também de que a misericórdia divina pouco ou nada poderá fazer em corações que não se queiram converter a ela, sinceramente e de facto" - a mensagem de Manuel Clemente refere também o "relatório sobre abusos sexuais de menores na Igreja".

A propósito deste, proclama: "Tristeza, vergonha e arrependimento não podem faltar neste momento, mesmo quando mais institucional do que pessoalmente, para quem não cometeu tais crimes nem com eles compactuou". Assegurando que "nada disto relativiza o pedido de perdão, antes nos corresponsabiliza a todos para emendar o que tem de ser emendado e aliviar o que possa ser aliviado a quem sofreu na altura e ainda sofra depois", Clemente faz jus ao seu nome: "Quando houver algo a ser julgado e sancionado, sê-lo-á certamente, segundo a lei civil, canónica e evangélica - sendo que esta última não nos deixa desistir da conversão de ninguém".

Já a mensagem de Francisco passa, pelo menos aparentemente, ao largo do tema dos abusos sexuais - afinal, está longe de ser para o papa um tema novo, ao contrário do que sucede com a hierarquia católica portuguesa -, para apelar à capacidade de trilhar caminhos novos, e até a uma "transfiguração", ou ressurreição, da sua igreja, contra "o imobilismo" e a "experimentação improvisada".

"O caminho sinodal está radicado na tradição da Igreja e, ao mesmo tempo, aberto para a novidade. A tradição é fonte de inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada", diz Francisco. "O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial. Uma transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e realiza-se pela graça do seu mistério pascal."

Para quem se interesse pelas diferentes abordagens existentes dentro da hierarquia católica para lidar com a crise causada pelo cometimento e encobrimento, ao longo de décadas, de crimes de abuso sexual, cotejar as duas mensagens é decerto interessante. Mas, como sublinha o próprio capelão - ou seja, o responsável pela assistência religiosa católica - do hospital dos Capuchos, padre Jorge Miguel Sobreiro, não é adequado que este tipo de escrito religioso seja colocado nas salas de espera.

"Acho mal, não considero adequado, há espaços próprios para isso", diz este funcionário do hospital (os capelães católicos são nomeados pela sua igreja mas pagos pelo erário público). E explica: "Porque é uma sala de espera, não é uma capela. E nem na capela do hospital distribuí a mensagem do patriarca, não achei que fosse preciso. Quem quiser tem acesso na internet." Aliás, prossegue, "na capela até temos uma cruz sem Cristo num altar lateral, para que se alguma comunidade cristã quiser lá celebrar possa fazê-lo. No meu trabalho no hospital tenho encontrado gente de outras religiões, naturalmente, e pergunto sempre se querem que chame alguém da sua religião".

A consciência, evidenciada por este sacerdote de 43 anos, do caráter laico do Estado português e da necessidade de respeito por quem não comunga da sua religião (ou de nenhuma) não será, porém, comum a todos os capelães.

O DN contactou, a propósito deste caso, com outro destes assistentes religiosos católicos (apesar de em 2007 ter havido, da parte do então ministro da Saúde Correia de Campos, a intenção de acabar com o exclusivo da assistência religiosa católica e com a contratação de padres como funcionários públicos para esse serviço, e de igualizar o acesso dos representantes de todas as religiões aos pacientes, pagando a todos por igual em função do seu trabalho, essa intenção, ferozmente combatida pela Igreja Católica, acabou por cair com a mudança de ministro, em 2008), também de um hospital central lisboeta. O qual, apesar de também não as ter distribuído na capela "por não achar que fosse necessário", recusa que as mensagens em causa constituam propaganda religiosa. "Se for material de propaganda é uma coisa", opina este padre. "Mas a mensagem do Papa ou do Cardeal Patriarca nunca será mensagem de propaganda. O comunicado quaresmal é informação."

Qual o entendimento que um dos signatários, e responsável máximo do patriarcado, tem do caráter das mensagens não foi possível saber. Mas quem faz a assessoria de imprensa desta direção regional da Igreja Católica demonstra grande perplexidade face à notícia da colocação das ditas na sala de espera de um hospital: "Não é comum, não se costuma fazer. O Patriarcado não tem nada a ver com isso, não se faz distribuição de panfletos nesse tipo de locais."