Sociedade
20 maio 2022 às 05h40

Cooptação de novo juiz marcada para 31. Feministas saem à rua contra Almeida Costa

O TC nega informação sobre processo de cooptação, mas o DN sabe que votação foi marcada para dia 31 por um juiz "de esquerda" - José João Abrantes - e que Almeida Costa, o jurista que afirmou ser "muito raro mulheres violadas engravidarem", é o único candidato. Há manifestações esta sexta em Lisboa e Porto.

Fernanda Câncio

A reunião para a eleição/cooptação do jurista que irá substituir o atual vice-presidente do Tribunal Constitucional (TC), Pedro Machete, está marcada para 31 de maio. De acordo com a informação recolhida pelo DN, até agora o único nome a ser considerado para cooptação pelos 10 juízes eleitos pela Assembleia da República é o indicado pela "ala direita" do tribunal, a que pertence Machete. Trata-se, como noticiado no sábado, de António Manuel de Almeida Costa, que este jornal revelou ter escrito, nos anos 1980 e 1990, textos em que recusa a legalidade da interrupção da gravidez em qualquer circunstância, alegando, com base em alegadas "investigações médicas"(na verdade, supostas experiências nazis) que "as mulheres violadas raramemte engravidam".

Desde que o Tribunal Constitucional existe (foi criado há 40 anos) que a cooptação de juízes está rodeada de secretismo; ao contrário do que sucede com os candidatos a juízes eleitos pelo parlamento, cujos nomes são publicados em Diário da República antes da votação, ​​​​​​​na cooptação só se conhecem os candidatos depois de eleitos, ou seja, quando são já juízes inamovíveis, com mandato de nove anos e o poder de, como escreveu este domingo Vital Moreira no seu blogue, "dizer a Constituição".

O nome de Almeida Costa é o primeiro, nestas quatro décadas, a ser conhecido publicamente como cooptável. Mas apesar de a revelação da existência dos textos em causa e o facto de o seu autor ter recusado esclarecer se mantém a mesma posição estarem a suscitar indignação e protestos - esta sexta-feira há manifestações contra a sua cooptação marcadas para Porto e Lisboa, esta última junto ao TC -, a marcação da reunião parece indiciar que há a expectativa de que o candidato reune os sete votos necessários para ser eleito.

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Tal significa que, sendo 10 os juízes cooptantes (dos 13 juízes do tribunal, só podem participar na cooptação os que foram eleitos pela Assembleia da República), metade indicados pelo PS e outra metade pelo PSD, e tendo Almeida Costa em princípio garantidos os cinco votos da "ala direita" (Afonso Patrão, Gonçalo Almeida Ribeiro, José Figueiredo Dias, José Teles Pereira e Maria Benedita Urbano), pelo menos dois da "ala esquerda" (António Ascensão Ramos, Assunção Raimundo, Joana Costa, José João Abrantes e Mariana Canotilho) terão dado sinais de que estão dispostos a votar nele.

Uma possibilidade que escandaliza o constitucionalista e ex-juiz conselheiro Vital Moreira, que, no seu blogue (Causa Nossa), se insurgiu, sob o título "reacionarismo constitucional", contra o que considera "uma nomeação radical", caracterizando Almeida Costa como alguém "que deixa entender que não abandonou posições próprias da extrema-direita religiosa", concluindo: "Não vejo como é que uma nomeação tão radical pode ser coonestada, não somente pela esquerda constitucional, mas também pela direita constitucional que defende posições de humanismo penal, nomeadamente contra o excesso da repressão penal, sobretudo quando estão em causa questões de dignidade humana, como a autodeterminação da mulher. Reabrir entre nós, tal como nos Estados Unidos, uma questão constitucional sobre a despenalização geral do aborto seria um retrocesso civilizacional."

A perplexidade de Vital Moreira é acompanhada pela Associação Portuguesa da Mulheres Juristas (APMJ), que em carta aberta ao presidente do TC exprimiu a sua "grande estupefação", com a possibilidade de cooptação de um candidato que "sustenta posições jurídicas atentatórias da dignidade da pessoa humana, valor em que se funda a República", considerando que o respetivo perfil "não se afigura como sendo adequado às exigentes funções de fiscalização da constitucionalidade das leis e das decisões judiciais próprias da competência" do TC.

No seguimento desta posição da APMJ, a plataforma feministas.pt convocou as manifestações desta sexta-feira, em Lisboa e no Porto, invocando a possível reversão do direito constitucional a abortar que se anuncia do outro lado do Atlântico por via de um Supremo Tribunal americano conformado por Trump para esse efeito, dizendo "não à escolha de António Almeida Costa para juiz do Tribunal Constitucional", com os slogans "Justiça machista não é justiça/Tirem as mãos dos nossos direitos".

Também Francisco Louçã se manifestou contra a escolha de Almeida Costa, que, escreveu no Expresso, "seria o mais trumpista dos mandatários do Palácio Ratton [sede do TC]" , lembrando que "a rejeição dos direitos das mulheres passou a ser um manifesto político" da extrema-direita, que a vê "como uma parte importante da afirmação dos seus valores reacionários".

A "identidade em torno da proibição do aborto" constitui, escreve o ex-coordenador do Bloco de Esquerda, "talvez o fator comum mais forte" naquilo a que dá o nome de "mainstreamização republicana da extrema-direita", vaga que, prediz, "chegará sempre a Portugal (...) Se os juízes do TC cooptarem António Almeida Costa e eventualmente o elegerem presidente, daremos um passo de gigante nesse sentido."

Outra voz que se ergueu contra a possibilidade da cooptação em causa foi a da ex-eurodeputada e candidata às presidenciais de 2021 Ana Gomes.

No seu comentário dominical na SICN, a ex-diplomata exprimiu a sua preocupação com a possibilidade de Almeida Costa, que conheceu enquanto estudante de Direito como alguém afeto ao regime ditatorial, entrar no TC. E advertiu: "Em última análise são os juízes indicados pelo PS que vão determinar. E eu penso que o mais velho - José João Abrantes - é quem, como mais velho, pode decidir abrir a cooptação ou não. Espero que ele não queira ser cúmplice e portanto não abra a possibilidade da cooptação; seria impensável que juízes indicados pelo PS pudessem ser coniventes num esquema de retrocesso civilizacional por esta via."

Sucede que a reunião de cooptação está marcada, e como referido por Ana Gomes, quem a pode marcar é, nos termos da lei orgânica do TC e do seu artigo 17º, "o juiz mais idoso" de entre os 10 conselheiros cooptantes - neste caso, José João Abrantes, nascido em 1955 e indicado pelo PS.

O DN tentou ouvir Abrantes sobre a possibilidade de Almeida Costa ser cooptado e a data da marcação da reunião mas este juiz conselheiro escusou-se, invocando o "dever de reserva" inerente ao seu estatuto de magistrado - dever que se aplica a processos judiciais, não a votações para eleição de magistrados.

Também do presidente do TC, João Caupers (juiz cooptado), e da agência de comunicação contratada pelo tribunal não se obteve qualquer esclarecimento sobre quem seriam os candidatos ao lugar de Machete e sobre a data da reunião para a votação. Do mesmo modo, não houve confirmação ou infirmação de que o nome de Almeida Costa está indicado.

As perguntas endereçadas pelo jornal a Caupers, através do seu endereço de email no TC, ficaram sem resposta. Da agência de comunicação chegou apenas a recusa de qualquer esclarecimento: "O processo de cooptação está em curso e quando concluído será comunicado o resultado. Não daremos informação sobre o mesmo até estar concluído."

Igual sucesso teve o pedido de acesso às atas das últimas quatro reuniões de cooptação. Nada foi adiantado quando o DN insistiu, invocando a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) e solicitando que caso o TC tenha o entendimento de que se trata de documentos reservados ou secretos, indique a disposição legal em que se baseia.

"A escolha dos juízes cooptados é uma questão interna do TC, que não deveria vir para a praça pública", terá dito um leitor a Vital Moreira, em reação ao que o constitucionalista escreveu sobre o assunto. "Discordo de todo em todo", responde este. "Primeiro, num Estado constitucional, entendo que a nomeação dos juízes do TC, que têm o poder de 'dizer a Constituição', interessa a qualquer cidadão, e que os nomes propostos deveriam ser objeto do mesmo escrutínio curricular dos juízes eleitos pela AR. Não é por acaso que, tanto quanto me é dado saber, já mais do que uma vez nomes sugeridos vieram a ser rejeitados. Em segundo lugar, a questão da despenalização do aborto não é uma questão de lana caprina, tendo sido objeto de várias decisões do TC."