“A academia tem de, efetivamente, chegar às pessoas imigrantes e tentar, de facto, criar mudança”

São psicólogas e investigam o tema. Por que consideram que as migrações devem ser vistas de uma forma multidisciplinar?Joana Topa (JT):Todo este livro surge num curso, num seminário, que nós organizámos em dezembro de 2023, que, de alguma forma, teve como intuito e como grande objetivo não só assinalar, no dia, pessoas migrantes, mas também, efetivamente, de alguma maneira, ser simbólico para o dia dos Direitos Humanos, também. Portanto, de alguma maneira, nós juntamos aqui um conjunto de investigadores e investigadoras, mas também de profissionais do terreno - desde profissionais que trabalham diretamente com pessoas migrantes ou refugiadas - para participar no próprio seminário. E, no nosso intuito, enquanto organizadores desse mesmo seminário, fez-nos sentido, obviamente, não restringir as questões das migrações apenas e só ao Direito, uma vez que há muitas outras áreas que se intercruzam e são necessárias para o nosso Governo para a compreensão mais aprofundada destas dinâmicas, como a sociologia, a psicologia, mas também as questões das políticas públicas, as questões relacionadas com a criminologia, com a justiça. Tentámos juntar aqui vários olhares entre estas dinâmicas migratórias, uma vez que todas elas são permeantes e são necessárias, e haver espaços de confrontação destas perspetivas parece-nos também ser aqui muito necessário, não só para a academia, mas principalmente para quem lida com estas pessoas diariamente e para as próprias pessoas migrantes, em última instância, com políticas públicas que possam, de facto, fazer jus às suas necessidades.Estefânia Silva (ES): Realmente, este livro surge, obviamente, deste seminário, mas assume também aqui um compromisso de vários especialistas de diferentes áreas, quer a nível nacional, quer a nível internacional. E, por isso, acho que também permite aqui que haja uma nova construção de uma consciência crítica e que permita influenciar os próprios leitores para práticas públicas e práticas institucionais. E, obviamente, tem de ser multidisciplinar, para podermos chegar aqui a um público muito maior e muito mais diverso, porque a própria migração também é a isso que nos leva.De que forma acreditam que a academia pode contribuir efetivamente para mudanças e melhorias na vida prática dos cidadãos?JT: Nós somos da Psicologia Social e, portanto, a investigação que fazemos é muito no âmbito da investigação à ação. Neste momento, eu estou a coordenar um projeto que se chama MigAP, no Porto, em que a Estefânia também participa. E, de facto, esse projeto vai mesmo ao encontro do que está a perguntar. Fizemos um estudo de levantamentos na trajetória das pessoas migrantes residentes do Grande Porto, para perceber essas trajetórias de pessoas recém-chegadas à cidade, principalmente de perfis que não eram tão comuns existirem cá, mas depois trabalhar com uma comunidade que nós chamamos a Comunidade MigAP, que, de facto, é composta por pessoas migrantes, por profissionais, por autarquias, por um sem número de pessoas que estão no terreno e que, de alguma forma, também se estão a juntar a este projeto para tentar levar o conhecimento, depois, àquilo que são as abordagens, sejam elas de municipais e a nível mais governamental. Do nosso ponto de vista, não faz sentido a academia fechar-se sobre si mesma e, portanto, tem aqui um papel muito ativo, diria eu, preponderante, no que diz respeito a tentar, de facto, criar mudança e essa mudança ser operacionalizada em vários focos.ES: Como membros ativos de equipas de investigação que trabalham as questões da migração, obviamente, achamos que a academia não pode fechar-se, não é? A academia tem de, efetivamente, chegar às pessoas imigrantes. Por isso, este livro também vai dar visibilidade às pessoas imigrantes. Dar visibilidade e dar vez, oferecer às pessoas que podem ter acesso ao livro a experiência de outras pessoas imigrantes. E também consideramos que esta também é uma forma de se fazer política. É chegar, efetivamente, às pessoas, mostrar-lhes, de facto, a realidade de milhares de pessoas que, muitas das vezes, têm uma vida que é afetada pelo próprio percurso migratório. E, por isso, nós achamos que a academia tem que fazer a ponte com o terreno. E chegar, efetivamente, às pessoas e poder, realmente, mostrar a realidade de muitas pessoas imigrantes.Com base na experiência que ambas têm no terreno, com os projetos que coordenam, como é que avaliam qual é o maior desafio que as pessoas migrantes enfrentam atualmente cá em Portugal?ES: Vários desafios. Passa, muitas vezes, pelo próprio reconhecimento das suas qualificações, as questões do ingresso de um lugar de trabalho. Outra área, efetivamente, que é gritante, mas que não é um problema exclusivo dos imigrantes, são as questões da habitação, que é um problema obviamente transversal. Por isso, estamos a falar de muitos desafios. Há também situações de discriminação e de exploração do trabalho. E, por isso, os desafios acabam por ser múltiplos e por se somar. Quando, efetivamente, temos aqui o intercruzar de outras potências identitárias, como o de ser mulher, de ser uma pessoa racializada, ser jovem ou ser mais velha, estar numa situação regular ou irregular.JT: Eu acrescentaria as questões humanísticas, porque nós estamos a receber pessoas que, em termos da nossa historicidade, estamos a receber nacionalidades que não eram tão expressivas, digamos assim, e nacionalidades essas que, muitas vezes, não dominam a língua portuguesa. E, portanto, neste momento, é um grande, grande desafio, não só para as escolas, na integração de crianças, mas também para que, efetivamente, os cursos de Português, que são, de alguma forma, dados de forma gratuita, também consigam chegar a todas as pessoas. Muitas vezes, existem aqui algumas barreiras, até mesmo na própria aprendizagem, quando a pessoa formadora, por exemplo, que está a lecionar esses cursos, pode não facilitar a língua portuguesa desses mesmos migrantes. Eu diria que a questão da língua, a questão da regularização, neste momento, além das questões habitacionais, já referidas, são muito, muito difíceis, estão a criar muitas, muitas barreiras. Barreiras essas que, muitas vezes, até podem levar as pessoas a deixar Portugal. Há também estas demoras na questão da regularização, pessoas que já vivem cá e que veem os títulos caducados, mas também as questões de novas pessoas recém-chegadas, nós aproveitamos esta metáfora da pescadinha rabo na boca, que não conseguem avançar com os seus projetos, porque estão aqui ainda neste marasmo de tentar ultrapassar inúmeras barreiras que inicialmente se colocam no processo da integração no contexto português.Ambas possuem especialidade em Estudos de Género. Gostava de perguntar como é que vêm os desafios da mulher migrante, em especial.JT: Nós ainda estamos num caminho... Nós percebemos que as mulheres são muito mais vítimas de discriminação. Tanto mulheres que vêm por migração autónoma, como aquelas que vêm por reunificação familiar. As mulheres continuam a ser muito penalizadas: questões da violência de género, questões relacionadas com assédio sexual, com a precariedade laboral. Há aqui muitos fatores que, de facto, criam obstáculos diferentes daqueles que os homens imigrantes passam. Não estamos aqui a dizer que os homens imigrantes não têm desafios, claro que têm, mas, de facto, quando olhamos com uma lente de género, percebemos que as coisas agudizam-se para as mulheres e para as jovens raparigas.ES: Parece que a migração ainda está muito assente numa lógica masculina e, por isso, as mulheres, efetivamente, quando emigram, têm aqui todos os desafios, estão mais expostas a riscos, às questões da violência e do abuso de que nós já falámos, mas também de acesso ao mercado de trabalho. O reconhecimento das suas qualificações não ocorre e estas mulheres acabam em empregos muito informais, muito associados às tarefas domésticas ou até de cuidadoras. Vimos recentemente um forte discurso anti-imigração na campanha eleitoral e após. Enquanto psicólogas, a que acham que se deve esse aumento exponencial e rápido do discurso anti-imigração em Portugal?JT: Isso já vem de um discurso global, que vem de outros países. Claro que nós estamos vindo a sentir um apogeu do sistema da direita, em todos os países da Europa, noutros países do mundo. E, de facto, estes discursos parecem agudizar-se em momentos de crise. Quando há crise económica, muitas vezes, perante a crise, o foco dirige-se para as pessoas mais vulneráveis. A meu ver, muitos destes discursos derivam um bocadinho destas questões de tentar criar aqui mitos, criar aqui estereótipos e preconceitos continuamente nas comunidades migrantes, obrigando não só as questões criminais, mas a questão também deste slogan, de que vêm roubar os nossos empregos. Estes mitos vão circulando na sociedade civil e, muitas vezes, mediatizados em horários nobres, vão passando sem serem desmistificados, sem haver, efetivamente, aqui uma confrontação com a realidade, vai criando também estas imagens, e estas imagens são muito perigosas, porque vão construindo as nossas representações sociais.ES: Nós sentimos isto em variadíssimos eixos, em que vemos estes discursos aumentarem e, de facto, os anti-imigração, neste momento, são algo muito utilizado por vários partidos políticos, no sentido de tentar mobilizar pessoas contra as pessoas migrantes. E há outra questão, que é a do preconceito. Estamos a falar, obviamente, de campanhas que usam aqui ferramentas políticas para mobilizar certos grupos, apelando, obviamente, ao preconceito, a inseguranças e medo. As pessoas migrantes são usadas aqui como ameaças à segurança, às questões da criminalidade, à economia, e, por isso, isto vai alimentar estigmas. E, de algum modo, vai chegar aqui a divisões e vai aqui aglomerar ainda mais as enormes dificuldades que as pessoas migrantes sentem, na pele, todos os dias e prejudica a sociedade como um todo. Vemos também o discurso da identidade, que é muito um chavão muito utilizado neste discurso anti-imigração, que é a preservação da identidade nacional, com práticas mesmo discriminatórias e violentas que ocorrem perante pessoas migrantes. Algo que, no passado, enfim, existia, não estou a dizer que não existiam, mas não eram tão presentes na sociedade como nós estamos vindo a assistir a casos na atualidade.

“A academia tem de, efetivamente, chegar às pessoas imigrantes e tentar, de facto, criar mudança”

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