Vida longa ao micro-ondas

Há 65 anos, um chocolate a derreter junto de um radar ativo culminou no invento de um forno especial que cozinha alimentos agitando as moléculas por ação de micro-ondas. Os primeiros eram grandes, caros e pouco práticos. Os modernos têm estilo e fazem milagres na cozinha.

Quem usa o micro-ondas no dia a dia, nem que seja apenas para descongelar uma piza, tem uma ideia de como este aparelho simplificou a vida das famílias modernas. O micro-ondas foi inventado há 65 anos e levou mais de trinta a chegar aos lares de todo o mundo, por causa do medo de possíveis efeitos nocivos para a saúde. Nasceu por acaso, em 1945. Uma tablete de chocolate que estava no bolso do engenheiro americano Percy L. Spencer derreteu-se quando ele se aproximou de uma válvula de radar ativa, na empresa de armamento onde trabalhava, a Raytheon. Estava feita a descoberta: as mesmas ondas usadas para detetar aviões em voo davam para aquecer alimentos. Inventor curioso, com 120 patentes registadas em vida, Spencer percebeu as implicações do que tinha acontecido e lembrou de fazer pipocas e, depois, um ovo que explodiu com a pressão. No ano seguinte, a Raytheon patenteou o processo de cozinhar com micro-ondas e desenvolveu, em 1947, o primeiro forno comercial, o Radarange, com 1,70 metros de altura e 340 quilos, arrefecido com água que produzia cerca de três vezes mais radiação (3000 watts) do que os micro-ondas atuais. Desde então, o simplesmente chamado micro-ondas perdeu tamanho, ganhou tecnologia, um look moderno e conquistou o seu lugar em casa e nos laboratórios de pesquisa científica.

Em 2009, as ondas eletromagnéticas foram eleitas pela Associação Britânica de Ciências uma das dez invenções que mudaram o mundo, a par de cartões de crédito, GPS, código de barras, walkman, PlayStation, comida pré-preparada, serviço para troca de mensagens curtas (sms), redes sociais e sapatilhas. O fenómeno do micro-ondas tornou-se idêntico ao da internet e do telemóvel: quem se habitua a usá-lo dificilmente passa sem ele.

Aconteceu com Madalena Ribeiro, tradutora de 38 anos de Vila Nova de Gaia e autora do blogue culinário A Panificadora Ribeiro. «O micro-ondas é um bom auxiliar», diz. «Ainda prefiro o fogão para cozinhar ou o forno, mas utilizo-o para aquecer café com leite, descongelar o pão em meio minuto ou aquecer o almoço. Também o uso para gratinar e aquecer molhos.» Numa noite em que o velho micro-ondas se avariou, Madalena comprou outro no dia seguinte. «Houve uma altura de grande medo face aos potenciais malefícios e eu própria acredito que possam existir, apesar de não ter dados para afirmar que faz mal à saúde.» Na dúvida, deixa passar uns instantes antes de consumir o que tira de lá e não faz um uso muito intensivo.

O receio da tradutora parecia ter fundamento no início da década de 1990, quando um estudo realizado pelo cientista Hans Ulrich Hertel sugeria que a cozedura alterava os nutrientes, as moléculas alimentares e o sangue dos participantes, o que poderia afetar a estrutura biológica celular e deteriorar a saúde. Também o médico Gabriel Cousens, no livro A Cura da Diabetes pela Alimentação Viva, relatou um processo movido contra um hospital de Oklahoma, EUA, depois de uma paciente operada ao quadril ter morrido de uma transfusão de sangue aquecido no micro-ondas. Ao fim de todo este tempo, no entanto, não existe informação científica suficiente que comprove a manutenção de nutrientes nos alimentos confecionados no micro-ondas. Nada provou, em definitivo, que o uso contínuo seja prejudicial.

«Cozinhar no micro-ondas não faz mal à saúde. Se calhar até degrada menos os alimentos porque estão menos tempo a cozinhar do que numa fonte de calor normal», desmistifica Amélia Pilar Rauter, especialista em química orgânica de produtos alimentares e docente na Faculdade de Ciências de Lisboa, ela própria uma utilizadora incondicional do micro-ondas. No trabalho, usa-o para abreviar reações químicas e conseguir num par de horas o que antes lhe demorava um dia inteiro a observar. Em casa já nem cozinha: todos os dias chega tarde, estafada, aquece qualquer coisa em três minutos e encerra a questão.

«No início houve medo porque as radiações inspiram respeito. Eu própria resisti até perceber que era seguro, que é só um tipo de calor diferente que coze as substâncias de dentro para fora», revela a especialista, ciente da simplicidade do funcionamento: o interior do forno alberga uma válvula chamada magnetron que converte eletricidade em micro-ondas. Uma vez sujeitas a essas ondas curtas de alta frequência, as moléculas de água dos alimentos entram numa rotação furiosa, colidindo e gerando calor. «As pessoas têm vidas atribuladas, sobra-lhes pouco tempo para cozinhar», nota Amélia Rauter. O estilo de vida do século xxi é o grande responsável pelo êxito do micro-ondas. É causa-efeito. «Precisamos de coisas rápidas, senão andamos num stress desgraçado.»

Patrícia Almeida Nunes, coordenadora do Serviço de Dietética e Nutrição do Hospital de Santa Maria, concorda com a visão prática: «Para os homens, em especial os que vivem sozinhos e não gostam de cozinhar, é uma ajuda para aquecerem as refeições compradas fora e reconstituírem outras congeladas e refrigeradas. Também ajuda as mulheres com atividades profissionais muito ativas e até as donas de casa estão rendidas», diz a dietista e autora do livro Uma Especialista em Nutrição no Supermercado, partidária de aliviar os nervos com bons eletrodomésticos.

Patrícia lembra-se de usar o micro-ondas regularmente desde os anos 1980, várias vezes ao dia, para aquecer leite, café e sopas, descongelar alimentos, cozinhar pratos simples e preparar uma sobremesa de maçã e canela que a família adora. «A confeção pode significar menos gordura e açúcar e aí surge uma das grandes vantagens aliadas ao fator tempo», sublinha. Não há vencedores nem vencidos entre micro-ondas, fogão e forno, «todos se complementam». Se a dietista continua a preteri-lo em pratos elaborados isso deve-se apenas a uma falha de funções no aparelho que comprou. «Para os croquetes, por exemplo, não tenho a opção que permite que fiquem crocantes e adquiram uma crosta semelhante à que resulta da fritura ou no forno.» As mesmas vantagens que Idalina Baptista, autoria do blogue Aroma de Café, aponta. «Uso bastante o micro-ondas no dia a dia. Poupa-se tempo e energia, suja-se menos loiça (e gasta-se menos água), a forma de cozinhar é muito saudável. Este tipo de cozedura praticamente não altera o sabor dos alimentos, pelo que é necessário pouco sal para temperar, quase nenhuma gordura e os alimentos perdem poucos nutrientes.»

A engenheira civil rendida à culinária decidiu comprar um micro-ondas depois de a filha nascer e o tempo parecer ter encurtado para tantos afazeres. «Aquecer o leite de madrugada só demora alguns segundos no micro-ondas, quase que nem se acorda. Por iiso comecei a usá-lo para descongelar alimentos. Numa urgência, em que não tinha sopa para dar à minha filha, fiz uma em 12 minutos e mais umas papas de fruta cozida para a sobremesa», recorda Idalina. Com o tempo, descobriu novas potencialidades no eletrodoméstico que ainda hoje usa para fazer sopa, pipocas, maçã assada, massa (sobretudo aletria), bolos e coberturas, omeletas, batatas a murro (prontas em seis minutos e menos gordurosas do que as originais), cozer bacalhau para pataniscas e derreter chocolate (o banho-maria já era). «Hoje seria difícil viver sem ele», garante a engenheira, rendida às maravilhas do micro-ondas.

Fernando Melo, o crítico da Notícias Magazine em gastronomia e vinhos e que também tem formação em química, explica que o micro-ondas não é antónimo de boa cozinha. «É um auxiliar insubstituível. Bem utilizado, consegue regenerar um prato ou produto na perfeição, seja por descongelação ou por aquecimento. Outras tarefas são também simplificadas, como aquecer leite e derreter manteiga. Pessoalmente uso-o várias vezes ao dia para descongelar algumas coisas, aquecer pratos de sopa para as crianças e reaquecer arroz e gratinados», diz. Na parte que lhe toca, selou um pacto de amizade com o micro-ondas de que não se envergonha. Ainda que continue a eleger o fogão na hora de confecionar.

«Cozinhar é, por definição, destruir. Proteína, fibra e molécula transformam-se nesse processo coletivo a que chamamos cozinha, dando origem a alimentos mais digeríveis, com sabores e aromas fundidos.» No caso do micro-ondas, diz, a utilização culinária é relativamente pouco interessante face às fontes tradicionais de calor. «Não há apuramento de sabor e o processo acaba sempre por ser excessivo, secando carnes e peixes por exposição exagerada e desigual», explica Fernando Melo, arrebatado pelo ritual da preparação, tempero e processamento que só a verdadeira cozinha proporciona.

Idalina Baptista recorda-se, a propósito, de um apontamento no livro A Fórmula do Ambiente, da jornalista canadiana Alex Shimo-Barry, que ressalva o facto de os micro-ondas não serem adequados para todo o tipo de cozinhado, apesar de eficientes e de pouparem energia e emissões de carbono - uma vez que aquecem a comida e não o forno, um estudo do American Council for an Energy Efficient Economy estima que utilizem menos dois terços de energia do que um forno convencional, poupando 25 quilos de dióxido de carbono por ano se nele se confecionar um quarto dos cozinhados. Por outro lado, insiste Alex, há outros alimentos particularmente adequados a este eletrodoméstico. «Pode usar-se para cozer legumes ao vapor, batatas em cinco minutos e ferver água num instante se estiver com pressa.»

Maria José Rosado, 38 anos, rececionista da indústria hoteleira e artista dos tachos no blogue A Cozinha da Risonha, usa o micro-ondas várias vezes ao dia, sobretudo para aquecer refeições, «fatias de pão e uma chávena de chá ao final da noite». Mas também já inventou umas quantas receitas com a ajuda do prático aparelho: beringelas à parmegiana, espinafres com ovo, bolo de chocolate, maçãs com nozes, doce de figo com especiarias, castanhas assadas ou puré de abóbora. «Experimente fritar uma fatia de bacon na frigideira», desafia Maria José. «Depois, experimente colocar outra entre duas folhas de papel absorvente, leve ao micro-ondas e veja a diferença: o mesmo resultado e sabor, só que a fatia do micro-ondas está sequinha e sem gordura, enquanto a outra...» O fogão continua a ser o primeiro amor, apesar de o micro-ondas vencer em rapidez, pragmatismo e facilidade de limpeza. «As pessoas começaram a perceber que aquilo não é o diabo em forma de máquina. Tenho o exemplo da minha mãe: quando lhe ofereci o primeiro micro-ondas até tinha medo de olhar. Hoje não passa sem ele.» Como todos nós.

Dicas úteis de utilização

Use utensílios próprios, de vidro refratário.

Os utensílios com tampa retêm o vapor e facilitam a cozedura - tape os mesmos alimentos que necessitem dela no fogão.

Não use cristais finos, pratos com decorações metálicas e latas.

Bandejas de alumínio servem para descongelar e aquecer desde que sejam baixas (até 3,5 cm de altura), estejam cheias até acima e se mantenham afastadas das paredes do micro-ondas.

O raciocínio de preparação é igual, o que implica tapar certos pratos, mexer, virar e misturar para que a refeição não fique demasiado cozida em certas partes e crua noutras.

Bocados menores aquecem mais rapidamente do que os maiores. Se houver muita discrepância nas texturas, aconselha-se que os alimentos mais macios sejam acrescentados posteriormente à cozedura.

Ovos com casca não podem ser cozidos no micro-ondas.

Os líquidos não podem estar totalmente tapados: pequenas fissuras são essenciais para evitar a subpressão

Para uniformizar a confeção de alimentos com formatos irregulares (como filetes ou coxas de frango), coloque as partes finas voltadas para o centro do recipiente e as mais grossas para fora, já que é aí que existe maior acumulação de energia.

O tempo de espera é uma técnica importante no processo de confeção, dado que a energia gerada pelas micro-ondas fica nos alimentos e a cozedura continua mesmo depois de retirados do calor. Bolos, assados e vegetais acabam de cozer nesse tempo de espera, uniformizando o processo.

Receitas simples para micro-ondas

Arroz branco: Leve ao micro-ondas (potência média) uma chávena de arroz e duas de água quente durante sete minutos. Retire, adicione sal a gosto e coza durante mais sete minutos na potência máxima. O arroz sairá com um pouco de água, por isso, deixe o recipiente tapado mais três minutos para finalizar a cozedura.

Pudim de leite: Numa forma para micro-ondas, coloque quatro colheres de sopa de açúcar e outras tantas de água a caramelizar (potência média) durante quatro minutos. Faça a massa batendo uma lata de leite condensado, a mesma lata e meia de leite, seis ovos e essência de baunilha. Coloque na forma e coza 15 minutos (potência máxima).

Peito de frango: Tempere seis bifes de frango com o sumo de um limão, sal e salsa a gosto. Disponha-os numa travessa que possa ir ao micro-ondas e sobreponha as rodelas de duas cebolas e dois tomates. Leve oito minutos ao micro-ondas (potência máxima).

Salmão com limão: Coloque uma pitada de sal num pirex e disponha duas postas de salmão, tempere a parte de cima do peixe com outra pitada de sal, o sumo de um limão grande e três raspas de manteiga por posta. Leve ao micro-ondas (de preferência com tampa) por cinco minutos, até o salmão ficar pálido e soltar-se facilmente da espinha.

Sobremesa de banana e canela: Corte duas bananas grandes longitudinalmente e coloque-as numa tigela de ir ao micro-ondas e à mesa. Polvilhe-as com duas colheres de sopa de açúcar e canela a gosto, leve um minuto ao micro-ondas (potência máxima), deixe arrefecer um pouco e sirva.

Ovos mexidos com tomate: Coloque num pirex uma fatia de bacon, uma colher de sopa de margarina e leve um minuto ao micro-ondas (potência máxima). Retire e adicione um tomate picado, quatro ovos, uma cebola picada e sal. Mexa bem e deixe cozer mais um minuto. Retire, mexa e leve ao micro-ondas dois minutos. Mexa de novo, cubra com queijo ralado e coza o tempo necessário para eliminar o excesso de molho.

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