Viagem ao princípio da moda
É cabo-verdiana mas foi pioneira das passerelles em Portugal. A fantástica história de Gertrudes Évora, uma secretária que chegou a manequim antes do 25 de abril, desfilou para Ana Salazar e Augustus, até que decidiu estabelecer-se como designer de moda. Trabalha em Lisboa, no mesmo atelier, há quase trinta anos.
«Gertrudes, se não fazes parte do sistema não arranjas trabalho», diziam-lhe as colegas manequins, quando a viam pegar no saco e correr porta fora logo após os desfiles. A resposta era pronta: «não posso aparecer todos os dias, senão canso-me e as pessoas também», brincava. Na altura, Gertrudes Évora tinha pouco mais de 20 anos e pertencia a uma elite que conquistara as passerelles no pré-25 de abril. Eram poucas e trabalhavam para um público exclusivo: desfilavam em hotéis para as mulheres dos donos e senhores do Estado Novo, cujo poder de compra justificava importar de Paris as últimas tendências da alta costura. Ainda antes da Harlow, de Ana Salazar, ou da irreverência do costureiro Zé Carlos, que viriam a marcar a década de 1980, já Gertrudes Évora se comprometera com as «melhores casas de moda» de então para mostrar, em cada estação, as criações estrangeiras que chegavam a Portugal.
Os desfiles eram sempre em Lisboa e Porto, sendo que para todos os eventos eram recrutadas as mesmas caras, os mesmos corpos. «Todos a quererem ver-nos como se fôssemos extraterrestres», ri-se. «Mas as pessoas acolhiam-nos muito bem». Gertrudes, que aprendera a ser manequim na Juno, a primeira de todas as agências de modelos no país a abrir em Lisboa, soubera tirar partido do físico e não precisou de bater a nenhuma porta à procura de trabalho: bastou-lhe concluir o curso para ser imediatamente recrutada. E, apesar de se esquivar muitas vezes às festas que se seguiam aos desfiles, conseguiu ser das primeiras manequins negras a conquistar um lugar na moda portuguesa. «Só havia mais duas francesas que tinham chegado das ilhas», recorda. «Eu sabia que não tinha uma beleza transcendente, mas também sabia que, além de ser interessante, conseguia passar qualquer coisa para as pessoas, algo que as atraía».
Natural de Cabo Verde, nascida na ilha de S. Antão e criada em S. Vicente, nunca foi preterida pelo tom de pele. Preconceitos, num Portugal bem mais fechado do que o de hoje, diz que nunca sentiu. Sentada no atelier que mantém hoje na zona de S. Bento, em Lisboa, a manequim que virou estilista e empresária continua tão pragmática como na adolescência, quando veio para Portugal prosseguir os estudos, ainda na década de 1960, e decidiu que ia para a escola comercial porque pouco lhe interessava a formação feminina que tinha iniciado em Cabo Verde. O pai, advogado, permitiu que os filhos - ao todo, oito - viessem da ilha para Lisboa completar a formação e a mãe acabou por mudar-se também para Portugal para acompanhar os filhos, tendo regressado à terra natal quando estes finalizaram os seus percursos académicos e voltaram também a casa. Em Lisboa, viviam todos num apartamento «enorme», arrendado bem no centro da capital. Com a mãe por perto não havia outra hipótese se não ser «tudo muito certinho», sorri Gertrudes, que depois da escola comercial entrou para o Instituto das Novas Profissões para fazer o curso de secretariado e tradução simultânea.
O domínio fluente do inglês e do francês abriu-lhe as portas do mercado de trabalho, o que, aliado a uma presença forte e agradável, augurava uma carreira de sucesso como secretária, não fosse dar-se o caso de, um ano depois de ter começado a trabalhar, perceber que não era bem aquela a vida que queria. «Pensei e decidi: vou para a TAP ou vou ser manequim». Falaram-lhe da agência de modelos e quis inscrever-se, mas os cursos de manequim não estavam disponíveis em horário pós-laboral, o único que lhe convinha para não perder o emprego que lhe pagava as contas. Reconhecendo o seu potencial, na agência decidiram alterar o horário do curso e passá-lo para o intervalo da hora de almoço. Mal terminou as aulas, ofereceram-lhe trabalho e juntou-se a um grupo exclusivo que incluía, por exemplo, Ana Maria Lucas, que viria a ser Miss Portugal. «Só queria alta costura, que funcionava por estações, para poder manter o emprego de secretária». O namorado da altura informou-a que manequins não teriam lugar na sua família e quis forçá-la a deixar a moda. Mas Gertrudes preferiu deixá-lo a ele. Até ao 25 de abril, dividiu-se entre o escritório e a passerelle.
Em 1974, Portugal reconquistava a liberdade e Gertrudes Évora ficava sem nada: os desfiles de luxo perderam o público e a empresa onde era secretária encerrou portas. Mas esta mulher não se deixou estar quieta à espera que o mundo se alinhasse para a favorecer e tomou nova decisão importante: fazer um curso, «de estilismo ou de costura». Nada de surpreendente, uma vez que desde criança a fascinava a perícia das modistas e era ela quem fazia a maior parte da sua própria roupa. O bichinho nascera numa ida à costureira com a mãe, «devia ter uns dez anos», ainda em Cabo Verde. Ficou deliciada a ver as provas «num cubículo pequenino» e guardou o episódio na memória. Estava na altura de o reviver pelas próprias mãos. Entretanto, aproveitou as agências de trabalho temporário para ir fazendo secretariado e, logo que a moda ganhou novo fôlego, voltaram a bater-lhe à porta para desfilar para Ana Salazar e Augustus.
A alta costura importada era substituída por coleções mais acessíveis de pronto-a-vestir: «éramos contratadas para passar numa sala para os clientes todos», recorda. Os acessórios eram das próprias manequins, que não podiam ser meras «carinhas bonitas». «Se a marca era de camisolas de lã, levávamos as nossas calças, sapatos, bijutaria e nós é que combinávamos tudo com as malhas. Era preciso ter a iniciativa e a esperteza de saber fazê-lo».
Aprendeu a costurar, primeiro numa costureira de bairro, depois com um professor italiano que dava os cursos de moldes e modelagem numa sala fria de Xabregas sempre em horário noturno, o que lhe permitia deixar o dia para os desfiles e trabalhos pontuais de secretariado. A vida seguiu o seu curso e o casamento com um inglês deu-lhe novo apelido, mas nem por isso a agora Gertrudes Turner deixou cair o Évora, tão particular das ilhas cabo-verdianas. «Não, não tenho parentesco com a Cesária», esclarece a sorrir. A gravidez aos 25 anos fê-la temer as transformações físicas da maternidade e optou então, conscientemente, por deixar as passerelles. Uma casa de modas de Benfica para a qual tinha trabalhado como manequim precisava de uma estilista. Rapidamente ficou com o lugar, mas ocupou-o por pouco tempo. «Comecei a pensar em mim», confessa. Facto que a levou a decidir aventurar-se na sua primeira «mini coleção». Pediu numa loja de peles, onde a conheciam dos tempos de manequim, as sobras, para fazer apliques nas roupas que costurava O pedido foi prontamente atendido. E marcou a sua estreia como designer de moda. «Um dia, entrei numa loja para mostrar a coleção à dona e ela disse-me: "compro toda". E então fiz mais».
Trabalhava em casa, transformada em atelier durante as horas de escola das filhas pequenas, e um dia telefonaram-lhe do Correio da Manhã, que organizava o concurso de Miss Portugal. Naquele ano, todas as concorrentes seriam vestidas por um estilista diferente e queriam saber se estava interessada em colaborar. Aceitou e calhou-lhe, por sorteio, desenhar a roupa da manequim que haveria de ganhar o concurso. A projeção foi brutal e deu-lhe o impulso de que precisava para abrir o atelier onde ainda hoje permanece, em São Bento. Era o ano de 1986. No início da década de 1990, os uniformes do pessoal de bordo dos Transportes Aéreos de Cabo Verde passaram a ter a sua assinatura, assim como as fardamentas das hospedeiras do Museu de Sintra. A convite da SIC, veste Fátima Lopes nos primeiros programas que apresentou, Perdoa-me e All You Need is Love e teve também oportunidade de trabalhar com Catarina Furtado e Júlio Isidro: «um desafio muito forte», recorda. Até ao final da década continuou a lançar coleções a cada estação, mas chegou um tempo em que «as costureiras começaram a escassear, outras lojas começaram a abrir» e Gertrudes Évora adaptou-se, como sempre fez: passou a comprar peças de pronto-a-vestir para venda no atelier e a trabalhar só por medida.
Nos últimos tempos, a sua aposta tem-se direccionado para a «remodelação»: incentiva as clientes a trazerem-lhe peças de qualidade que têm penduradas sem uso no armário, para lhes imprimir um twist de modernidade. «Até prefiro, não gosto muito de desenhar coleções. Gosto de estar com a pessoa, senti-la». Não trabalha para homens e, se lhe pedirmos para definir o seu estilo, diz só que a cliente é a melhor das inspirações. Das peças concebidas por si destacam-se os casacos, estruturados, com detalhes simples mas elegantes, mas a que mais gozo lhe deu criar foi o vestido de noiva da filha.
As filhas, duas, vivem em Londres, cidade que visita frequentemente para ver onde param as modas e estar com a família, mas é em Lisboa que se sente em casa, apesar de nunca esquecer as raízes nem se sentir mais portuguesa do que cabo-verdiana. «Acho que sou um ser do mundo, nasci e cresci em Cabo Verde, formei-me em Portugal, vivi com um inglês durante 23 anos. É uma mistura que fica aqui dentro e vou vivendo com ela». E vai vivendo bem, entre o passado e o presente. Garante que ainda há muito quem se lembre do seu nome, como estilista, do tempo em que desenhava para os famosos da televisão, e até do seu trabalho como manequim. A passagem dos anos, que prefere não revelar, não a fez descurar a aperência. Daí talvez, a mesma beleza, a mesma pose.