Uma guerra civilizacional

A guerra entre lobos e homens que decorre na serra de São Macário, no distrito de Viseu, é uma guerra civilizacional. Antropológica, até... Nela estão vários países em confronto, sendo que todos eles são Portugal. Vamos por partes, explicando primeiro por alto a história que faz capa desta edição, numa reportagem feita a quente, na semana passada, pelo Ricardo J. Rodrigues. De repente, este ano, os rebanhos de cabras que constituem a principal atividade económica e o sustento das gentes da aldeia de Covas do Monte começaram a ser atacados pela alcateia de lobos ibéricos que vivem na serra. Ainda na terça-feira houve novo ataque dos lobos, menos cabras regressaram aos currais da aldeia.

Os lobos já estão nesta serra há muito, desde tempos ancestrais. Os rebanhos de cabras também. Mas algumas coisas mudaram, entre o que havia dantes e o que há agora. E é nessa evolução que está a parte de fábula antropocivilizacional desta história. Antigamente havia cabras com fartura, pastores com fartura, lobos com fartura. Depois, os lobos passaram a ser menos por vários motivos relacionados com o progresso: falta de habitats naturais por causa da excessiva humanização da paisagem, como lhe chamam os ecologistas - autoestradas, parques eólicos, aldeias, etc..., caça, e falta de comida, outras espécies selvagens que acabam pelas mesmas razões que os afetam a eles. Os rebanhos passaram a ser menos também, por razões relacionadas com o progresso, mas ao contrário: o país desertificou-se, as pessoas abandonaram o campo duro e pouco rendível. São hoje dois exércitos depauperados, como lhes chama Ricardo J. Rodrigues.

Dantes, quando os lobos atacavam os rebanhos, funcionava a lei de tabelião. Ovelha morta, lobo morto. Mas as leis naturais deixaram de funcionar neste mundo talvez demasiado moderno para as circunstâncias do que tem de ser e tem muita força. Os lobos passaram a ser espécie protegida em 1988 - não é possível matá-los nem sequer ameaçá-los. Já os rebanhos, não têm quem os proteja - nem sequer os cães que, segundo a lei, devem ser um para cinquenta cabeças de gado, o que é claramente incomportável para pastores com fracos recursos económicos. E são cada vez menos esses rebanhos. Foram sendo reduzidos à medida das fracas capacidades de quem deles toma conta. E mesmo em Covas do Monte, onde o rácio de ovelhas per capita de habitantes é o maior do país, hoje existem menos de metade das ovelhas que existiam há cinco anos. Ora, em rebanho mais pequeno, ovelha morta faz mais diferença.

E é isto que está a acontecer na serra de São Macário . Vários países em confronto. O Portugal moderno das leis de proteção animal que esbarra no Portugal decadente e pobre, das aldeias abandonadas do interior. O Portugal moderno do pastor de 34 anos que concorreu a um subsídio de jovem agricultor - numa perspetiva de que a pastorícia era uma atividade a recuperar num país de futuro, em que os rebanhos ajudam, até, a vigiar e a controlar a floresta - e se fixou numa aldeia de gente velha e ficou mais ou menos tão pobre como ela.

Nas fotos que publicamos nesta edição - e até mesmo na capa - o leitor poderá confrontar-se com um Portugal que começa a voltar a vir ao de cima na atual crise económica. Um Portugal atrasado, abandonado no interior do país e, talvez, mortinho por abandoná-lo também. É um Portugal que os fundos de convergência e o progresso quis fazer esquecer. A que a converseta do empreendedorismo diz muito pouco. E que, tememos todos, possa vir a ser um Portugal muito presente.

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