Pessoas que mudam cidades
Nem sempre são as autarquias a transformar as cidades. Há pessoas, cidadãos, que também fazem a sua parte, que se revoltam contra a inércia, que sabem que a sua relação com a cidade tem de ser - cada vez mais - bilateral. Não basta receber das cidades. É preciso dar. É urgente ser ator dessa mudança, dessa transformação. Em dia de eleições autárquicas, a Notícias Magazine traz cinco exemplos de cidadãos e empresas que ajudaram a transformar cinco cidades. Cinco exemplos de inovação social, de empreendedorismo sociocultural que resultou em mudança. Para melhor.
Esta cidade não mais será a mesma
Patrícia Cunha
Sextafeira Produções, Águeda
Águeda nunca mais será a mesma e a culpa é toda dela. Dela, do sócio Bruno Almeida e de mil chapéus-de-chuva coloridos que, no ano passado, puseram a cidade no mapa e, este ano, voltaram a pôr (só que este ano, por causa do sucesso anterior, já foram três mil chapéus).
Patrícia Cunha, 34 anos, tem uma empresa de eventos chamada Sextafeira Produções. No ano passado, ela e o sócio tinham em mãos o desafio de propor à Câmara Municipal uma ideia que ajudasse a revitalizar o comércio tradicional, sobretudo para a Rua Luís de Camões, muito em baixo de forma desde que se tornou pedonal, ao contrário até do que seria de esperar.
Foi então que surgiram mil ideias, num daqueles brainstormings particularmente bafejados pela imaginação. Ao mesmo tempo que surgiam as propostas, os sócios foram pesquisando preços de materiais, porque em tempo de crise pareceria de péssimo tom ter uma autarquia a esbanjar fortunas. «E assim nasceu a ideia de colocarmos chapéus-de-chuva coloridos, todos pertinho uns dos outros, para formar como que um telheiro, que protegesse do sol quem andasse a passear pela rua. Era barato, era colorido, era divertido. A Câmara primeiro estranhou mas ficou rapidamente seduzida. E arriscou.»
E fez muito bem. A iniciativa low cost (terá custado à volta de cinco mil euros), batizada com o nome de Umbrella Sky (céu de guarda-chuvas) arrancou no ano passado, no âmbito do Agitágueda, a festa de verão da cidade. As fotografias que habitantes e turistas tiraram correram mundo, através das redes sociais, e este ano vieram ainda mais visitantes, de todo o planeta, para conhecer a cidade dos chapéus-de-chuva.
Na primeira edição, houve muita renitência, houve quem torcesse o nariz, houve proprietários de andares que rejeitaram que lhes furassem a parede junto à janela, para prender os arames onde os chapéus ficariam pendurados. A típica desconfiança portuguesa de tudo o que começa. «Tivemos de arranjar soluções para esses pequenos obstáculos que apareceram, claro. As pessoas não faziam ideia de que o projeto ia ter tão boas repercussões para a cidade. Claro que este ano ninguém se importou com paredes furadas. Toda a gente queria ajudar, toda a gente queria que isto fosse para a frente.»
Assim, o Umbrella Sky foi revisto e aumentado. Este ano, custou dez mil euros (nada de especial para uma intervenção que trouxe tanto movimento à cidade), estendeu-se a outras ruas, se bem que a Luís de Camões continuasse a ser a rainha. De resto, o comércio nesta via, que parecia adormecido, acordou para uma nova vida. «As pessoas voltaram a esta rua, passeiam à sombra, o que antes não acontecia porque batia aqui o sol e era um forno. Há aqui um café que começou a fazer um pastel em forma de chapéu-de-chuva, para vender. E, na verdade, o chapéu tornou-se o símbolo da cidade.»
A empresa Sextafeira Produções já tinha feito outras intervenções urbanas: «Já tínhamos feito decorações nas árvores, com rendas, uma coisa muito gira. Mas ficámos desgostosos porque houve algum vandalismo, uma toalha de renda cedida por uma artesã chegou a ser roubada... enfim. Este Umbrella Sky também teve, no primeiro ano, algumas tentativas de vandalismo mas este ano tem sido defendido com unhas e dentes pela própria população, o que é muito giro. Se porventura cai um chapéu, logo alguém o guarda para nos entregar. Porque as pessoas estão mesmo encantadas com o poder transformador que isto teve e acho que também serviu para mudar mentalidades.»
Depois do sucesso dos chapéus-de-chuva, a empresa já foi convidada para fazer outros projetos. Diferentes ou iguais: «Fomos convidados para fazer uma coisa igual a esta, numa cidade de Espanha, Getafe (perto de Madrid). É um bom exemplo porque correu mal. Tinha havido muitos cortes, nessa cidade, muito desemprego, as pessoas estavam profundamente descontentes. E quando viram uma coisa alegre, bonita, decorativa a ser instalada nas ruas, sentiram-se ofendidos, revoltados. E eu digo que é um bom exemplo porque uma boa ideia pode correr bem mas também pode correr mal. Depende sempre da forma como as pessoas a recebem. Em Águeda foi perfeito, ajudou mesmo a transformar a cidade, a acordá-la. Mas em Getafe não foi assim.»
Patrícia vive em Águeda e sente-se duplamente feliz. Por um lado por ter partido da sua empresa uma ideia tão importante para mudar a sua cidade. Por outro, por assistir a essa mudança, por ver tanta gente nas ruas, tantos turistas, portugueses e estrangeiros, que jamais tinham escolhido Águeda como ponto de passagem. «Já estamos a trabalhar em novas propostas para o ano que vem. Tudo à volta dos chapéus, que se tornaram, ainda que nunca o tivéssemos imaginado, o símbolo desta cidade.»
Um bairro das artes
Luciano Amarelo
Terra na Boca, Porto
Antes havia o Bonfim, a Sé, Campanhã. A Foz, Cedofeita, Paranhos e outros que tais. Depois, e muito por causa de Luciano Amarelo, nasceu no Porto um bairro novo: o Bairro das Artes. Ainda nem todos o conhecem, ainda não é propriamente um bairro fiscal. Mas existe e cresce e fervilha e já ninguém o impede de ter uma vida própria, intensa. O Bairro das Artes, que começou na Rua Miguel Bombarda mas estendeu-se para as redondezas, é um polo de dinamismo cultural, cujo motor é a associação Terra na Boca, fundada por Luciano Amarelo. É preciso recuar um pouco à génese desta associação que criou um bairro.
Luciano Amarelo, 36 anos, é da Guarda mas foi viver para o Porto aos 15 anos. Foi estudar teatro, na Academia Contemporânea do Espectáculo e, no final do curso, formou uma companhia de teatro chamada Teatro Bruto, onde esteve durante 13 anos. Entretanto, ainda conseguiu uma bolsa e foi estudar para Londres, para a prestigiada École Jacques Lecoq, e foi aí que abriu horizontes. Quando saiu do Teatro Bruto, Luciano sentiu necessidade de agir, de fazer alguma coisa de mais substancial pela sua cidade, pela sociedade em geral: «E foi assim que nasceu, em 2009 a Terra na Boca, com cinco áreas de intervenção: artística, cultural, social, ambiental e de bem-estar.»
A associação cultural começou por se confundir com um festival anual, o TRANSdisse, cada ano dedicado a um tema. Em 2011, o tema foi «O ano da rua» e o objetivo era pensar o espaço público e privado. Fizeram-se espetáculos em espaços não formais, galerias, centros comerciais, pátios e, mais do que isso, Luciano percebeu que havia, na Rua Miguel Bombarda e limítrofes, um sangue novo a despontar, a que era preciso dar só um empurrãozinho: «Havia sangue novo mas estava muito fragmentado, era preciso criar um bairro, ligar as pessoas, cruzá-las. E assim surgiu o Bairro das Artes, em formato de seta: são 7 ruas e o Largo da Maternidade. O bairro é formado pelos bairristas (os lojistas), pelos bairrões (os moradores) e pelos vizinhos e visitantes. Todos os meses a associação pensa e programa eventos para os diferentes lojistas aderentes (que pagam vinte euros por mês de «condomínio» à Terra na Boca), imprime um mapa do bairro, com todos os eventos que cada loja vai ter, distribui o mapa pela cidade, nomeadamente no aeroporto, e depois é ver os turistas a chegarem ao bairro, de mapa na mão, a quererem assistir aos mais variados movimentos artísticos espalhados por aqui e por ali.»
O turbilhão cultural sente-se quando se caminha pelas ruas do bairro, como se tivesse uma densidade palpável. Há uma energia a fazer lembrar Londres, com eventos porta sim porta não. Por exemplo, quem diria que uma lavandaria podia dar concertos? Que se poderia ouvir uma cantora lírica no meio de vestidos de noiva acabados de limpar e pendurados em cabides? E o que dizer do ciclo de tertúlias, feito nessa mesma Lavandaria Olímpica, a que a Terra na Boca chamou de «Conversas sujas»? «As conversas sujas partiram da ideia de pôr bairrões e bairristas a lavar a língua. As pessoas gostam de falar mal de tudo e, ali, tinham a sua oportunidade. Mas há muito mais. Outro exemplo, todos os dias 10 há a Festa Convívio com Comida e Animação à Mistura e toda a gente traz qualquer coisa e partilhamos tudo. No último dia 10 houve um momento Bollywood, em que uma indiana explicou como se dançava e daí a nada já havia 15 a 20 pessoas a dançar.»
Há conferências, tertúlias, exposições. Há teatro, música, pintura. Mercadinhos, cinema, cursos de reiki. Há costura, workshops de ioga, há dança. O trabalho é muito e o único dinheiro que a associação cultural recebe vem dos aderentes, que pagam, todos os meses, os tais vinte euros de condomínio. Luciano Amarelo trabalha voluntariamente, para que a equipa da Terra na Boca receba e para que o trabalho se faça, e garante que, às vezes, tem de pôr dinheiro do seu bolso. Mas nada lhe paga a alegria de ver o bairro que criou cheio de movimento.
Cristina Camargo, 60 anos, é uma das bairristas. Tem uma oficina de artes, na Rua Miguel Bombarda, que se chama BOA (Bombarda Oficina de Artes). «Há três anos que estou aqui e abro a porta a quem queira vir aqui fazer um trabalho com o qual me identifique. Workshops, apresentações, exposições... a porta está aberta a todos os artistas porque isto não é meu, é de todos. E é bom que os outros bairristas façam desta a sua casa também. Porque é desta interligação, é deste cruzamento de cabeças diferentes que nasce um contágio de ideias.»
Além da sua generosidade, que se diria típica de artista, Cristina tem também ateliers fixos de pintura (para adultos e crianças), cerâmica (as suas especialidades), ioga, dança contemporânea, escrita criativa. E tem parcerias com Serralves, com a câmara e com algumas escolas. Projetos atrás de projetos, que ela não gosta de estar parada. Sente-se como peixe na água, no novo bairro criado para outros, como ela. E sabe que são associações como a Terra na Boca que fazem mexer as cidades: «Tudo começou com algumas galerias, que vieram para aqui e começaram a dar uma nova vida a Bombarda. Depois foi criado o bairro e sente-se aqui algo novo, uma cidade em mudança.»
Um lugar sustentável
Luís Bello Moraes e Ester Matos Sequeira
Portalegre em Transição
Tudo começou com uma conversa entre amigos. Luís Bello Moraes, 40 anos, queixava-se da inércia da sua cidade: «Todos nos lastimamos que ninguém faz nada, que ninguém se mexe e, afinal de contas, nós também estamos a entrar nesse ciclo! Temos de ser agentes de mudança! Vamos fazer alguma coisa para mudar esta modorra!» E, para não avançarem por caminhos vãos, decidiram falar com uma amiga que estava no comité europeu: «Queríamos saber de um caminho que já estivesse a ser trilhado lá fora, uma tendência, com algum impacte. Ela fez alguns contactos e falou-nos no Movimento de Transição. Explicou-nos que era um movimento que estava a crescer de forma viral, de baixo para cima, completamente inclusivo, sem regras ou obrigatoriedades. Fomos investigar e achámos interessante.»
O que vem, então, a ser o Movimento de Transição? É um movimento que surgiu na Irlanda, criado por Louise Rooney (e popularizado por Rob Hopkins, em Inglaterra), e que tem por base o facto de nos aproximarmos do fim da era do petróleo barato. O seu objectivo é sensibilizar e dotar as comunidades de capacidades para enfrentar esta situação, e transformar as cidades em modelos sustentáveis, menos dependentes do petróleo, mais ligadas à natureza e mais resistentes a crises externas, tanto económicas como ecológicas.
O que mais agradou a Luís Bello Moraes foi o facto de não ser um movimento radical, que obrigasse as pessoas a cortarem com os seus hábitos de um dia para o outro: «Para aderirmos ao movimento não era preciso passarmos todos a cozinhar em fogueiras e a comer exclusivamente das nossas hortas ou a deixar de andar de carro. Não! A ideia é tentar, de forma criativa e positiva, começar o processo de transformação. Mas gradualmente, porque qualquer transição tem de ser feita de forma gradual. E, ao mesmo tempo, este processo implica uma transição interior, um desenvolvimento pessoal. Porque é um movimento holístico.»
E foi assim que, em 2011, nasceu em Portalegre a associação «Portalegre em Transição», do qual Ester Matos Sequeira, 38 anos, também faz parte desde o início. A cidade não é grande, o grupo de amigos envolvidos no movimento começou a criar algum burburinho à volta do assunto, as pessoas começaram a falar da transição, muitas delas sem saberem bem do que se tratava. Quando foi organizado o primeiro grande evento, de lançamento da iniciativa, veio muita gente ao Centro de Artes do Espectáculo de Portalegre. O grupo mostrou um vídeo do Rob Hopkins e depois botou discurso. Só que o discurso foi demasiado desconcertante, quase subversivo: «Nós não temos nenhum projeto para a cidade. Nós queremos ouvir a cidade. Queremos ouvir-vos! Quais são os vossos desejos para a cidade? Quais as vossas críticas?» Houve gente indignada, nesse dia. «Então nós saímos de casa para isto? Juntam-nos aqui a todos para não dizerem nada?» Mas, depois do choque inicial, que resulta do facto de as pessoas não estarem acostumadas a que alguém as queira escutar, houve uma frutífera discussão, da qual resultaram uma série de iniciativas.
Um dos temas em discussão foi a soberania alimentar. Portalegre há muito que depende totalmente do exterior para subsistir e, quando o assunto veio à baila, logo houve quem apontasse o dedo à ASAE: «Eu até fazia compotas para vender, com as frutas que me apodrecem nas árvores, mas a ASAE não deixa.» Passado algum tempo, a associação Portalegre em Transição organizou uma conferência com a ASAE, onde foram desmistificados alguns desses mitos e, na cozinha comunitária que existe no mercado da cidade, têm-se feito workshops, oficinas de compotas, de biscoitos e bolachas, para venda.
O mercado municipal tem conhecido uma grande dinamização, graças ao trabalho da associação: «Organizamos música, quartetos de cordas, jazz, feiras, workshops, projeções de cinema, oficinas de costura. Queremos que as pessoas se encontrem, partilhem, conversem, pensem, discutam. Queremos que vivam a cidade. Como promovemos a economia da dádiva, todos os meses fazemos a Feira de Troca. Não diabolizamos o dinheiro nem o comércio, mas gostamos de sublinhar que todos somos corresponsáveis pelo que fazemos e, assim, a estas feiras de troca cada um traz algo de seu para partilhar. Podem ser ingredientes para se cozinhar alguma coisa, pode ser algo que fez com as suas mãos. É muito bonito ver como as crianças, muito mais puras do que nós, adultos, trocam por vezes brinquedos caros por aqueles brindes que vêm dentro dos ovos de chocolate. Porque a elas o que interessa é a troca, e não o valor das coisas.» Nessas feiras, Luís Bello Moraes já trocou limonadas por abraços porque «as coisas têm de ser divertidas e as nossas atividades têm de ser uma celebração».
Nestes dois anos de vida, a Portalegre em Transição já tocou a vida de largas centenas de pessoas. Como, por exemplo, quando fizeram a jardinagem de guerrilha: «No 1.º de Maio juntamos um grupo e andamos pela cidade a atirar sementes de girassol para os canteiros abandonados. É lindo ver, tempos depois, a cidade com girassóis, que parecem sorrisos. Houve um desses girassóis que cresceu imenso, mais do que os outros. Viemos então a saber que as pessoas da vizinhança o regavam e tratavam dele. E isso comoveu-nos. Porque devia ser sempre assim: nós devíamos cuidar da cidade que é nossa, é de todos nós. Devíamos cuidar uns dos outros. Quando vou às compras, aqui ao mercado, eu estou a ajudar aquela pessoa que me vende os legumes. O comércio tradicional é cuidarmos uns dos outros.»
Então, ao verem o girassol tão cuidado, os membros da Portalegre em Transição andaram a meter cartas debaixo das portas, sugerindo uma reunião, no «canteiro do girassol». No dia e hora marcados, apareceram umas dez ou 15 pessoas: «E nós lançámos o repto: vamos pedir à câmara que nos ceda este canteiro para nós fazermos uma horta. E assim foi. A câmara - que tem sido impecável connosco, sempre aberta às nossas ideias - cedeu-nos o canteiro e a nossa horta nasceu.» Os mensageiros da desgraça não lhe davam nem uma semana. A horta já dura há dois anos.
Em Junho, houve um evento de grandes proporções, em Portalegre: a Ajudada. A ideia partiu de alguns membros da Portalegre em Transição e a organização podia ter ficado a seu cargo. Mas não. Eles queriam que este fosse um projeto de todos. E foi. Aconteceu em três dias e teve atividades de manhã à noite. «O primeiro dia foi dedicado à parte mais racional, e designou-se por "Cabeça", o segundo era a parte mais emocional, "Coração", e o terceiro dia foi dedicado á ação: "Mãos".» A Ajudada trouxe centenas de pessoas de fora a Portalegre e mexeu com a cidade no seu todo. Dinamizou-a. Fê-la pensar. Transformou-a. Mas os mentores da associação sabem que a mudança se faz todos os dias. Junho já lá vai. A inércia facilmente se reinstala. É preciso continuar.
A verdadeira rádio local
Nicolau Sernadela
Programa de rádio "Tio João", Bragança
Ele tem uma voz rouca, às vezes quase esganiçada, dir-se-ia que pouco radiofónica. E, no entanto, há 24 anos que acorda Bragança aos microfones da rádio, com uma alegria que viciou não apenas a cidade, não apenas o concelho, mas todo o distrito de Bragança (e não só, que até os emigrantes em França já se acostumaram a escutar o «tio João»). «Está na hora, está na hora/ está na hora, pois então!/ Está na hora de acordar/ família do tio João!»
Nicolau Sernadela tem 45 anos e começou a formar esta grande família na RBA, no dia 29 de outubro de 1989: «Eu era discjockey e o então dono da RBA sabia que eu me deitava de manhã. Então, deu-me as chaves para eu ir pôr uns discos, entre as 04h00 e as 06h00. Naquele dia de outubro, não sei o que me deu, pus no ar uma música instrumental do Júlio Pereira, dei o bom-dia e disse que ia fazer uma grande família! Depois comecei a chamar "tio João" a um ou outro ouvinte e acabou por ficar "O Programa do Tio João". Agora até há quem confunda o nome do programa com o meu.»
E assim foi. O programa passou a fazer parte da vida de Trás-os Montes, nos bons e nos maus momentos. Às seis da manhã já há quem reze com ele, a partir de casa, já há quem ligue para a rádio para tocar uma concertina ou uma harmónica em direto, já há notícias sobre a morte de um «tio» ou o nascimento de um «sobrinho», já há uma boa colheita partilhada ou um incêndio a lamentar. «Ainda hoje dei voz a uma senhora que queria comprar um burrinho de trabalho e a um senhor que queria encontrar um colega da tropa.» Cantam-se os parabéns a quem faz anos, lastima-se uma doença, faz-se sorrir quem já só tinha desalentos. Alegrias e tristezas são desfiadas na rádio, quebrando solidões. Nicolau é o veículo da partilha e, com ele, todos se sentem em família. Em suas casas, os brigantinos passaram a sentir-se mais acompanhados, porque o «tio João» estava lá para os animar e unir, tal e qual como numa família. De resto, é célebre a sua saudação: «Familiazinhaaaaa, bom diaaaaaa!» (assim mesmo, cantada, arrastada e com muitos «aas»).
Ao longo destes 24 anos, Nicolau Sernadela não foi só animador, à distância, das manhãs da rádio. Quis conhecer pessoalmente a sua grande família e organizou 24 piqueniques (o famoso piquenicão do «tio João») em distritos diferentes (Viseu, Guarda, Vila Real, Bragança e dois em Espanha), 62 festas, 233 viagens: «Já fomos duas vezes a Itália, já fomos abençoados pelos papas João Paulo II e Bento XVI. Já fizemos cruzeiros, já fomos várias vezes a Lourdes em peregrinação... Passo férias com a minha familiazinha... Vão dois autocarros para Benidorm, onde convivemos oito dias.»
Quando casou, Nicolau deu mais de duas mil refeições. Quando o filho foi batizado teve quatrocentos convidados. «Quando se tem uma grande família é assim!»
Além do convívio, para lá das ondas hertzianas, Nicolau e a sua familiazinha também já ajudaram dezenas de famílias necessitadas: «Já conseguimos várias dezenas de cadeiras de rodas que a Segurança Social negou. Muitas vezes pedia, na rádio, e dali a minutos aparecia a cadeira de rodas. Já ajudámos quem ficou com as casas queimadas pelos incêndios. E até há vários cemitérios com lápides onde se pode ler "recordação da família do "tio João"". Estamos todos uns para os outros, nos bons e nos maus momentos.»
Foram 24 anos a transformar cidades, aldeias, concelhos, distritos. A levar uma voz amiga a quem, por vezes, só precisava disso mesmo: de uma voz. De alguém que estava ali todos os dias, ainda que não presencialmente, para dar ânimo, para dar coragem, para aconchegar. No fim de maio, porém, a voz do «tio João» calou-se, sem aviso. A RBA, comprada pela Media Capital, decidiu que o programa de Nicolau Sernadela não se enquadrava no estilo da M80, a rádio que passou a ocupar o maior espaço em antena. E, assim, às 06h00 da manhã de 31 de maio, houve caras de espanto em milhares de casas, de gente que ao ligar o rádio não escutou o típico «Familiazinhaaaaaaaa, bom diaaaaaaa!»
Gerou-se uma onda de protesto. Houve manifestações. Houve quem chorasse, quem se revoltasse, quem gritasse que a vida não era a mesma sem o «tio João». Os idosos sentiram o peso do isolamento, como há muito não sentiam. E todos eram unânimes: sintonizariam os rádios para a frequência que acolhesse Nicolau Sernadela e a sua grande família.
Assim foi. O «tio João» mudou-se para a Rádio Brigantia e, atrás dele, foram todos os que já não vivem sem a sua voz e a sua alegria. O programa da familiazinha continua, noutra estação, a transformar solidões em sorrisos, frio transmontano em calor, e as asperezas da vida em festa.
Sangue novo no velho bairro
Inês Valsinha
Renovar a Mouraria, Lisboa
Se Inês Valsinha não tem ido para Olinda (Brasil) fazer investigação para o seu mestrado, talvez a Mouraria ainda estivesse votada ao abandono e entregue a si própria, fora dos circuitos culturais e de imobiliário, envelhecida, devoluta e triste. Mas quis o destino que Inês, habitante da Mouraria, fosse parar a Olinda e se apaixonasse pelo dinamismo daquela cidade, em algumas coisas tão parecida com o seu bairro: «A semelhança entre o centro histórico de Olinda e a Mouraria é enorme, em termos arquitetónicos, só que a atividade cultural em Olinda é absolutamente incrível. Em todas as portas havia ateliers, havia artistas, havia artesãos, cafés. Não havia uma casa devoluta. É uma cidade muito vivida, com atividades ao longo de todo o dia: música, tapeçaria, pintura, dança. E com muita cor e alegria!»
Quando chegou, Inês Valsinha trazia Olinda no pensamento. Queria trazê-la para Lisboa, para a Mouraria. E começou a desafiar amigos. Mas havia uma desconfiança e uma preguiça em fazer. Dava trabalho, a vizinhança encolhia os ombros, ninguém parecia com vontade de pôr as coisas a mexer. Mas Inês não estava disposta a desistir assim tão depressa. «Pensei: nós sozinhos não vamos conseguir remar contra esta maré. Temos de exigir à câmara e ao parlamento que olhem para a Mouraria, que vejam que houve uma recuperação profunda noutros bairros e aqui não. Fizemos uma petição que teve uma mega-aceitação. Toda a gente quis assinar. Começou a falar-se no assunto em todo o lado e nem precisámos de entregar a petição porque, a meio, a Câmara Municipal de Lisboa contactou-nos para desenharmos um projeto para candidatar ao QREN [Quadro de Referência Estratégica Nacional].»
Para o fazerem, tiveram de se formalizar enquanto associação. E, assim, nasceu em março de 2008, a associação Renovar a Mouraria. Não tinham um espaço próprio e todas as reuniões iam sendo feitas em casas, cafés, esplanadas. Até que, certo dia, conseguiram que a câmara lhes arrendasse, por um preço muito baixo, uma antiga oficina de colchões muito degradada, com o compromisso de a reabilitarem. A associação conseguiu fazer as obras e tem, agora, um espaço que já é pequeno para tantas atividades.
Já passaram cinco anos desde que a Renovar a Mouraria nasceu e o bairro, apesar de ainda não ser como Olinda, mudou radicalmente. Graças às candidaturas a apoios diversos, recuperou-se muito do imobiliário, que estava a cair, vieram novos moradores, gente nova que convive alegremente com a população envelhecida do bairro, graças às atividades que a associação promove todos os dias. O concurso de fado Há Fado na Mouraria é uma das faces mais visíveis dessa fervilhante ebulição cultural e social. Dessa intensa atividade, nasceu também um jornal, neste momento semestral, chamado Rosa Maria, todo feito com voluntários, e que divulga tudo o que se vai passando pelo bairro renovado.
Mas há muito mais: há jantares, passeios, há um projeto de saúde com medicinas alternativas («e a graça que tem ver os velhotes rendidos ao reiki ou à acupuntura?»), há alfabetização, português para imigrantes, música para crianças, ballet, mandarim. «Também temos apoio ao cidadão, em que um jurista responde às mais variadas dúvidas, apoio ao estudo para miúdos com mais dificuldades. Há um movimento que não existia. As pessoas tinham medo de entrar na Mouraria. À noite não se via ninguém e agora os restaurantes estão cheios. Há pessoas a circular. Conseguimos criar condições para que as pessoas cá se fixassem. É raro o dia em que não recebemos telefonemas a perguntar se há casas para comprar ou arrendar. Há sangue novo na Mouraria. E o que é giro é ver o diálogo intergeracional e intercultural, que antes não existia.»
No dia em que fomos à Mouraria, havia atividade marcada. Era a conclusão de mais uma visita guiada com fado e os moradores reuniram-se no Largo da Severa para ver as suas fotografias e, com a ajuda de um ilustrador, fazerem eles próprios uns desenhos. «Ai, a paciência que vocês têm connosco, até dá gosto. Quem nos vale são vocês, que nos dão alegria e estão sempre a inventar coisas novas!» Emília Candeias, de 71 anos, tem um sorriso de orelha a orelha. Diz que a sua Mouraria não é a mesma, é outra coisa, muito mais viva, muito mais bonita, muito melhor: «Não há mais dias na semana, se houvesse mais estes queridos faziam! Até dá gosto viver num sítio assim!»
[29-09-2013]