Os incapazes da praxe
As universidades não podem aceitar que a integração dos seus alunos seja feita com base em princípios desajustados e atentatórios da dignidade e dos direitos das pessoas. Para facilitar a adaptação dos estudantes do 1º ano e prevenir eventuais excessos da praxe, a Universidade de Évora criou um programa de acolhimento por pares e professores que funciona desde 2009.
Elisa Chaleta
Professora há 23 anos, é a actual directora do Departamento de Psicologia da Universidade de Évora. Mas continua a dar aulas e também coordena o Programa Tutoria por Pares, que visa apoiar o processo de adaptação e integração dos alunos do 1º ano, criado já há cinco anos.
A ideia de que os seis estudantes universitários que morrerem no Meco pudessem estar a preparar/testar um ritual de praxe académica lançou de novo o debate sobre este costume. Qual é o sentido da praxe universitária?
_ A praxe é um conjunto de usos, tradições e rituais, alguns bastante controversos, com raízes antigas e presente em muitos países. Em Portugal após o 25 de Abril ressurge na Universidade de Coimbra alastrando-se a todas as academias. É um costume que faz sentido para muitos estudantes, mas com o qual grande parte das instituições de ensino superior tem dificuldade em lidar devido ao seu formato e aos excessos que são cometidos, nos quais nem os professores nem as instituições nem a comunidade se reveem.
Está a referir-se às agressões físicas e psicológicas?
_ Os aspetos mais mediáticos da praxe são os atos e comportamentos que atentam contra a dignidade humana, que humilham ou culminam na agressão dos alunos do 1º ano e que já deram maus resultados. E é isto que não pode continuar a suceder. Mas importa perceber que, na perspetiva dos alunos, há um outro lado da praxe, que tem a ver com a integração e a socialização dos que chegam à universidade, em particular os que vêm de longe e não conhecem ninguém. Nesse sentido, a praxe é um fator facilitador da adaptação que encontra maior espaço por não existirem outras respostas no quadro das instituições.
Mas podem a humilhação e a submissão promover a integração e a socialização? Afinal, sabe-se que muitos alunos se sentem coagidos a fazer o que os mais velhos lhes exigem. Porquê?
_ Em todos os fenómenos de grupo ocorrem excessos. Podemos fazer um paralelismo entre a praxe académica e o que sucede com o bullying ou com a violência das claques nos recintos desportivos: há um conjunto de sujeitos que aproveitam determinada oportunidade ou circunstância para praticar certos atos que não executariam se estivessem sozinhos. No que respeita à praxe, é ainda mais difícil de controlar porque as academias as proíbem intramuros. Em regra, as praxes decorrem extra-muros, nas ruas e praças, no espaço público.
Está a dizer que as universidades e politécnicos se sentem impotentes para controlar os alunos e que, à cautela, lavam as mãos mandando-os para fora dos seus espaços?
_ Dada a dimensão, envolvendo milhares de alunos todos os anos, é complexo. Os principais pressupostos da praxe académica são o exercício do poder dos veteranos e a subserviência dos caloiros. A universidade, um espaço de humanismo, democracia, igualdade, criatividade, não pode aceitar que a integração dos seus alunos seja feita com base em princípios desajustados e muitas vezes atentatórios da dignidade e dos direitos das pessoas.
Mas acaba por consentir, só que se alheia da responsabilidade. Defende um envolvimento maior dos estabelecimentos de ensino?
_ Penso que os regulamentos disciplinares das instituições não referem expressamente as praxes, mas mencionam todo e qualquer comportamento que seja desajustado e que ocorra dentro do seu espaço. Não sei se a universidade pode regulamentar atos que ocorram fora da sua área geográfica.
Num relatório que publicou em 2010 sobre as praxes, o Observatório dos Direitos Humanos diz que os estabelecimentos de ensino podem ser civilmente responsáveis se não proibirem ou não punirem nos regulamentos internos comportamentos violadores da integridade e dignidade humana, quer dentro quer fora das suas instalações. O que lhe parece?
_ Não sou jurista, não lhe sei responder. O que observo permite-me concluir que a universidade tem-se sentido impotente para lidar com o fenómeno, mas penso que este debate não deve fazer-se unicamente na universidade pois é um problema transversal à sociedade.
Não pode haver praxe sem humilhação?
_ No plano dos princípios, sim. Na prática, acontece o contrário. À praxe está subjacente um código de linguagem e uma hierarquia que impõe relações de poder e de submissão.
Pode dar exemplos do que é que isso significa?
_ Quando um aluno do 1º ano chega à universidade não é considerado um aluno, mas sim um «bicho», um «verme», uma «besta» e é tratado em conformidade. São este tipo de situações que fazem com que a praxe seja socialmente repudiada.
No parecer de 2010, o Observatório dos Direitos Humanos apontou exemplos de praxes abusivas, entre elas, estudantes obrigados a fazer posições sexuais, de escravos dos «doutores», a tratar da limpeza das suas habitações, a caminhar com larvas de insectos nas meias, nos cabelos e no corpo, a rastejar na lama, a fazer flexões, a colocar o soutien do lado de fora da roupa, a simular orgasmos com postes de iluminação, a carregar com arreios de burro ou a enfrentar o denominado tribunal de praxe. Os jornais também relataram casos de jovens obrigados a mergulhar em dejetos e a beber urina. As universidades podem fazer de conta que nada disto existe?
_ Isso é tudo do domínio do inaceitável. São atos que violam os direitos humanos mais básicos que nem a universidade nem a sociedade nem ninguém pode tolerar. Alguns comportamentos determinaram queixas de alunos e levaram já a condenações em tribunal.
E que obediência cega é essa, que faz que os mais novos se submetam a situações de risco?
_ A maior parte dos alunos submete-se porque teme a exclusão. Os jovens que não forem praxados ficam automaticamente excluídos de um conjunto de atividades, incluindo a queima das fitas. E também não podem trajar. Por outro lado, há aqui um percurso reprodutivo, em que muitos dos alunos do 1º ano têm a expetativa de que um dia serão eles os que vão estar do outro lado e essa ideia de poder é atrativa.
São cada vez mais as vozes que se levantam contra este tipo de praxe mas verificamos que os alunos envolvidos a defendem afincadamente. Há alguma justificação?
_ A necessidade de ter poder e exercê-lo sobre outros é algo aliciante para as pessoas. A praxe é isso e também é o caldeirão em que se reflecte uma série de problemas psicológicos, sociais, educacionais e culturais. Nas organizações encontra-se sempre quem use algum do poder inerente às funções que desempenha não para construir alguma coisa mas sim para subjugar os outros. É o que se passa em certas estruturas estudantis, provavelmente por falta de um conjunto de valores, incluindo o respeito pelo outro, ou por ausência de uma reflexão sobre o que é isto de ser humano.
Tem conhecimento de situações como as referidas envolvendo alunos da Universidade de Évora (UE)?
_ Desconheço se alguns alunos já fizeram queixa na Reitoria mas sei que há uma enorme preocupação dos órgãos da universidade no sentido de não haver excessos, o que não quer dizer que não tenham ocorrido algumas situações fora dos muros da instituição.
Já se fizeram comparações entre as praxes e o mundo militar. Concorda?
_ Todas as organizações são hierarquizadas mas, em regra, o seu funcionamento não assenta na afirmação do poder mas sim em níveis de responsabilidade dos seus elementos, ao contrário do que se passa nas chamadas comissões de praxe que visam o exercício do poder de uns sobre os outros. Por isso, percebo a comparação com a organização militar. Importa acrescentar que no mundo da praxe académica, o que mais conta é a antiguidade e o tempo. O aluno mais «notável» e com mais poder é o que tiver o maior número de matrículas.
Parece que os rituais da praxe podem dominar a vida e o tempo dos alunos envolvidos. Quem é que regula as atividades?
_ A praxe é um ritual que se inscreve naquilo a que os estudantes chamam de tradição académica. Por exemplo, aqui, rege-se pela CEGARREGA - Código Estudantil de Graus Académicos Regulamentos e Regras de Exegese e Gírias Académicas - que define as regras ou regulamentação, englobando a explicação de normas, direitos, deveres, obrigações e penalizações, que os próprios estudantes regulam.
Numa reportagem que fiz com estudantes estrangeiros do programa ERASMUS, uma aluna suíça mostrou-se perplexa por, durante a primeira semana do ano letivo, a universidade ser tomada pelos Harry Potter"s, como ela denominava os estudantes trajados, e não haver aulas. Afinal, no calendário académico, qual é o tempo da praxe?
_A UE tem realizado algum trabalho com os estudantes no sentido de limitar no tempo as atividades da praxe que, aqui, terminam no dia 1 de Novembro, dia da Universidade.
E não há aulas até lá?
_ Há aulas e há presenças obrigatórias nas aulas. Tanto os alunos do 1º como os do 3º ano vão às aulas, pois a praxe decorre fora do período lectivo. Esta foi uma das medidas que a UE adotou, além da negociação permanente com os estudantes, de modo a que a praxe não interfira, ou interfira o menos possível, com as atividades letivas e com os resultados académicos. O sucesso académico dos estudantes é um aspeto crucial.
Mas a UE foi mais longe. Fale-me do programa que criaram para os alunos do 1º ano.
_ Percebemos que a Universidade não deve deixar o acolhimento e a integração dos alunos do 1º ano entregue apenas aos estudantes. A sociedade mudou, a universidade também. Deixou de ser um espaço elitista, massificou-se, reflete a diversidade da sociedade. A Reitoria da UE iniciou em 2009 um programa que visa acolher e integrar os estudantes oferecendo-lhes programas que envolvem tutoria por pares e tutoria por docentes.
Como é que se desenvolve o programa?
_O programa de Tutoria por Pares da UE visa o desenvolvimento de competências pessoais, sociais e académicas dos estudantes que entram na Universidade e decorre em regime de voluntariado. Durante o ano letivo damos formação a estudantes de 3º ano e a alguns de mestrado e são estes que, depois, no primeiro semestre de cada ano, desenvolvem o programa com os estudantes de 1º ano. Sempre com a supervisão do GPSA - Gabinete para a Promoção do Sucesso Académico, que depende diretamente da Reitoria.
E resultados?
_O envolvimento e adesão crescente dos estudantes, dos Núcleos, da Associação Académica e de muitos docentes, o que tem possibilitado responder a mais metade dos cerca 1100 alunos de 1º ano que todos os anos ingressam nesta universidade. O programa começou por iniciativa do Reitor, na altura o Prof. Jorge Araújo, e no princípio as atividades só decorriam até Novembro, mas para responder de forma mais eficaz às necessidades dos alunos passou a ser aplicado durante todo o primeiro semestre. Em paralelo, e com impulso da atual Reitoria, implementou-se a tutoria de acompanhamento pelos docentes e, agora, cada aluno de 1º ano tem atribuído um tutor/professor que é a sua referência na instituição desde a sua chegada e durante todo o primeiro ano. Tem sido uma experiência muito positiva, mas que necessita ainda de muito trabalho e investimento.
A violência na praxe existe desde que existe praxe... No século XVIII, a morte de um caloiro em Coimbra fez com que o rei D. João V proibisse a praxe. E agora, o que deve ser feito?
_Além do debate social que tem de se fazer, é fundamental que a academia se debruce sobre as implicações e as consequências das praxes. Sendo que estas envolvem valores e uma dimensão ética fundamental, é necessária uma reflexão séria no seio das instituições envolvendo a comunidade académica em geral e os alunos em particular, sendo que alguns também são críticos. Não sei se se deve proibir, mas é fundamental definir limites, responsabilizar e penalizar sempre que se justifique.
Em vez da praxe, algumas universidades europeias têm a chamada Welcome Week, com desporto, jogos, concursos, atividades culturais e cívicas, e cada modalidade tenta angariar participantes entre os novos alunos. Cá, não faz sentido evoluir para um modelo assim?
_ Seria desejável que se caminhasse por aí.