O senhor dos pincéis
Quem conhece a obra de Gil Teixeira Lopes identifica logo os seus traços: pinceladas fortes, vermelhos e negros, largueza de gestos. Mas a nova exposição é também diferente de todas as que já fez, fruto das vezes que o artista renasceu. Sopros de Vida está no Museu da Cidade, em Lisboa, até 6 de abril.
Os anos que leva como artista são quase tantos como os 77 de vida, mas nem assim Gil Teixeira Lopes deixa de sentir ansiedade a cada nova exposição. Detesta repetir representações, ele que domina a pintura, a gravura, o desenho, a escultura, e se serve de todos para expressar o que lhe vai na alma. Também nunca sabe quando dará uma obra por terminada: enquanto achar que tem algo a acrescentar-lhe, modifica-a vezes sem conta, por vezes ao fim de três décadas. É um homem atento, de convicções fortes, inquieto, que morreu e nasceu várias vezes, como ele próprio gosta de dizer. Sopros de Vida era o único nome que podia dar à mostra que inaugurou há uma semana no Museu da Cidade, em Lisboa, e avisa já que qualquer semelhança com a exposição homónima de 2009 é pura coincidência.
«Passei por vários sopros de vida desde 1971, altura em que comecei com as minhas doenças do coração. Após três operações, fiz em 99 a última grande intervenção, que foi o transplante cardíaco, e o meu coração parecia de tal forma um hambúrguer picado que ficou para o museu do Hospital de Santa Cruz e já serviu de tese a doutoramentos. Foram buscar-me ao outro lado em todas essas vezes, sofri várias passagens», explica o artista, que define a sua mostra mais recente como uma retroprospetiva. «Já me criticaram por usar este termo, mas não me interessa. É neste estado que eu gosto de estar: olhando para trás - o que faço é produto do que se passou, é natural que haja determinantes que percorram toda a obra - e tentando sempre andar para a frente, porque senão era uma chatice.» As peças agora reunidas têm uma relação muito intensa consigo. «Há inclusivamente um quadro redondo, vermelho, que também intitulei de Sopros de Vida pela aproximação àquela imagem retorcida do meu coração.»
A viagem de Gil Teixeira Lopes pelas artes começou na casa de família, em Mirandela, ainda mal largara as fraldas. O pai, Armindo Teixeira Lopes, era pintor, desenhador e poeta, tendo chegado a trabalhar como decorador de palacetes e casas senhoriais em Belo Horizonte, no Brasil. O irmão, o pintor Hilário Teixeira Lopes, mais velho três anos, trazia-lhe os desenhos que fazia na escola para ele copiar (o seu primeiro foi uma rosa). Às quintas-feiras, ambos fãs do suplemento Das Artes das Letras que vinha com O Primeiro de Janeiro, aguardavam impacientes que o comboio chegasse do Porto com o jornal que o pai assinava para copiarem as imagens e aprenderem coisas sobre Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Chirico. «Foi aí que conheci Florença, apesar de só mais tarde vir a amar pessoalmente essa cidade onde todas as pedras da calçada são arte.»
Aos 11 anos, finalizada a instrução primária, fez um autorretrato que deixou à mãe e veio estudar para a Casa Pia de Lisboa, onde teve uma educação privilegiada durante oito anos. «Entrei para o curso de Pintura Decorativa e ao fim de seis anos fiz mais dois de Secções Preparatórias às Belas-Artes. Toda a parte artística era muito diversificada, suculenta ao máximo, complementada depois por cadeiras de história, geografia, matemática, ciências, inglês e muitas outras», conta Gil, ciente de que ali deitou as raízes da sua expressividade artística. «Aos 15, 16 anos, estava eu a copiar os painéis de Nuno Gonçalves com os materiais que fazíamos no laboratório de química, partindo do cianeto de potássio até chegarmos ao azul da Prússia. Para as aulas de anatomia íamos para onde é hoje o Estádio do Restelo, que na altura não existia, e desenterrávamos ossos para estudar. O nosso ensino era vivo.»
Na fase final do curso dedicou-se ainda ao teatro, que lhe permitiu ser ator, encenador, caraterizador, cenógrafo e «meter as mãozinhas em tudo e mais alguma coisa», hábito que lhe ficou até hoje. Colaborou na parte cénica de várias peças com o seu amigo e colega Armando Jorge, mais tarde criador e diretor da Companhia Nacional de Bailado. No centro do claustro dos Jerónimos chegou a representar o Breve Sumário da História de Deus, iluminado por quatro holofotes da Marinha e com os grandes atores da época a assistirem. Aos 19 anos, quando ingressou na Escola de Belas-Artes, levava uma preparação de tal maneira boa que fez todo o curso dito superior em dois períodos, a tese em 13 dias e o serviço militar sem perder ano nenhum. Acabou por ser convidado a ensinar e a fazer apontamentos das cadeiras de tecnologia (vitral, mosaico, cerâmica, tapeçaria e outras), impostas pela nova orgânica de 1957, para as quais estava mais habilitado do que qualquer pessoa.
«A gravura era uma das cadeiras que integrava o elenco e ninguém sabia sequer tirar uma prova. Comecei eu a tirá-las e, a partir daí, passámos a fazer gravura e a candidatar-nos às maiores competições internacionais, para as quais despachávamos trabalhos por correio aéreo registado como se fossem cartazes», lembra o professor, incapaz de descansar enquanto não rompeu as barreiras nacionais e arrecadou os prémios mais importantes em diversas bienais do mundo, entre as quais a de Florença e a da Noruega. Ainda tentou criar a primeira grande bienal de gravura em Portugal, tinha tudo preparado em termos de projeto, reuniões com os organismos oficiais, pessoas designadas e presidentes dos eventos estrangeiros que o convidavam amiúde. Mas foram tantos os entraves que lhe levantaram que ficou para estudo económico até à data.
«É por estas e por outras que a minha gravura é reconhecida lá fora e praticamente desconhecida no país», lamenta Gil Teixeira Lopes, não por vaidade mas porque depende da reforma para subsistir, quando gostava era de viver da sua arte. De 1960 a 1995 exerceu funções de professor na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e de professor catedrático na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Dominou materiais e técnicas, dedicou-se aos alunos e nunca perdeu a capacidade de se emocionar com uma ópera, um passeio de elétrico ou um espaço amplo. «Sempre tendi para a grande dimensão», ri-se o artista. «Costumo dizer que sou pequenino e gosto de coisas muito grandes.» Quando o coração e os problemas de vista o forçaram a abrandar, mudou-se para um atelier próximo da sua casa em Belém (comprado a meias com a amiga pintora Matilde Marçal), mas redobrou a fúria de viver.
«O trabalho de um artista não é inspiração que vem lá de cima. É muita transpiração e muita vivência, muita capacidade de autocrítica para poder apreciar o que faz», salienta o autor. Pela parte que lhe toca, já aceitou que irá morrer sem conseguir um atelier suficientemente grande para acolher as centenas e centenas de obras que tem feito, grades cheias de telas, gravuras e bronzes, guardados em locais dispersos à espera que um dia ele os vá buscar. Também não acredita que o deixem fazer uma exposição na sala da sede da Gulbenkian, o seu espaço de sonho, cheio dos espíritos de todos os grandes artistas que passaram por Portugal. Ainda assim, não cruza os braços. «Eu sou assim, sobra-me vida.» Não há como a teimosia de um transmontano para lhe equilibrar os sobressaltos do coração.