O fado de três americanos

Os Fado Novato apaixonaram-se por fado no Missouri, no meio da América, sem nenhuma ligação com Portugal. Shay, Jordan e Beau formaram um grupo, gravaram um disco e vieram a Lisboa aprender mais. E querem fazer uma casa de fado em Kansas City.

Passa das duas da manhã de uma quarta-feira e a Bela, minúscula casa de fado em Alfama, ainda está animadíssima. Fumo, copos e conversas, interrompidas pelo apagar das luzes que aqui quer dizer «silêncio que se vai cantar o fado». Não é bem, mas aos primeiros acordes todos reconhecem Verdes Anos , de Carlos Paredes. Algumas hesitações anunciam um amador -algo a que nestas informais lides do fado se está habituado. Já o ditongo «ao», aberto, em vez do nasalado «ão», com que a fadista, uma morena de cabelos longos e olhos fechados, acaba o verso de Rua do Capelão provoca curiosidade. «Mas de onde é que eles são?», sussurra-se.

«Silêncio», grita, por detrás do balcão, Bela, a dona. Fora ela que, com igual autoridade, convidara o grupo a tomar o palco em sua casa. «Então vocês vinham cá e não cantavam?», disse aos três americanos sentados na mesa do fundo, que lhe tinham dito serem fadistas. E não é que eram mesmo? Shay, a voz, Beau, o guitarrista, e Jordan, o viola, agarraram nos instrumentos emprestados e venceram nervos, timidez e jet lag - tinham chegado no dia anterior de um voo de mais de 12 horas desde Kansas City, no Missouri. Deram à audiência versões, com pronúncia, de Fado da Defesa, Rosa Enjeitada e Rua do Capelão, mas com uma garra que lhes garantiu, logo ali, na primeira apresentação na pátria do fado, a categoria de «Ah fadistas!»

E palmas, muitas palmas, mais emocionadas de quem já sabia a história dos três músicos do Missouri, estado do meio da América profunda, que se apaixonaram por fado e lhe dedicaram os últimos dois anos: músicos de jazz e de blues aprenderam como se tocava e cantava fado, formaram um grupo, gravaram um disco, criaram um site e um blogue e fizeram um projeto (Lisbon Project), cuja missão é «promover o fado para o público que fala inglês». No âmbito desse projeto, para o qual conseguiram 17 mil dólares de financiamento [ ver caixa ], conseguiram vir um mês a Lisboa - este, de junho, porque sabiam ser o dos santos populares. Estão hospedados num apartamento acima do Rossio e o que pretendem fazer é, basicamente, viver Lisboa. E vir a ser do fado.

Postos de lado os purismos, ouvir fado por americanos é um afago ao ego para qualquer português. «Na Bela, as pessoas vieram ter connosco, agradeceram-nos, e disseram: "Vocês são péssimos, mas são fantásticos!"», conta a fadista, Shay Estes, 32 anos. «Aprendemos mais nesta noite do que em meses», diz o viola, Jordan Shipley. «Eu já estou a tocar diferente», concorda Beau Bledsoe, 41 anos, o guitarrista. A simplicidade com que acatou as críticas está também no nome que o grupo se deu: Fado Novato. Assim, em português. «Queremos passar a peritos», brinca Jordan, que arranha o português, tem um grupo de chorinho e bossa nova e é essa antiga paixão por música brasileira que está na origem desta história. Jordan conheceu o fado assim, através da lusofonia. Beau chegou à guitarra através de Carlos Paredes, «enorme para todos os guitarristas internacionais». E Shay... Bem, Shay entrou numa discussão sobre qual seria a música mais triste do mundo com os dois amigos e ouviu pela primeira vez falar de fado.

Por coincidência, o grupo de Jordan, Mistura Fina, foi contratado para tocar no casamento de um português - dos únicos três que vivem em Kansas City (números confirmados pelo consulado em Washington). Pediram-lhes uns fados. Shay disse: «Sim.» Expedita, à americana. Tinha três meses para se preparar, pensou. Ouviu, primeiro, Rosa Branca por Mariza. Depois, Gente da Minha Terra , Os Búzios e Uma Casa Portuguesa . «E foi uma obsessão.» Tem um namorado brasileiro - Giuliano Minguci, produtor de audiovisuais que acompanha a viagem filmando e gravando tudo - e a sogra traduziu-lhe as letras. «Mas não é preciso saber português para saber de que é que estas músicas estão a falar. Sente-se. É por isso que o fado toca tanta gente.»

Mas para tocar fado era preciso... uma guitarra portuguesa. Algo raro até na cidade musical de Kansas City - onde o jazz se transmutou em be bop , Count Basie tocou pela primeira vez e onde nasceu Charlie Parker . O jazz veio de Nova Orleães, subiu o rio Mississipi até Chicago e no caminho parou nesta cidade que é considerada a sua segunda casa. Beau conhecia um lutier virtuoso - e suficientemente louco para aceder ao seu pedido de fazer uma guitarra portuguesa sem sequer ter tido uma nas mãos. Dave Bucher, cabelo comprido, barriga de cerveja, T-shirt e jeans rotos, estava mais habituado a fazer guitarras para grupos de rock e até de heavy metal . Mas Bucher aceitou o desafio. «Aprendi fazendo», disse depois. E da cabana de madeira no quintal de sua casa no Missouri saiu uma bela guitarra portuguesa, em finais de 2012. Beau teve então de aprender a fazer as suas cordas e até as unhas falsas - que tentou com frascos de medicamentos e capas de CD até conseguir uma boa versão de tartaruga. «Algo muito esotérico»... mesmo para um músico profissional.

E lá foram eles, com o atrevimento da ingenuidade. Só perceberam onde se tinham metido na festa de casamento - o primeiro contacto com algo português de carne e osso. «Cada português que lá estava tinha uma opinião sobre fado», conta Jordan. Shay ficou surpreendida com a carga emocional que o fado transporta para quem ouve. «Foi a primeira vez que eu tive noção de que havia também um sentimento negativo em relação ao fado por parte de uma geração de portugueses. É por causa das associações com o regime anterior, não é? Isso nunca me tinha ocorrido... No Brasil, quando eles estavam sob a ditadura militar, a música foi sempre contrapoder.»

Seguiram-se pesquisas na internet, bastante frustrantes. «Há muito poucas referências, ainda menos em inglês», diz Beau. Só há um livro de guitarra portuguesa - de Eurico Cebolo, que ensina a tocar à maneira de Coimbra, umas oitavas acima de Lisboa. «Quando achava que já sabia, percebi isso e tive de voltar ao princípio», conta o guitarrista. Buscas feitas por um bibliotecário amigo, da Escola de Música da Universidade do Missouri, deram origem à descoberta de preciosidades: dois livros sobre fado em inglês, dos americanos Paul Vernon e Donald Cohen. E um pouco da história de Portugal. «Já estive várias vezes no Brasil e sempre que pesquisava mais sobre a história brasileira ia bater neste muro que era Portugal. Fui mais fundo e fiquei fascinada com a ida da corte para o Brasil... Dava uma série de televisão, facilmente», conta Shay.

O YouTube e os milhares de vídeos de fadistas que já lá estão foram o manual de instruções que lhes faltava. Beau percebeu que devia usar a mão direita de uma maneira diferente vendo os vídeos de Carlos Paredes. Amália, Mariza, Ana Moura, Carminho, Cristina Branco, Ricardo Ribeiro... entre muitos outros, passaram a ser mitos para estes seus fãs a 7100 quilómetros de distância. «Há imensos vídeos amadores de casas de fado», diz Shay. Os seus favoritos são Kátia Guerreiro e Camané - «a minha alma gémea na música». Espera conhecê-lo em Lisboa e ficou deliciada quando soube que o sócio da Bela, Helder Moutinho, era irmão dele. «Nem queria acreditar»... Quando chegaram a Lisboa foram logo ao Museu do Fado e viram os guitarristas José Manuel Neto e Pedro Jóia a sair de um ensaio. «Ficámos tão nervosos... Para nós estas pessoas são rock stars », diz Beau. O encontro está documentado na página do Facebook que alimenta todos os dias desta viagem.

Por via da tecnologia, os Fado Novato chegaram primeiro às composições mais modernas do que às antigas. Um encontro com o maestro português Alberto Roque, que estava por acaso na Universidade do Missouri, em Kansas City, a dar aulas, devolveu-os à tradição. O ex-maestro da Orquestra Metropolitana de Lisboa disse-lhes que não sabia nada de fado. «Mas mal começámos a tocar mandou-nos parar e corrigiu uma série de coisas», recorda Shay. E depois vieram os concertos, vários, num bar chamado Grünauer, onde projetavam nas paredes fotos de fadistas, de Lisboa e traduções de letras para que os americanos, que esgotavam a sala, percebessem do que falavam. Gravaram o disco Começo , na pequena editora de Beau. Ganharam uma nova guitarra, uma verdadeira guitarra portuguesa, que um espectador tinha lá em casa e lhes ofereceu. E causaram uma onda de simpatia que desaguou no financiamento particular do projeto de vir a Lisboa [ ver caixa ].

Estão cá desde o início do mês. E o fado tem-lhes enchido os dias. Fizeram um pequeno espetáculo sexta-feira, na Mouraria, na Associação Sou, e estarão no Festival de Fado, em Madrid, na semana que vem. Com a música - concertos, pesquisas, serões diários em casas de fado, onde cantam e tocam com os instrumentos de outros músicos com quem trocam experiências noites dentro. E com Lisboa, que foram reconhecendo do que ouviam cantar. «Logo no primeiro dia demos com a Rua do Capelão e a casa da Severa, por acaso, foi um momento memorável. As paredes esbranquiçadas, os azulejos, as calçadas, o aparecimento instantâneo do pão e do vinho mal nos sentámos para comer... Tudo isto lembra-nos tanto dos fados que tocamos!», diz Shay.

Depois deste encontro com o fado, Shay, Beau e Jordan nunca mais serão os mesmos. «Fado quer dizer destino, já sei. Mas é normal usar-se essa palavra no dia a dia?», pergunta Shay. É normal é, até a voz dela já mudou. O nasalado a que o português a obrigou dava-lhe dores de cabeça, no início. Agora, alterou-lhe o tom. «Faço exatamente o contrário no jazz e nos blues .» Basta ouvi-la agora cantar para perceber que não foi só a voz que se alterou. O fado tomou conta dela. Mãos abertas, olhos fechados, boca expressiva... Não fosse a pronúncia - que este mês de Lisboa vai certamente melhorar - e ninguém diria que estava ali uma americana. «Hoje, com o mundo todo ligado, com pessoas no Japão a saberem mais sobre música americana do que os próprios americanos, o que é ser autêntico?», pergunta ela. Pois. Shay, Beau e Jordan, apanhados por uma força universal misteriosa, o fado.

FADO FINANCIADO

A visita a Portugal destes americanos foi financiada através de doações pela internet. O projeto foi desenvolvido num curso de empreendedorismo para artistas em que apresentaram a ideia da viagem. Assim abriram uma página na internet, onde era possível fazer donativos - uma espécie daquilo a que agora se chama crowdfunding . Quem desse 25 dólares teria direito a um CD, quem desse 500 teria direito a ver o grupo à borla nos espetáculos, 1000 dólares garantiam um concerto privado, em casa, com 2000 acrescentava-se uma refeição portuguesa e 3000 davam direito à criação de um novo fado, dedicado ao benfeitor. Tudo com desconto no IRS. Assim conseguiram 17 mil dólares, através de privados - a pequena comunidade de amantes de fado a que eles próprios deram origem, em Kansas City - e também duas bolsasde maior valor. Agora têm de documentar toda a viagem e dar conta das descobertas, em inglês. O passo seguinte é arranjar capital para abrir uma casa de fado na cidade. «Kansas City está precisar de uma casa de fado, certo? É nossa intenção que o fado ganhe raízes na nossa cidade e floresça por si próprio e para além das nossas performances. »

O que sabíamos e o que sabemos de Lisboa

Por Shay Estes

O fado fala muito da saudade do povo português, este é um conceito difícil para um americano perceber. Tendo passado muito tempo à volta da poesia do fado - talvez mais do que outros precisem, já que o português não é a nossa primeira língua -, acabámos por mergulhar no subtexto das letras. E desenhou-se um quadro mais largo, não só da paisagem de lisboa, mas do sentimento da cidade. Sabíamos que teria de haver ruas e becos estreitos com calçada, e sabíamos que o ar devia ser como numa cidade com um rio grande e perto do mar. Esperávamos que o castelo estivesse olhando lá de cima para uma parte da cidade, que os clubes de fado fossem pequenos e confortáveis, e que o vinho, o pão, as azeitonas, o porco e as sardinhas fossem abundantes. Acho até que esperávamos algumas coisas das próprias pessoas, um certo olhar, o som da língua, e - da troca de comunicações antes de termos partido - um certo nível de simpatia.

O que nos surpreendeu (depois de cá estarmos) não foi a presença de todas estas coisas, acho eu, mas a intensidade com que cada uma delas, de facto, existe. Penso que não estávamos preparados para o grau de magia que Lisboa tem na realidade. Ficámos siderados com a enorme generosidade dos lisboetas. Toda a gente que encontrámos não tem sido só simpática, mas aberta, honesta e disponível para nos dar o seu tempo. Perdoam as nossas diferenças de linguagem e estão sempre disponíveis para ajudar: em vez de nos darem direções levam-nos aos sítios, em vez de meras sugestões onde havemos de ir convidam-nos para ir com eles.

Em todo o mundo para onde viajo encontro pessoas que gostam dos seus países e culturas, mas nada como em Lisboa. Aqui as pessoas não são orgulhosas de uma forma vaidosa, mas no sentido de que adoram tanto a sua cidade que querem partilhar as suas muitas qualidades. Não é vangloriar-se - se bem que podiam e tinham todo o direito de o fazer numa cidade tão rica em história e cultura. É amor puro e simples, e é transmissível. É uma energia palpável e cheia de vontade de levar os outros a adorarem tanto a sua cidade como eles, e é tão natural e não estudado como é cativante.

A outra surpresa tem sido a extensão da beleza da cidade - à qual as fotografias não podem fazer justiça. A luz em Lisboa é notável, a forma como acentua as curvas e as linhas da arquitetura tem de ser experimentada para ser entendida. As colinas teatrais e as vistas que criam, o trilho que o rio corta através dos edifícios, as muitas cores dos azulejos e os vários estilos e fachadas são simplesmente mais bonitos do que poderíamos ter imaginado. Os cheiros húmidos do rio, ou de flores, ou de alho, ou de sardinhas grelhadas nas ruas nunca poderão ser capturados. Música a ser tocada nas ruas ou a escapar de uma janela aberta misturada com as conversas que se ouvem de uma casa para outra criam uma banda sonora que não tem paralelo. Lisboa não foi tudo o que esperávamos, as nossas expetativas eram uma versão muito modesta de como esta cidade é verdadeiramente fantástica.

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