O chinês clandestino

Há meia dúzia de anos, a família Liu transformou a sua casa lisboeta em restaurante. Servem comida tradicional chinesa na sala, cerveja Tsingtao no quarto e chá no corredor. Não há licença de funcionamento, mas há sempre fila à porta. Bem vistas as coisas, quem não quer conhecer um segredo?

O prédio tem a pintura descascada e a porta sempre aberta. Há uma bicicleta estacionada no átrio e as paredes interiores estão cobertas de graffiti. A esta ruela da Mouraria, em Lisboa, ninguém vai parar por acaso, regra geral chega-se em grupos de três, quatro, cinco. E isso é porque alguém conhece o esconderijo e leva lá os amigos. A casa dos Liu fica num segundo andar. Só que, numa noite de enchente, até um aventureiro solitário pode ter de esperar uma hora por lugar sentado. O mais provável, aliás, é que acabe numa mesa grande, partilhada com desconhecidos. Mas a clientela continua a assomar à porta e vai disfarçando a impaciência com cerveja. Os degraus de mármore da escadaria - mais as duas poltronas caquéticas que só não se desfazem por estarem encostadas à parede do último piso - estão constantemente ocupados.

O que é que este restaurante tem de tão especial? Não há toalhas na mesa e a decoração é espartana. A cozinha está tapada por um pano imundo e, espreitando lá para dentro, adivinha-se uma visão caótica que os olhos preferem não pormenorizar. Há loiça suja no corredor, uma máquina de cozer arroz com bagos espalhados à volta, às vezes a sola dos sapatos parece que pisou cola. Mas a senhora Liu tem uma explicação: este é o único sítio em Lisboa onde se come comida chinesa a sério. «A maioria dos restaurantes adaptou a comida ao paladar ocidental», tenta ajudar uma universitária que anda a aprender mandarim, «mas aqui come-se comida caseira, como se estivéssemos num mercado de Pequim ou numa aldeia isolada da Manchúria».

Em boa verdade, os Liu vêm da província de Guanxi, no Sul da China, onde a cozinha é abundante em peixe, marisco, tomate, pimentos e, claro, piripiri. Isso nota-se na lista que apresentam. Há caranguejo e camarão, com ou sem casca. Há lulas de todas as maneiras e feitios. Há comida picante em barda, seja na prancha, na caçarola ou até na sopa. Agora, o que é realmente obrigatório, o que faz de uma viagem ao segundo andar da Mouraria uma experiência única, são pratos como a pá de jardim, a carne com sabor a peixe ou línguas de pato com tomate e pimentos. E se o primeiro é apenas bambu cozinhado em vapor de gengibre, os outros dois não enganam: são exatamente aquilo que a ementa anuncia. Tiras de porco fritas, mergulhadas em molho de caldeirada. E bicos de ave panados, de onde se suga um tecido esponjoso de sabor quase neutro. Os chineses costumam mastigar a cartilagem da língua de pato mas, para o gosto europeu, isso já é capaz de ser demasiado.

Na principal sala de refeições, a sala da casa, cabem 26 comensais, que bem apertados chegam aos cinquenta. Há quatro mesas de quatro lugares, mas não é raro receberem o dobro das pessoas cada uma. Depois há uma grande mesa que costuma acolher vários grupos que não se conhecem. Como a clientela é jovem, o ambiente é descontraído e é bem possível ver alguém experimentar comida do prato de um absoluto desconhecido. As doses são grandes e baratas. Um prato de gyozas, por exemplo, tem uns vinte pastéis de carne cozinhados ao vapor e não custa mais de quatro euros. Quanto mais pessoas se juntarem, mais variedade se pode pedir e mais barata fica a refeição. Os preços de um jantar vão de cinco a dez euros.

Na casa dos Liu também há dois quartos, onde grupos de oito a dez pessoas podem fazer uma refeição em privado. É frequente, sobretudo nos dias de menor afluência, estarem ocupados com famílias chinesas ou grupos de homens a jogar majong. A decoração, tal como na sala principal, resume-se ao quadro de uma montanha, um poster de uma cascata ou um leque pintado com flores de lótus. Há esteiras enroladas e encostadas a um canto de cada divisão. Não é difícil imaginar que, à noite, elas sejam estendidas no chão e cobertas com colchões. Os privados são, muito provavelmente, quartos de dormir.

Na casa de banho de serviço há produtos de higiene pessoal. Champô, creme de banho, lâminas de barbear. E à saída, olhando para a direita, dá-se de caras com uma escada para o sótão, onde os Liu vivem. De vez em quando, a matriarca abeira-se dos degraus e chama por uma das crianças da casa, que descem a correr para vir dar uma mão a servir os pratos. São os miúdos que melhor dominam a língua portuguesa e esclarecem dúvidas aos clientes. Mas, a partir das nove da noite, a infância vai para a cama e a senhora Liu tem de se desenvencilhar sozinha. Como não percebe patavina de português, resolve as dúvidas com linguagem gestual. Todas as noites alguém acaba por imitar um porco, uma vaca ou uma galinha. Não são todos os restaurantes que, além da refeição, oferecem gratuitamente um espetáculo de mímica.

Quando o restaurante abriu portas, há seis anos, foram sobretudo estudantes e alunos de Erasmus a rumarem ao esconderijo da Mouraria. Mas o restaurante tornou-se segredo demasiado precioso para ficar guardado muito tempo. Aos sussurros, a notícia espalhou-se pela cidade, conseguindo ao mesmo tempo esconder-se da ASAE e preservar o estatuto confidencial. «Uma amiga falou-me disto e fiquei curiosa, por ser exótico e clandestino», conta Ana Teresa Barbosa, 39 anos, gestora numa empresa de informática. «Depois fomos lá jantar uma vez e eu comecei a trazer mais gente. É um daqueles sítios que só se conhecem assim, passando a informação de boca em boca.» Por estes dias, a casa está cheia de músicos, atores, artistas plásticos, mas também advogados, arquitetos ou contabilistas. Há discussões inflamadas sobre a crise e a troika, o Benfica e a multiculturalidade. Há uma tertúlia à roda da mesa dos Liu, toda a comer arroz chao chao com pauzinhos.

Haverá mais restaurantes chineses ilegais na cidade, mas é definitivamente este que está na berra. Quem lá costuma ir não deixa de sentir-se privilegiado, por conhecer um mistério que a maioria dos lisboetas ignora. O trabalho dos jornalistas é muitas vezes o de desvendar segredos, mas não desta vez. Este clandestino vai continuar a ser clandestino, até porque revelar a sua localização é meio caminho andado para ele deixar de existir. Se quiser mesmo ir a casa dos Liu, o melhor é perguntar por aí.

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