Julio Iglesias
«Estou viciado no palco. No palco não tenho idade.»
A mão direita sobre o peito, a esquerda aberta, no ar. Agarrando, em dança, um corpo imaginário. Julio Iglesias não consegue evitar o gesto quando canta. Foi a sua imagem nos palcos que calcorreou, pelo mundo, nos 45 anos de carreira. E é-o aqui, no pequeno estúdio da sua casa de Marbella, enquanto trauteia por cima da nova versão de Abrazame que toca nas colunas perfeitas. Neste estúdio, o cantor não tem mais público que duas das bailarinas que o acompanham, a assistente pessoal e uma jornalista portuguesa que acabou de convidar para conhecer o local onde agora passa os dias, dedicado à tarefa de regravar digitalmente todas as músicas que lhe construíram o sucesso.
Quase aos 70 anos - faz a 23 de setembro - um dos cantores mais populares do mundo, o latino que mais discos vendeu em mais países, cerca de trezentos milhões, só agora se sente a trabalhar para a posteridade. «Quando oiço as canções em gravações de há quarenta anos... ah, tenho vergonha. Nada que ver com isto», diz, aumentando o som numa das centenas de alavancas da mesa de mistura. O equipamento ocupa a parede do fundo de uma sala vulgar - mas na cave da sua casa, com o teto baixo e boa acústica. «Tenho uma em cada casa... É extraordinário porque só com isto posso fazer tudo!» Parece uma criança a mexer nos botões, equilibrando a voz, os instrumentos... É visível o prazer. Diz que é isso que o faz continuar a cantar. Em palco - está agora a fazer mais uma digressão mundial que passará em Portugal no dia 16 de julho. E em estúdio: «Isto agora é a minha vida. É o que faço todos os dias. Aqui ou esteja onde estiver.»
Estas regravações digitais deram origem ao álbum duplo N.º 1, editado há dois anos, e, em breve, darão mais um disco em português. O trabalho que Julio Iglesias anda, por estes dias, a desenhar - folhas A4 com listas das suas canções em português estão espalhadas pelo estúdio - levou ao convite a uma jornalista lusófona para entrar naquele estúdio praticamente secreto. «O que achas da pronúncia?», pergunta, tocando as suas novas Abraça-me e Somos. A pronúncia é brasileira, como é a maior parte do seu público em português.
Esta entrevista exclusiva para Portugal foi feita no início da semana passada em Marbella, o quartel-general de Julio Iglesias quando está na Europa, um chalet na montanha, em Ojen, por cima da cidade do Sul de Espanha, a que se chega por uma estrada sinuosa. As suas outras moradas são em Punta Cana e Miami, onde está a mulher, Miranda, e os cinco filhos pequenos, que andam agora num colégio depois de terem estudado em casa com precetoras privadas. «Chegam amanhã», anuncia o cantor.
Tinha apenas uma condição: não haver fotografias. O cantor sempre defendeu a sua fama de romântico, deixando-se fotografar apenas de um lado; agora, com a idade, está ainda mais prudente. E, no entanto, isso não se aplica às palavras. Ele gosta de falar. A conversa corre, solta, numa simplicidade que tem tanto de profissionalismo como de charme natural. Em Julio Iglesias, ambos sempre andaram a par. Está de calças e blusa, pretas e informais, sentado no sofá fofo do seu «rincón favorito», como diriam as revistas da especialidade (e que raras vezes entraram nesta casa). O Mediterrâneo abre-se nas janelas da sala de estilo rústico no meio da floresta de sobreiros que ardeu quase toda no ano passado, no fogo que afetou parte da propriedade de XXX hectares. A entrevista não termina nos marcados trinta minutos, e continuará pelo jantar, um encontro entre o cantor e os seus homens de confiança no início da parte europeia desta tournée - os três diretores e o engenheiro de som, a produtora de estrada, a sua assessora principal e o corpo de bailarinas que anima os espetáculos.
Neste jantar, será Julio Iglesias o animador principal, escolhendo o vinho de uma lista que lhe é trazida da sua bodega - é uma paixão com vinte anos, também tem uma adega em cada casa -, fazendo perguntas simpáticas, sempre galanteando as mulheres à sua volta, e propondo brindes à equipa de diferentes origens - o diretor de sala é americano, a mulher é brasileira - e elogios à culinária do diretor de som de palco cingalês, que cozinhou a refeição.
A aura e o magnetismo não são mitos. Podem até sentir-se à mesa de um jantar. E, no caso deste homem, elegante aos 70 anos, parecem tanto causa como consequência da sua vida «maravilhosa», como não se cansa de dizer. De uma vida artística que começou por acaso, quando um acidente estúpido num Mini Morris com maus travões tirou a locomoção ao jovem guarda-redes de 19 anos, em ascensão no Real Madrid. Em dois anos, Iglesias voltou a andar e fizeram parte da sua recuperação os exercícios para as mãos com uma guitarra. Descobriu assim a sua vocação, escrevendo as primeiras músicas na cama do hospital. O resto da história é a que se sabe. O que o trouxe ao que é hoje, esgotando salas em busca das suas canções românticas e reconfortantes. Isso, garante, é o que o faz continuar. E a sua energia inata, que não consegue ocultar.
.....
_Gosto muito de Portugal. A minha filha mais velha nasceu em Portugal. O melhor amigo do meu pai era ginecologista em Lisboa. O meu pai era galego. E eu e a minha mulher alugamos uma casa em Cascais por dois ou três meses. Foi o ginecologista que a minha mulher escolheu [no dedo tem um penso que reajusta].
O que aconteceu?
_Caí ali, subi a uma árvore, estava a arranjá-la. [Em português] Estou velho já, estou velho, meu amor, estou velho... Então você veio aqui saber de mim o quê? Eu tenho quase 70 anos, uma vida feita, algumas coisas por fazer... Que queres saber de mim que a tua mãe não contou, que o pai não contou.
Mais o pai...
_O teu pai gostava de mim? Bom gosto tem o teu pai.
Sim, ouvíamos os seus discos no carro, quando eu era pequena, nas idas para o Algarve nas férias...
_Conheço essa estrada para o Algarve. Conheço todo o Portugal, de olhos fechados vou da Galiza ao Algarve. Porto, Coimbra, Setúbal, Faro. E o Brasil. Não falo muito português, entendo tudo, falo um pouquinho.
Pode falar espanhol. Quase cinquenta anos a cantar, a dar entrevistas e a fazer concertos e não está cansado?
_Não estou cansado. Primeiro porque sou um profissional. Depois porque o que faço é um privilégio. Ter contacto com o público da Finlândia à China. Poder ser português para os portugueses, daqui a dez dias ser chinês para os chineses, anteontem norueguês para os noruegueses. Tenho uma vida privilegiada. O meu dever natural é agradecer às pessoas, e a maneira de o fazer é não esconder-me. Não vou a festas, é verdade, não vou a prémios - não vou aos Grammys nem aos Óscares faz já 25 anos. Há 25 anos que não vou a nenhum lugar desse tipo. Mas as entrevistas são algo natural para mim. Primeiro porque gosto muito de falar. Depois porque conto muitas mentiras....
Isso dá-lhe prazer?
_Isso dá-me o prazer de sentir-me jovem. Porque as pessoas que têm 70 anos se não falam mentiras não estão felizes. Mentirinhas. Porque o futuro é muito incerto, então se não dizes umas mentiras, umas coisas impossíveis que são quase mentiras, pois...
Mentiras ou sonhos?
_Impossíveis. Tenho a idade certa para não pensar a longo prazo. E a mim sempre me agradou muito o longo prazo. Eu escapei ao meu latinismo, ao meu meridionalismo, quando tinha 25 anos já pensava a longo prazo. E, no universo dos mares, e percorri-os todos. E agora o que faço mais que nada - por isso dou entrevistas - é comprar tempo. E como é praticamente impossível comprá-lo, o que faço é ter sempre pressa. Não digo que não a muitas coisas que podia. Agora penso a curto prazo. Não posso dizer de repente o que vou fazer dentro de cinco anos.
Aquela guitarra no hospital, que lhe deram depois de ter ficado paralisado, foi mesmo o início de tudo? Nunca tinha dado pelo dom da sua voz? Nem no duche?
_Eu não sou um cantor natural. A minha vocação é tardia. Eu não cantava. Era um bom desportista. Cantar, nada. Nem tinha ideia, nem sequer me interessava a música... Não era uma pessoa que seguia as músicas, que comprava discos. Não. Para mim a música era a do som do estádio, o do Real Madrid, onde jogava [como guarda-redes], e o da universidade. A guitarra, sim, mudou-me a vida. Porque eu não podia mexer as mãos, não podia mover os dedos, tinha uma paralisia desde a sétima dorsal, e então deram-me uma guitarra, como uma espécie de brincadeira, toma lá! E aí deu-se esta maluquice. Escrevi canções, La Vida Sigue Igual, Abrazame.... Depois dei-as a uma companhia de discos e eles perguntaram porque não as cantava eu. Disse: «Eu não sei cantar...» E não sabia. Depois a vida deu-me muitas oportunidades, deu-me muito tempo. Se fosse hoje a um concurso de voz, nem sequer me ouviam. Tinham-me mandado embora à primeira.
Porque diz isso?
_O Bob Dylan também seria eliminado à primeira. E talvez o Presley. Porque cantar é como preencher umas palavras cruzadas que, de repente, não se preenchem. É interpretar, ser artista, chegar ao universo dos ouvidos das pessoas. É preciso preencher um milhão de palavras. Esse volume de coisas adquire-se com muita disciplina, muito tempo. Ou, quando és génio, que eu não sou, é tudo natural. Eu não tinha nada natural.
Mas o seu êxito foi fenomenal.
_Mas descolou pouco a pouco. Primeiro em Espanha, um pouco em Portugal, depois Itália, Alemanha, mas o êxito universal dá-se 25 anos depois.
Tempo para aprender...
_...tudo. Tornei-me profissional.
A cantar?
_Não a cantar. A perceber o que é cantar. Cantar é uma coisa reflexa. Para mim era natural... Larara Manuela... [trauteia]. Cantar não é muito significativo, não tens de ser o primeiro da escola para ser diretor da companhia. Não tens de ser o que melhor cantas para ser o que mais interessas ao público. Eu cantei com a Amália Rodrigues muitíssimas vezes... Quantas vezes na minha vida... E quando sentia a voz profunda desta senhora maravilhosa - falo de Amália contigo porque é uma mulher portuguesa, para mim a mais importante cantora ligada a Portugal na história -, não somente era uma cantora, era uma «emocionadora», apaixonada. A voz saía-lhe desde os pés. Isso é o que é um artista.
Vencer a paralisia, aos 19 anos, foi a primeira vitória da sua vida?
_A primeira não, foi a grande vitória. Sim, claro. Primeiro porque eu não o sabia o que significava ficar sem vida. Eu era um rapaz jovem, forte, saudável, desportista e, de repente, numa hora, fiquei morto. Mas morto total. De pesar 80 quilos a pesar 45 em três semanas. Um esqueleto, com as mãos assim... caídas. Foi uma vitória da disciplina. E antes disso da ciência. Quer dizer, primeiro salvaram-me a vida. E depois eu salvei-me.
Depois disso sentiu-se invencível?
_Não é uma coisa que se consiga num dia e que se diga, oi, já ganhei. Hoje estou consciente do que se passou e do que fiz em todo esse caminho, mas não se sente num momento. Não. O que mais me recordo é que dois anos e meio, três anos depois deixei de andar de muletas. Isso sim, lembro-me, da liberdade de não ter de me apoiar nas muletas. Mas foi uma vitória de pouco a pouco, de dia a dia. Todos os dias tentava fazer mais sacrifícios, nadar mais... Acho que tinha a disciplina escondida em mim e descobri-a.
Era um menino mimado?
_Não... Era mimado pelo desporto porque era um bom desportista, jogava numa equipa grande. Era um miúdo rápido, despachado, mas não era uma maravilha. Era um tipo normal, simpático e que gostava de desporto, de miúdas, da vida. Nunca me meti em drogas, nem álcool, nada, em absoluto. A primeira vez que provei álcool tinha 30 anos. Vinho, vinho, adoro vinho....
Tinha uma família de classe média-alta, o seu pai era médico ginecologista.
_O meu pai era médico. Alto, forte, inteligente. A minha mãe era uma mãe típica, espanhola...
Ibérica.
_Exatamente. Essas mães abnegadas, sofridas. E eu nasci no ano de 1943, em plena Guerra Mundial. Não havia nada em Espanha, um país que tinha perdido a sua consistência vital com a guerra civil não era um país atrativo nos primeiros dez anos da minha vida. Lembro-me bem de que tudo era racionado, que tinha de ir para as filas com a minha mãe. Mas isto não são queixas. Eu aprendi mais no não abundante do que no abundante. E se não tivesse aprendido não estaria a fazer esta entrevista. Teria tido uma vida normal.
Qual foi o momento em que soube que esta vida de cantar seria a sua vida?
_No dia em que as pessoas começaram a reconhecer-me na rua. No dia em que senti os olhos das pessoas a olharem para mim de uma maneira diferente.
Era estranho?
_Não, uma maravilha... Não o desejei mas foi uma coisa que aconteceu.
Quem queria ser futebolista...
_...já tinha isso no instinto, sim... Sim, mas no futebol é muito mais partilhado. O êxito do artista é muito pessoal, muito individual. Diferente do futebol. Porque é uma carreira em que o esforço não é tão grande e a recompensa é imensa. Acho que se perguntarem a um político o que gostava de ser, diria sempre cantor. Nem sequer ator, um ator tem de trabalhar. Um cantor é uma maravilha, vais para o palco e cantas. E cantas para as pessoas. De cada vez que te encontras com trinta ou quarenta mil pessoas num concerto é uma energia que não se pode comparar com nenhuma energia. Eu gostava que as pessoas soubessem o que nos dão, a nós, artistas, para que nos exigissem que lhes déssemos a mesma energia. Acho que as pessoas não sabem que nós, os artistas, continuamos vivos por causa delas. Quando um artista passou duas, três gerações, se não tem o seu público, morre. Morre por dentro.
Aconteceu com muitos que deixaram de cantar. Não consigo, que continua a dar concertos todos os meses num lugar qualquer do mundo...
_Não sei, não tenho essa coisa na minha vida. Terei sempre um pequeno cantinho em Portugal onde vou continuar a cantar. Um bar. Não tenho problema. Sempre vai haver um público para mim.
E se a voz lhe falta?
_Se a voz me faltar terei a cabeça para continuar a viver. O problema é quando as pessoas não gostam de ti. Se a voz me faltar, o público vai continuar entendendo coisas.
Como aconteceu com o Sinatra...
_Cantei com ele muitas vezes porque tínhamos o mesmo agente. Com 78, 79 anos cantava bonito. Perdeu um pouco a visão, estava também um bocadinho senil, nos últimos dois anos, tinha de ler as letras em palco. Lembro-me quando cantei com ele, ele entrou no palco e pediu para trocar de lugar comigo porque queria estar perto da mulher, já se sentia um pouco fraco. Mas para mim foi o maior campeão que conheci.
Quem são os ídolos do ídolo?
_Não... Ídolo não sou... Gosto dos que cantam depois de mortos. Os que te continuam cantando. Por exemplo, estou no elevador de um hotel em Banguecoque e oiço Unforgettable... [Trauteia] é Nat King Cole a cantar. E arrepiam-se-me os pelos dos braços. Porque é emocionante. Gosto dos cantores de estilo. Se ouves Amália, e eu oiço muitas vezes, é inimitável. Lembro-me dela de quando cantámos juntos e fiquei com o sonzinho da sua voz no ouvido para sempre. Quando cantei com Sinatra, para sempre. Com Stevie Wonder, para sempre. Com Sting, para sempre. Com Diana Ross, para sempre. Com Willie Nelson, Placido, Bocelli... E quando cantas com estes artistas, estas vozes de estilo profundo, fica-te no cérebro. Totalmente. Eu recordo todos os duetos... e fiz uns cem na minha vida. E recordo todos!
Como foi cantar com a Amália?
_Tenho uma história preciosa com Amália. Em Biarritz, no Casino. Estava ela sentada na primeira fila, e eu estava a cantar La Paloma e oiço uma voz que está a cantar comigo. E sei imediatamente que é Amália. E naturalmente ela estava a cantar. E estávamos a cantar os dois, ela estava a cantar comigo... E era uma coisa ... Não me esqueço de um só segundo dessas coisas. Por isso quando me perguntas de que artistas gosto, digo: os que têm estas vozes únicas, que recordas toda a vida. E que não têm tempo, são intemporais. É uma lástima que as gravações não pudessem ser como são estas modernas. Por isso eu fiz um disco... Chama-se N.º 1, em que voltei a cantar todas as minhas canções. Quando dou uma entrevista para a rádio e põem essas canções em fundo, eu digo: «Que maravilha.» Porque agora soa bem. Quando punham as gravações antigas, de há quarenta anos, sentia uma vergonha...
Mas que vergonha? Isso é como o escritor que diz que o último livro é o melhor?
_Não, não, não, não, não. O mundo digital abriu-nos a uns sons maravilhosos. A voz gravada num microfone mau não sai como é. Quando oiço La Vida Sigue Igual, ou Abrazame, ou Hey ou Me Olvidé de Vivir, de há quarenta anos... Ou quando oiço Carlos Gardel, o mais belo cantor da história... todo roufenho...
Como sabia que uma canção sua ia ter sucesso?
_Não sabia. Nunca sabes. Não. Na realidade se queres que te diga a verdade, o sucesso o artista vê-o no reflexo do público. Imagino que o marchand diria a Picasso sobre a época Rosa, faz-me o favor de pintar assim porque as pessoas estão a comprar estes quadros. E ele diria: não. O pintor, o escritor, o escultor, sabem que gostam do que estão a fazer. Não sabem se as pessoas vão gostar. Pensam que sim, mas não sabem. Não há ninguém que possa dizer que fez uma canção que vai ter sucesso. Porque o autor tem de gostar de tudo o que escreve. Não se pode mostrar se não gostas do que escreveste. Eu quando escrevia canções às vezes o que eu gostava mais não era o que tinha mais êxito.
Por exemplo?
_Hey.
Não viu logo que seria um sucesso?
_Fernando Pessoa, de quem gosto muito, dizia que a sua loucura podia ser por vezes genial. Considerava a dele assim. Eu acho que nós, os escritores, temos idade. E há um momento em que já não estamos loucos. E que nos tornamos prudentes. E quando nos tornamos prudentes, temos uma vida mais organizada, temos mais responsabilidades...
Já não choramos por amor...
_Nesses momentos é que escrevemos pior. Para escrever bem tem de se ser muito, muito, muito livre. E eu não sou livre, livre, livre, livre há 25 anos.
A fama tirou-lhe a liberdade?
_Não, não. A fama é uma maravilha. A fama não tira nada.
Deixa de poder andar na rua...
_Oh, que maravilha não te deixarem andar na rua. Imagina que me deixavam andar na rua? Seria um pobre desgraçado, perguntaria: «Porque é que ninguém me quer?» Nem uma só personalidade pública quer perder a sua popularidade. Jamais. Por um dia pode ser. Porque tem uma namorada, e é casado, e quer sair com ela. Mas nunca mais. Não há coisa mais atrativa que o êxito com o público? Não há maior casamento que o do artista com a sua gente.
A fama vicia?
_Não é um vício mas é uma adição.
Qual é a diferença?
_O vício é negativo e a adição não. Eu nunca tive nenhum vício mas sou adicto do palco. Porque é o único lugar onde me curo. O palco é para mim uma necessidade. Não ando bem, já não tenho tantas forças como antes, e o palco dá-me forças. Quando estou a cantar, o meu sangue começa a girar no meu corpo de uma maneira diferente. Quando subo ao palco a adrenalina sobe. E por isso controlo-a porque senão dá-me um ataque de coração. No palco, normalmente, não tenho idade. E fora do palco, sim, tenho-a,
Essa é uma questão que o preocupa muito? Está sempre a falar dela, da idade...
_Porque me perguntam....
Eu não perguntei.
_[Risos] Vou fazer 70 anos... Dizem-me «Como se sente aos 70 anos?» Pois sinto-me «de puta madre»! [Risos] Não me dói nada! Mentira!!! Com 70 anos dói-te o cotovelo, cais, as gripes duram mais vinte dias, vais mais ao médico, fazes mais análises de sangue. Se eu aos 70 anos não tivesse estas coisas seria fantástico. Eu tenho os 70 anos que tem toda a gente, mas o que acontece é que tenho uma disciplina férrea. Adoro comer. Comeria o mundo... E adoro vinho. E antes bebia três, quatro copos... Agora bebo um, e... Porque me sobe o açúcar, porque me baixa o açúcar, porque sobe o colesterol... [risos] Estas são as coisas que temos todos. Então respondo a maiores circunstâncias negativas com maior disciplina positiva. Porque à parte de tudo é uma responsabilidade. Se eu fosse gordo e não me cuidasse as pessoas diriam: é um abandonado... Eu cuido-me, na realidade mais para as pessoas do que para mim. Ando, nado. Como uma vez carne em cada 15 dias. Gosto de vinhos jovens, pois tomo velhos porque têm menos açúcar. A mí me encanta la vida. A mí me encanta vivir. A mí me encanta sentir [Gosto da vida. Gosto de viver. Gosto de sentir]. Se não fosse vitalista e se não sentisse, não seria o que sou. E se não fosse agradecido...
De que é mais agradecido?
_Eu tive uma vida privilegiada. Filhos com êxito. Uma família maravilhosa. Uma mulher que amo profundamente. O amor da minha vida. Filhos pequeninos, o mais pequeno que se o conhecesses morrias, porque é um presente de Deus. Uma coisa de morrer. Não podia ser mais atento. É capaz de olhar para a mãe e olhar para mim quando temos uma pequena discussão e sente-o. E imediatamente pega na mão da mãe, pega na minha e já nos junta. Muitas vezes perguntam-me «E porque continuas a cantar?»...
E porque é?
_Primeiro porque não sei fazer outra coisa. Que vou fazer? Negócios? Sim... Podia dedicar-me aos negócios, tenho uma série deles, é natural... Porque para mim cantar não é um negócio, é uma alegria. Mas neste momento estou a pensar em como vou vender todas as minhas empresas para deixar de ter todos os problemas e aborrecimentos e dedicar-me a cantar e a viver com os meus filhos.
Tem duas levas de filhos, uns com 40 anos, outros adolescentes e crianças...
_Tive-os quando já não esperava. Para mim ter filhos quando tenho idade de ser avô - e já sou - é um mundo diferente. Os meus filhos mais velhos sabem que sou velho. Mas para o que tem 6 anos sou o mais jovem do mundo. No outro dia estava com o meu filho mais novo no escritório, a tratar de coisas, e de repente olhei para ele e ele estava com o seu iPad e as suas coisas e perguntei-lhe: «Guillermo porque gostas tanto de mim?» E ele disse: «Porque és meu pai.» E depois de dois ou três minutos chegou ao pé de mim e disse: «Se não fosses meu pai também gostava de ti.» E claro que chorei, logo... Com os meus filhos mais velhos é diferente, são independentes. Enrique é um campeão, Julio outro, Chabeli vive feliz na sua vida. E os pequenos, pois têm mais necessidade de mim. Os mais velhos são rapazes que viajam nos seus aviões privados...
Enrique é um discípulo?
_Não. Enrique é autónomo. A única coisa que herdou de mim foi o amor pelas pessoas, a educação de ser generoso com as pessoas. É simpatiquíssimo. E isso sim, tem-no nos genes. Julio é igual. Chabi é mais reservada.
Porque nunca fizeram nada juntos?
_Porque soa feio. Pai e filhos a cantar soa muito comercial. E depois seria interromper a carreira autónoma de Enrique. Ele é um rebelde com causa... [risos]. A causa dele.
Olha para as mulheres hoje como olhava há vinte, trinta anos, procura as mesmas coisas, olha com os mesmos olhos?
_Quando uma pessoa tem a minha idade o interesse não muda, mas a necessidade muda. Toda a parte física perde força. Em graus superlativos. Mas a vontade de flirtar, o coquetear, não se perde. Mas depois a tua natureza, que é marcada pelos anos que passam, leva-te a outras convivências. A outros sentidos. Eu hoje não tenho nada que ver com aquele rapaz de 30 anos. Aos 30 anos eu amava... Era uma vida maravilhosa, porque a cabeça ia a par do meu corpo. Agora a cabeça vai a par da minha alma.
É melhor ou pior?
_Aaahhh... Agora por exemplo tenho mais interesse nos outros. Antes tinha menos. Agora tenho interesse, por exemplo, no que custa às pessoas comprar um bilhete para os meus espetáculos, pergunto quanto custam, porquê. Há mais perguntas, porque sou muito menos egoísta. Quando era jovem o instinto era muito mais forte do que o intelecto. Porque o êxito veio tão de repente e era muito avassalador. Sempre tive uma boa cabeça, firme, nunca tive uma cabeça deformada. Sempre disciplinada, que podia juntar ao meu corpo. Em todos os sentidos. Agora tenho a cabeça possivelmente muito mais aberta do que antes e o corpo está mais adormecido... No entanto, a minha alma está vivíssima. A alma está desperta. Inquieta.
Isso de ficar velho é mais importante para alguém que foi um símbolo sexual?
_Eu nunca fui um sex symbol.
...
_Repara que gostei tanto das mulheres... A mulher para mim foi companheira, professora, incentivou-me, fez-me estar melhor, preparar-me mais, olhar-me ao espelho da minha vida por dentro... Fez-me tentar seduzir. E isso de ser um sedutor já o tinha por dentro, que é uma coisa maravilhosa, porque ter a sedução cá dentro não é igual a tê-la só por fora. Então a mulher para mim foi o meu espelho. O respeito absoluto. O amor profundo. Porque se eu não gostasse da mulher desta forma não teria tido oito filhos. O «donjuanismo», o ser um sex symbol, não dá esta predisposição para ter filhos. Eu tenho oito. E uma das coisas mais bonitas que tenho na vida é ter visto a minha mulher a ter os filhos. E estar com eles.
As mulheres já têm um lugar importante na sua vida antes de ser cantor?
_Sim. Sempre. O meu pai também gostava muito de mulheres. É genético. Vivi toda a vida rodeado de mulheres e não quero deixar de viver. Porque com elas aprendo. Não com essa ideia que as pessoas têm de tantas mulheres que tive... Isso é um conto chinês. Com números...
Mas pelo menos tinha quantas queria...
_Mentira.
Não acredito.
_Vou explicar. Quando és um artista, pop, rock, e vais para o palco, os olhos juntam-se. Com tanta gente. E se os olhos se juntam com tanta gente e tens 24, 25, 26 anos, a atração é profunda, forte e sólida. Evidentemente juntam-se os corpos, como se juntam os olhos. Mas isso não é só comigo é com todos os artistas. Se são homossexuais, se são heterossexuais. O artista atrai esse olhar e ao mesmo tempo procura-o.
A fama não faz desconfiar? Não há uma parte que fica sempre com dúvidas?
_O que queres perguntar-me é se sabes se gostam de ti pelo que és ou... Na realidade és o que és. Não podes pensar que gostam de ti porque representas algo. Se me perguntares quantas pessoas viveram ao meu lado mais pelo que represento do que pelo que sou... Pois com certeza muitas. Mas não dou tanta importância porque essas pessoas não ficaram comigo e eu não fiquei com elas.
É possível ter amigos verdadeiros na fama?
_Sim, claro. É possível ter tudo na fama. Amigos, inimigos, amores. A fama... Não sei o que é para ti a fama. A fama para mim é o reconhecimento. O reconhecimento é a exposição de algo que fazes e que é público. Mas o reconhecimento não tem de ser público. Há famílias, centenas de milhões, que têm o reconhecimento íntimo. E desfrutam. É comparável, emocionalmente. Eles desfrutam do seu sucesso íntimo como eu desfruto do público. É exatamente igual.
A forma como expõe a necessidade desse reconhecimento é muito sincera.
_Todos os que te digam o contrário estão a mentir. Tu quando fizeres este artigo, vais gostar que os teus amigos digam «gostei da entrevista» ou «que porcaria de entrevista»... É isso.
Por que nunca escreveu uma biografia?
_Porque se o fizesse ia ficar zangado com muitos amigos e pessoas queridas porque tinha de escrever a verdade. E como seria a minha verdade, com todos os meus defeitos e de todos os outros, seria uma biografia não positiva. Porque tenho muitas coisas para contar.
Por isso mesmo!
_Não, mas não.O que quero fazer, e será nos seis meses do ano que vem, é viajar com dois bons escritores, um latino e outro anglo-saxónico, e que depois dos concertos jantem comigo e que tomem um bom copo de vinho e que assinem um documento em que fique escrito que eu posso corrigir o que escreverem. Para ter uma história para contar com música. Para fazer uma história musical. Isso sim, sou capaz de fazer. Sem misturar política, nada... Vocês os portugueses consideram-se latinos? Não...
Somos mais portugueses. Somos Portugal, Angola, Brasil, Moçambique... Esse é o nosso mundo.
_Eu conheço o teu mundo tanto como tu, ainda que não acredites.
Claro que acredito. Muito mais.
_Soltas-me em Moçambique ou Angola... Adoro... Vou cantar a Angola dentro de um mês e meio. Já cantei lá várias vezes. Amo. E o Brasil... Bom, o Brasil é a minha terra. Deixa-me que te explique um pouquinho o Brasil. É tanto o amor que tenho por esse grandíssimo país que já fiz mais de vinte discos em português. Que aprendi português a cantar, o que é dificilíssimo. Estou justamente agora a regravar umas músicas em português para o Brasil. Para fazer um novo disco.
Depois de tudo isto qual é o seu legado à música?
_Não há legado. Um legado é algo que pertence aos génios. Aos que inventam. Aos que fazem que a sociedade progrida. Nós, os cantores populares, não temos mais legados do que uma música, que lo mejor que era lo mejor se va. Não tenho um legado que vá alterar a sociedade em nenhum sentido. Sou um entertainer. Passei a vida a cantar e a entreter as pessoas e a fazê-las o mais felizes possível. A comunicar com elas, a dar energia e a receber a delas. O legado que tenho são estas canções que escrevi que ficam por aí ou não... Mas não mudei nada. O que mudou fui eu que a pouco e pouco me tornei artista, nada mais.
E, no final, como explica o seu enorme sucesso?
_Em primeiro lugar, um êxito tão universal não tem muita lógica. Porque senão toda a gente o atingia. Acho que há um som na voz do artista que não tem idade. É um som que as pessoas escutam e reconhecem logo. E com esse som chega-se ao tímpano de quem nos ouve e acredita em nós e no que estamos a contar e o sente. Não tem explicação. Isto é o êxito. É um estilo misturado com as palavras certas e bem ditas e que respondem à cena que está a acontecer que é a canção que estás a cantar.
O seu êxito foi global, até na China.
_Canto na China há quarenta anos. Estive muito tempo em Hong Kong porque lá vivia a minha mulher [Isabel Preysler] e os pais dela viviam nas Filipinas. Para mim a Ásia sempre foi muito atraente. Acabámos de chegar de lá e vamos voltar em outubro.
É o seu melhor mercado?
_Não sei... É um mercado fascinante. Chegar às ruas de um pequeno povoado - e na China um pequeno povoado tem quatro milhões de habitantes - e a reação do público é emocionante. A música chinesa faz-se com sons dissonantes e a nossa faz-se com sons consonantes. Fazer uma música consonante numa genética assonante foi um mundo de rutura... Quando lá fui das primeiras vezes fizeram-me um teste na TV para ver se era válido para cantar em direto. E disseram-me que sim, cantei num programa em direto que era visto por quatrocentos milhões de pessoas, e foi assim.
As pessoas reconhecem-no na rua?
_Sim, dizem Fulio, Fulio, Fulio. Mas é uma maravilha. Chegas ao aeroporto de Xangai e dão-te um beijo. Agora imagina que eu saía à rua e ninguém olhava para mim. Seria uma angústia de solidão mortal.
O futebol foi importante na sua vida - e continua a ser fanático do Real Madrid. Como viu a saída de Mourinho, ficou triste?
_Não porque ele quer ir-se embora. Falo muito de Mourinho. É um grande profissional. Um dos maiores treinadores de sempre. Mas tem uma coisa no seu coração que é maravilhosa, mas que vai contra a sua profissão. A emoção. Ao ser tão emocional de vez em quando transporta a emoção para a sua profissão. E tenho a certeza de que quando chega a casa pensa «estou arrependido disto», daquilo que disse.
E Ronaldo?
_É bestial. Tem tudo. É um tipo bonito, é um tipo forte, desportista, profissional. Tem todos os atrativos de um campeão, porque Deus também o premiou com o look. Ou seja, é muito difícil jogar futebol como joga e ter uma cara como tem porque isso provoca muita inveja... É indispensável para Madrid. Lembro-me de que há uns cinco anos, estava no Algarve e a mãe dele disse-me «esteja descansado que ele já assinou pelo Madrid». Simpática.
Quem já jogou futebol continua a ver o futebol de outra forma, avaliando mais... sobretudo os guarda-redes?
_Sim, também o vejo como profissional no sentido que valorizo os jogadores de uma forma técnica. Mas continuo a gostar dos golos de forma igual... Quando Madrid ganha, mesmo que seja uma jogada irregular, festejo. Não me importa.
Vive entre Punta Cana, Miami - onde os seus filhos estão na escola - e Marbella, o seu quartel-general em Espanha. Como é regressar a Espanha?
_Nunca regresso a Espanha porque nunca saí de Espanha. A minha cabeça está aqui, o meu sentimento está aqui. O meu caráter, os meus pais, os meus avós. Sai de Espanha quem sai aos 3 anos, não aos 35.
Porquê Miami?
_Porque eu tinha razão. Miami é o mundo. Tem o sol o mar, e hoje um mundo atrativíssimo de todas as gerações, origens. Tornou-se a cidade mais cosmopolita, mundana.
Fez mais por Espanha do que Espanha por si?
_Nós, os latinos, somos maus promotores das nossas coisas. Os franceses já começam a fazê-lo melhor, os italianos, melhor, portugueses e espanhóis são muito maus. Não sabem vender vinho do Porto nem os vinhos de Ribera del Duero... E somos muito críticos connosco próprios fora. Em vez de falarmos bem dos nossos países falamos mal... Somos maus promotores.
Nunca escondeu que era espanhol.
_Levo Espanha comigo na minha alma a qualquer continente que vá. E quando entro em palco toda a gente sabe que sou espanhol. A marca Espanha nunca a promovi de forma formal mas está na minha alma. Espanha deu-me a vida, o sangue, o caráter, o espirito... E eu exportei-a. O que aconteceu é que passei a sentir-me do país onde estava no palco. As nossas obrigações são de comunicar com as pessoas que nos vão ver. E quando eu canto não perco a minha nacionalidade mas converto-me em chinês durante duas horas, nem que seja para agradecer a essas pessoas que nos vão ver por duas horas. E isso digo-o muitas vezes em palco. Se me fores ver em Portugal pois «eu sou português aí» [em português].
O que vai cantar em Portugal?
_Os cantores cantam o que as pessoas querem. As canções clássicas, que cantam há quarenta anos.