Já fez a sua mamografia?

É o meio mais eficaz para detetar o cancro da mama a tempo e horas de ser tratado e curado e as novas tecnologias de imagem - agora a 3D - permitem identificar pequenas alterações cada vez mais cedo. Mas em Portugal escasseia a prevenção, falha a organização e compromete-se a qualidade do diagnóstico, diz um dos nossos maiores especialistas.

ERNESTO PASSOS ÂNGELO

É médico radiologista há 42 anos e especializou-se no estudo e diagnóstico do cancro da mama. Foi director do serviço de radiologia do Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa, e do Departamento de Diagnóstico por Imagem do Centro Hospitalar de Lisboa Central. Depois da vice-presidência da Sociedade Portuguesa de Senologia, desempenha funções idênticas na Sociedade Portuguesa de Menopausa.

A mamografia continua a ser o melhor meio para o diagnóstico do cancro da mama?

_É o único meio que permite a detecção precoce do cancro da mama. Nalgumas si­tuações deverá ser complementada com ecografia e, em casos mais excecionais (mamas densas ou com determinado tipo de alterações e também no caso de jovens de alto risco por história familiar de can­cro), com ressonância magnética.

A partir de que idade se deve fazer uma mamografia?

_Nas mulheres sem sintomas, a Organi­zação Mundial de Saúde (OMS) e as socie­dades de senologia (especialidade médica que estuda e trata as doenças mamárias) recomendam que o primeiro exame se fa­ça aos 35 anos. Se estiver tudo bem, devem voltar a fazer aos 40 e, a partir daí, de dois em dois anos. Com a introdução dos ras­treios, as autoridades de saúde decidiram que se fazia a partir dos 45 ou 50 anos, de­pendendo dos países, com exames mamá­rios anuais até aos 50 anos e de dois em dois anos até aos 65.

Antes dos 35 anos a mamografia não está indicada. Porquê?

_A mama das mulheres jovens é muito densa e por isso é difícil detectar peque­nas alterações sem o complemento de uma ecografia. Mas a idade-referência só é válida para mulheres sem sintomas e sem risco aumentado. Se houver risco fa­miliar, a mulher deve fazer mamografia de perfil, que permite identificar as microcalcificações e distinguir as que são cancro (vinte por cento) das benignas (oitenta por cento). Mas o exame mais in­dicado nesta idade é a ressonância mag­nética mamária, que permite identificar pequenos nódulos.

A mamografia permite a deteção de lesões quanto tempo antes de serem palpáveis?

_Varia de lesão para lesão. O que sabemos é que entre o crescimento e a multiplicação de células malignas e a sua visualização por mamografia podem passar entre sete e oito anos. Segue-se um período de latência, que pode variar de um a sete anos, dependendo da idade da doente e do tipo histológico do tumor, até que seja clinicamente detectável. Em suma e em casos extremos, uma mulher pode andar com um cancro da mama duran­te 14 ou 15 anos sem saber que o tem.

Como justifica os casos em que as mulheres fazem mamografia, aparentemente está tudo bem, e seis meses ou um ano depois é-lhes diagnosticado um cancro?

_É muito simples: nesses casos, se formos analisar com rigor as imagens anteriores, verificamos que o cancro já lá estava.

E não foi detectado porquê? Porque a ima­gem tinha má resolução e os médicos não viram ou porque não souberam interpretar?

_Podem ser essas ou outras situações, de­pendentes do tipo histológico da lesão e das caraterísticas mamárias, por causa técni­ca ou por falha humana. É verdade que há tumores que não são visíveis na mamogra­fia e que mamas densas e com várias forma­ções nodulares podem dificultar a deteção de pequenas lesões. Mas também é verda­de que ainda se faz muito má mamografia em Portugal. Nuns casos, porque os equi­pamentos são muito antigos e as imagens obtidas são más, noutros, porque houve mau posicionamento e as incidências obtidas também são más. Em qualquer dos casos, o risco de um médico se enganar é maior.

Mas há algum médico que reconheça que o tumor já lá estava e que não o viu?

_Eu faço-o. E escrevo no relatório que o tu­mor já lá estava mas que na altura não o valo­rizei. E já fiz uma palestra sobre os meus er­ros de diagnóstico num congresso da Socie­dade Portuguesa de Menopausa. É a melhor forma de aprendermos uns com os outros.

O senhor deve ser caso único em Portugal... A Direção-Geral de Saúde já criou um sis­tema de notificação de erros médicos, com­pletamente anónimo, mas quase não há ca­sos reportados.

_Eu assumo os meus. Mas também quero descansar quem nos lê, pois não é um atra­so de um ano num diagnóstico que põe em causa o prognóstico ou a saúde da pessoa. Isto, porque não estou a falar de coisas des­caradas, que saltem à vista de quem observa.

É verdade que também há alterações que são interpretadas como cancro da mama e que na verdade não são?

_Sim, são os chamados falsos positivos e já chegaram a 40 por cento. Agora há menos. Mas os falsos positivos são uma das razões por que o diagnóstico do cancro da mama deve combinar sempre mamografia, eco­grafia e palpação mamária (feita pelo mé­dico). Diante de uma lesão suspeita, a mu­lher deve fazer ressonância magnética, com biópsia, de preferência no mesmo dia. Quem não tiver condições para trabalhar assim, não deve fazer exames mamários. Infelizmente, há hospitais de referência no Serviço Nacional de Saúde (SNS) que ainda não reú­nem as condições mínimas para o diagnós­tico do cancro da mama.

E depois também há o sobrediagnóstico...

_De facto, há tumores que são precocemen­te diagnosticados e depois removidos embo­ra se saiba que muitos não iriam evoluir pa­ra estádios mais avançados. O sobrediag­nóstico é uma das consequências más dos rastreios.

Um radiologista pode fazer qualquer exame de imagem. Não faz sentido a especialização?

_Posso responder-lhe assim: sou médico ra­diologista e fui diretor de serviço num hos­pital em que era o responsável por todos os exames que se faziam... Mas eu só faço al­guns exames ligados à patologia mamária, densitométricos e raios X convencionais. Seria incapaz de me responsabilizar por outros. Claro que a especialização é funda­mental. Quem se dedica à mama deve ter muita experiência em mama, o mesmo para quem se dedica ao abdómen. Fazer de tudo um pouco não é bom para os doentes. Olhe, eu defendi sempre que os neurorradiologis­tas é que devem fazer os exames de crânio e de coluna e que as ecografias pélvicas e obstétricas devem ser feitas por ginecologis­tas/obstetras. Mas há quem pense diferente.

A evolução das tecnologia médicas tem contribuído para uma melhor resolução das imagens obtidas através da mamografia. O que há de novo nesta área?

_Começámos por trabalhar com equipa­mentos analógicos, mas já há quase duas décadas que chegou a mamografia digital direta. Penso que terei sido o primeiro mé­dico a fazê-lo em Portugal. A resolução e a qualidade da imagem são totalmente dife­rentes.

Mas entretanto também disponibiliza a ma­mografia digital tridimensional. Qual é a vantagem?

_Tem muito melhor definição, permite observar a mama de forma tridimensio­nal e possibilita a identificação e análise de alterações muito pequenas. O exame é realizado de forma idêntica, mas permi­te a captação de dezenas de imagens em vários ângulos que depois são observadas em computadores e monitores também de alta resolução, onde cada pormenor pode ser ampliado e estudado. A tomossíntese mamária, é assim que se designa, fez uma revolução na imagem pois minimiza ou elimina significativamente os desafios as­sociados à projeção da informação anató­mica 3D num plano de imagem 2D.

Quem é que deve fazer uma mamografia tridimensional?

_Qualquer mulher com indicação para fa­zer uma mamografia. A radiação não é maior. Nós estamos a fazê-lo em todas as pacientes.

E o preço é mais elevado?

_Não houve qualquer aumento do custo. Nem para as pacientes nem para as insti­tuições convencionadas.

Em Portugal, a probabilidade de uma mu­lher ter cancro da mama ao longo da vida será de uma em oito e todos os anos são diagnosticados cerca de cinco mil novos casos. Sabe dizer se estamos a diagnosticar bem e a tempo?

_Primeiro é preciso aclarar os números. Em Portugal, o pico máximo do cancro da mama ocorre aos 70 anos e nesse gru­po atinge uma em cada 14 mulheres. Aos 50 afeta uma em cada cinquenta. E aos 30 só uma em cada 2300 mulheres é que te­rá um cancro da mama. Nos EUA, uma em cada nove ou dez mulheres terá cancro da mama.

Os números que referi são do Registo Onco­lógico Regional do Sul. De qualquer forma, a pergunta é sobre a qualidade do diagnósti­co. Estamos a diagnosticar bem e a tempo?

_Penso que não. Mas importa referir que não podemos continuar a orientar a saúde para o ato médico como ainda sucede em Portugal. Para prevenir a doença, as pesso­as precisam de ter uma atitude muito mais proativa e isso faz-se com exercício físi­co, alimentação, estilos de vida saudáveis e com a realização de alguns exames mé­dicos que permitem o diagnostico precoce de alterações, incluindo o cancro da mama. Neste caso, em mulheres sem risco aumen­tado e sem sintomas é a partir dos 40 anos que devem começar a fazer mamografia de dois em dois anos.

Acabou de dizer como devia ser, mas a pergun­ta pretende saber como é. Estamos a fazer um bom diagnóstico precoce do cancro da mama?

_A saúde em Portugal está virada para o tra­tamento das doenças e não para a preservação da saúde e prevenção das doenças crónicas e o cancro da mama não é exceção. O diag­nóstico precoce é a única forma de alterar o curso natural da doença, reduzir a mortali­dade e a morbilidade. Acontece que os hos­pitais continuam de costas voltadas para os centros de saúde e que o diagnóstico que se faz no país não tem regras. No cancro da mama, há um rastreio que é feito pela Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC) mas não se conhecem os dados.

Está a dizer que o Ministério da Saúde paga à LPCC para fazer o rastreio mas que, além das zonas geográficas, se desconhece tudo o resto, incluindo a população abrangida e os resulta­dos, é isso?

_Não se sabe nada. Pelo menos eu nunca ou­vi nem nunca conheci quem soubesse da efi­cácia do rastreio do cancro da mama. Desco­nhece-se a cobertura populacional, os acha­dos, o encaminhamento para os centros de referência...

Então, como é que se deve fazer a prevenção e chegar às mulheres menos informadas e com mais dificuldade de acesso à saúde?

_Há tantas maneiras simples. Olhe, na Bél­gica, quando as pessoas vão de férias le­vam as prescrições para que façam os seus exames de saúde anuais, que variam de pessoa para pessoa em função da idade. Aqui não. Para rastrear o cancro da ma­ma mandamos uma carrinha ao Interior, chamamos uma velhinha e das duas uma: ou nunca mais lhe dizemos nada ou, pas­sados uns meses, mandamos uma carta a dizer que há uma suspeita e que a pes­soa tem de se deslocar não sei onde para marcar um novo exame. Isto é feito sem articulação nem organização, leva tempo e deixa a pessoa numa angústia enorme. Mas isto é preciso para quê? Eu discordo. São os médicos de família que têm o dever de informar as suas pacientes para a ne­cessidade de fazer uma mamografia preventiva e devem prescrevê-la nas alturas certas. Quando são detetadas alterações, as mulheres devem ser encaminhadas pa­ra o centro de referência em cancro e de forma articulada.

A prevenção do cancro na mama deve pas­sar pelo centro de saúde e pelo médico de família?

_Claro que sim. Faz algum sentido mandar uma carrinha de Lisboa para Beja para fazer mamografias? Esse modelo que a LPCC le­va a cabo talvez tenha feito sentido nos anos 1980 ou 1990, mas no século xxi somos capa­zes de fazer melhor, com mais eficácia e com os recursos do SNS. No final há que estabelecer a articulação entre os centros de saúde e o hospital de referência do doente, que deve desenvolver unidades de excelência que per­mitam a resolução deste e de outros proble­mas do nosso sistema de saúde.

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