«Faço discos porque preciso de desabafar»
É uma das vozes mais marcantes do novo fado. E, aos 32 anos, tem já uma longa carreira, por ter começado muito cedo - criança, cantava em casa, adolescente começou a atuar nas casas de fado. Tem em Fernando Maurício o seu ídolo e mentor, e, apesar de lhe chamarem purista, não resiste a inovar e a saltar a cerca para outras músicas. Nas vésperas dos concertos no CCB e na Casa da Música - 15 e 16 de fevereiro -, uma entrevista intimista com Ricardo Ribeiro.
Se não fosse fadista o que seria?
_Não sei. Sempre tive vontade de ser veterinário. Também quis seguir o sacerdócio, quando estudei no Colégio Diocesano Andrade Corvo. Conheci um homem maravilhoso, o padre Manuel Alves. Eu era adolescente. Devia ter 14/15 anos. Este padre era um homem especial. Ainda hoje tenho o seu rosto na minha mente, o seu cabelo branco, a sua forma de estar e a maneira como lidava com os jovens, como nos transmitia a mensagem de Cristo de uma forma muito livre, sem amarras ou grilhetas. Tinha um falar muito calmo e paciente. E como viu que eu tinha algum interesse nisso e porque me fascinava toda aquela história, os tempos antigos, a época medieval especialmente, a história do Cristianismo...
Porque é que isso o interessava?
_Eu aprendi a rezar com seis anos. A minha tia ensinou-me o pai--nosso e a ave-maria. Mas a religião, nós praticamo-la para nós e a fé é uma coisa pessoal e não para andar a vender aos sete ventos. Este padre tinha uma frase muito curiosa. Dizia: «Duvido de quem prove o bem e não fique viciado.» No fundo é essa a verdadeira mensagem: não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti. Era incrível porque me fascinava a energia envolta nisso.
Esse miúdo que descreve não é o típico adolescente dos anos 1990.
_É sempre difícil falar disso porque posso cair no erro, naquele ridículo do ego. Eu não era esse adolescente normal. Cresci no ambiente de um bairro típico de Lisboa, na Ajuda. A minha família é humilde, mas incutiu-me princípios e valores. Depois, sempre tive uma tendência para conviver com pessoas mais velhas. Os meus amigos sempre foram pessoas muito mais velhas. Tinha os meus seis, sete anos e ia para a taberna ver os velhotes a jogar à sueca e ouvi-los falar. A figura de referência da minha família e vida é o meu avô. No mundo artístico é o Fernando Maurício. Fui amigo dele. O Zé Inácio. Eram pessoas com 60, 70 e 80 anos. Até com 90, no caso do Arlindo Santos. É natural que a minha personalidade fosse moldada por essa conivência. Eu pouco convivi com miúdos da minha idade. Fazíamos carrinhos de esferas... Brinquei como uma criança normal, mas sempre tive uma tendência... Fascinava-me aquele mundo das pessoas mais graúdas.
O que é que o fado teve que ver com isso e vice-versa?
_Não sei. Via a minha mãe fazer a lida da casa e, quando ela canta, tem uma voz de pregão muito bonita. E cantava uns fados. E aquela voz prendia-me. E depois a minha tia Susete, que não é minha tia de verdade, mas ajudou a minha mãe a criar-me. A minha mãe era colega de trabalho da minha tia Susete e esta, como não tinha filhos, ajudou a criar-me. Amo-a. Ela tem uma coleção de discos incrível. É uma amante de fado e percebe. Muitas vezes telefona--me: «Não gostei da maneira como estilaste o Menor.»
Mas nunca foi uma profissional?
_Não. Apenas tinha um bom ouvido. Com cinco ou seis anos de idade, os discos que se ouviam em casa dela eram discos de fado e música clássica. E ouvia-se muito uma rádio, que hoje não existe, a Voz de Lisboa. Foi com isso que cresci.
O fado não é música para crianças...
_O fado é uma cantiga muito adulta. Ao contrário do que parece, não acho graça nenhuma a uma criança cantar. E contra mim falo que comecei em criança. Mas também tive a sorte de a minha tia dizer-me cantigas que eram mais adequadas à minha idade. Coisas mais descritivas. Muitas vezes costumo dizer uma quadra do João Linhares Barbosa que mostra muito isso: «O destino é linha reta / Traçado à primeira vista / Como se nasce poeta / também se nasce fadista.» Não sei... tudo aquilo me prendeu. Como o canto dos ciganos. Fui criado num bairro de ciganos. Tenho ainda hoje grandes amigos. São como irmãos. E eu cantava com eles, fazia rumba com eles. Uma série de coisas. Todo aquele mundo me prendia.
A sua mãe gostava disso?
_Porque não? Estávamos todos ali. Toda a gente viveu em harmonia; de vez em quando havia um desacato ou outro, mas isso é normal.
Qual foi o primeiro fado que cantou?
_É difícil dizer-lhe. Aquele com que me apresentei publicamente foi um erro. Foi o Testamento Fadista, de Fernando Maurício. Era uma coisa de despedida. Aprendi esse fado e a minha tia deixou--me cantar e depois disse-me «não podes cantar esse fado, não tens idade para isso, tens de cantar outras coisas». Cantei a Mulher de Lisboa, coisas mais ligeiras para a idade que tinha.
Como é que a sua tia viu essa sua vontade de ser fadista?
_Com algumas reservas. Mas apoiou-me sempre. E como o que ela gostava era ver-me feliz, deixou tudo isto acontecer.
De forma é que os seus problemas familiares condicionaram o seu gosto?
_Eu fui obrigado a ser homem muito cedo e a crescer muito cedo.
Os seus pais separaram-se, não foi?
_Sim. Separam-se e houve muitas coisas, muitos problemas. Acabei por ir para o colégio interno porque era uma criança desesperadamente aflita de atenção, como ainda hoje, infelizmente. Tudo isso me obrigou a crescer muito depressa e a abrir os olhos para o mundo depressa, para a maldade. Não pude ser criança, se calhar, em muitas situações. Ainda hoje padeço de uma coisa que se chama infantilidade. Sou infantil em muitas coisas.
Como era a sua pose a cantar fado com seis anos?
_Eu tinha muito jeito para contar anedotas. A família reunia-se e eu contava anedotas. Sempre fui uma criança dada a conviver. E o cantar veio porque veio. Quero dizer, a minha tia punha-me em cima da cadeira e eu cantava para as pessoas. O meu pai chamava--me muitas vezes - havia ali uns cafés, ao fim da tarde, ele saía da fábrica e ia tomar o seu café ou a sua cerveja (não era dado ao álcool) e, entre os amigos, eu cantava «I just called to say I love you». Ainda hoje adoro o Stevie Wonder. E depois cantava fados. As coisas foram acontecendo muito naturalmente. É uma questão de amor - chego à conclusão que é isso. Eu adoro isto. Esta maneira de estar, lisboeta e portuguesa. Esta maneira de nos exprimirmos, este encanto, profundo e muito rico. Isto depois também não se compadece com imitações baratas. É preciso ser-se original e criativo.
Porquê?
_Quando se fala de uma cantiga que é muito antiga, que em toda a sua história tem artistas que deixaram isso nítido e claro, essa cantiga não se compadece com copy paste. Com caricaturas baratas.
Mas está sempre a reinventar-se?
_Claro. Todos os fados foram cantados pelos outros. Uma das coisas que é interessante, é que cada um deixa a sua marca naquela melodia. A seguir vem outro e deixa outra marca. O Fado Menor é cantado há cem anos e continua a ser cantado. Eu gravei o Menor e criei um estilo para ele. A grandeza do fado é esta. Há sempre criatividade, há sempre pormenores de elevada sensibilidade e estilo.
O Ricardo é reconhecido como sendo purista do fado...
_Se ser purista é ser-se lúcido, pode chamar-me assim. Ser lúcido é não trasvestir uma coisa que não pode ser trasvestida. É não utilizar uma obra que não é minha em favor dos meus interesses. Porque eu não tenho o direito de adulterar a obra de ninguém. Também não ando aqui a vender que sou perfeito e os outros imperfeitos. Nem pouco mais ou menos. Lá está, a convivência com os velhotes deu-me um certo cuidado. Eu tenho passado. Como comecei muito miúdo, com 32 anos tenho passado, convivi com pessoas que já não estão no mundo dos vivos, a quem devo respeito. E esse respeito passa por aquilo que eles me ensinaram e incutiram.
Esses ensinamentos são só técnicos?
_Não, não. Até de índole, de ética. Se tenho uma obra de um compositor, por mais humilde que o compositor seja, não tenho o direito de alterá-la.
Qual é o limite, quando pega num fado?
_Aparece naturalmente, pelo passado que tenho e pelas pessoas com quem convivi.
Quando está a cantar um fado que outros já cantaram, lembra-se daquilo que eles fizeram?
_Não. Lembro-me do Ricardo Ribeiro e o que é que ele tem para dar àquela melodia. Ou o que não tem para dar, porque há melodias que são suficientemente fortes, belas e profundas para não lhes dar nada.
A sua maneira de cantar também é muito única.
_Sim. Eu sei.
O que faz à sua voz para a poupar?
_Água, muita água. E, quando tenho de cantar, falar o menos possível.
A sua voz é perigosa?
_Como assim?
É frágil?
_Tem a sua parte frágil. Tem a sua componente mais gasta, porque arrisco muito e faço muitas coisas que às vezes parecem muito arriscadas e de um grau de complexidade muito forte. É importante que a preserve. Falar pouco, fumar menos, beber muito água. Há coisas que eu canto... São muitos compassos sem respirar, em que preciso da voz cair numa determinada oitava e subir novamente. Isso exige muito de mim, a nível físico e mental.
Quando canta no estrangeiro, as pessoas sabem logo que é fado?
_Quando vou ao estrangeiro, quando as pessoas sentem, não sabem se estou a cantar o Menor ou o Mouraria, ficam é presas à verdade que estou a transmitir. Se as pessoas sentem... É importante que as pessoas sintam uma verdade. Se as pessoas se identificam ou não com o fado... Há pessoas que vão à casa de fados, franceses ou alemães, que dizem não ter ouvido fado, que aquela pessoa não cantou o fado. Dizem, inclusive, que cantou folclore. Hoje em dia, as pessoas já vão percebendo que há determinadas coisas que são fado, outras que não.
É muito importante para si, essa distinção?
_É. A diversidade é das coisas mais interessantes que existe. Mas depois traz-nos a solidão. Há tanta coisa, para onde me viro? Por este lado, o fado é interessante. E porquê? Porque podemos preservar este cantinho, esta coisinha, que por muito simples que seja é algo fantástico. Basta debruçar-nos pelos poetas que escreveram aqui. Homens que não eram letrados ou eruditos e que escrevam coisas absolutamente inacreditáveis. De bem escritas, em português, belo! Com mensagens subliminares interessantíssimas.
O seu estilo é igual hoje e quando tinha 10 anos?
_Não, não. Não, porque vou vivendo, as pessoas vão-me influenciando, os músicos vão-se cruzando no meu caminho. E os poetas também.
Quem foi mais importante?
_O fado foi sempre o mais importante. Como pessoa do fado, fadista, talvez seja o Fernando Maurício a pessoa mais importante. Repare, ele foi meu amigo e eu fui amigo dele. Eu conheci-o com seis anos, na festa de aniversário dos 50 anos da minha tia. Num restaurante, O Barbas, na Costa de Caparica. Não cantei, ele cantou. Há uma fotografia, inclusive, em que ele está em pé a dar-me um beijo. Foi o primeiro contacto que tive com ele.
E nessa altura teve noção...
_Lembro-me perfeitamente desse dia: quando o fado começou, eu parei. Não me mexi até o fado acabar. Depois, a partir daí, a minha tia levava-me ao Faia, que era onde ele cantava ao fim de semana. E dos 9 aos 16 eu ia lá sempre ouvi-lo, até que fui para lá trabalhar. E ele sempre meu amigo. Eu fazia-lhe companhia à noite, saímos dali e descíamos a rua. Ele gostava muito de dar a volta à Rua Augusta, no verão, sentávamo-nos no Largo do Martim Moniz a conversar. Ele ia conversando sobre fado, sobre a vida. Porque ele era um homem muito interessante. Não era uma pessoa letrada, mas tinha um percurso de vida e sabedoria incríveis. E tinha uma sensibilidade também incrível - dava gosto falar com ele. Era um homem com frases muito engraçadas, populares.
Que frases lhe ensinou?
_«Há tubarões com dentes de aço», por exemplo.
Todos os fadistas têm uma relação com a Amália. Qual é a sua?
_É sempre uma referência. Isso são relações muito espirituais, transcendem o canto, que me fazem sentido, que me fazem arrepiar. Estão presentes nos piores ou melhores momentos da minha vida. Porquê o impulso de meter o disco de determinada pessoa e não meter outro? É uma coisa espiritual. A alma não tem um botão que liga e desliga. Sei que eles estão presentes das mais variadas formas.
O que é que um fadista homem tem a aprender com a Amália?
_A verdade. Ser a coisa que ela foi, genuína e autêntica.
Quando estava no colégio, em Torres Novas, os seus amigos viam o seu interesse no fado como uma coisa anormal?
_Não. Eu nunca sofri de ostracismo por ser fadista. A partir dos 13 anos sempre fui latagão, gordo. Eles tinham medo. Se desse uma chapada num, tirava-lhe a cabeça. Eles baixavam a bolinha. Numa festa do colégio cantei dois fados e, depois, a canção «Já não há estrelas no céu...». Havia um ou outro - «Ah, fadista!», gozavam. E eu respondia «Acerta o passo...». Nunca tive esse problema. E muitos até me pediam para cantar.
Nunca escondeu?
_Não! Isso é que era bom.
Há pessoas, como o Camané, que...
_Mas o Camané também é de outra geração. É muito antes. Ele já andou na escola nos anos 1970.
Em que ponto estava o fado na sua altura?
_Se quer que lhe diga, nem sei. Sei que o Rodrigo era muito conhecido. E havia outros que se ouviam, mas pouco.
Mas não era mainstream como é hoje?
_Não, não. Quer dizer, não sei. Sei que se vendia muitos discos. Havia fenómenos que vendiam muitos discos.
O que é que ouvia, além de fado, na adolescência?
_Os Gipsy Kings, o Rui Veloso. Era influenciado por alguma música que aparecia na rádio, mas não toda. Os Trovante, ainda ouvi uma canção ou outra dos Sétima Legião, creio eu. O resto passou--me ao lado. Porque não me interessava. Tenho muita pena de conhecer pouco de rock. Às vezes também fico irritado comigo pela paixão que tenho pela guitarra, porque há grandes guitarristas no rock, fantásticos. E eu não conheço. Já pedi a amigos para me irem dando coisas interessantes. Gosto mais do flamenco, os árabes, a música étnica e clássica. Não é por querer ser diferente. É porque a minha sensibilidade nunca me levou para aí.
Ter sido cedo distinguido na Grande Noite do Fado, que importância teve?
_Muita, porque para os miúdos da minha geração, era uma coisa entre os bairros, havia muita competitividade. O primeiro ano fui individual e, depois, já tive coletividades a regatarem-me como um jogador de futebol. Por incrível que pareça, nunca uma coletividade do meu bairro me apoiou. Uma ganhei pelo Futebol Clube de Lisboa, ali no Castelo, e outra pelo Vendedor de Jornais Futebol Clube, na Madragoa. Andávamos o ano a trabalhar, sempre a tentar saber qual o fado que uns e outros iam levar. Quem ganhava, andava pela cidade e arrabaldes a cantar - era o grande vencedor. As pessoas adoravam. Tenho muito orgulho em ter vencido essas duas Noites de Fado porque ainda sou dos que venceu um concurso que durou 50 e tal anos e que quase todos os meus ídolos saíram de lá, por terem participado.
Qual é a importância de ser da Ajuda e não ser, por exemplo, da Alfama ou da Mouraria?
_Nenhuma. No meu bairro todos os meses havia fado nas coletividades. Tinha uma casa de fados - o Solar da Ajuda - que foi da Marina Mota e, depois, do Filipe Duarte. Não tínhamos esse problema. Claro que em Alfama se calhar havia duas ou três coletividades que davam fado e no meu bairro só havia uma.
Quando começou a tocar profissionalmente, a fazer do fado a sua vida?
_Fui trabalhar para o NóNó, é uma casa que hoje já não existe. Eu tinha 18 ou 19 anos, mas já ganhava dinheiro, só ao fim de semana. Trabalhei nas limpezas do CCB, e até guardei rebanhos de ovelhas. Quando saí do colégio, o meu pai foi viver para a Moita. Então, não quis mais estudar, coisas de adolescentes.... Como gostava muito, e ainda hoje gosto, da vida do campo, apareceu a oportunidade de guardar ovelhas. Fui aprendendo com o Tio Zé Bandido. Um homem extraordinário, que tinha uma sabedoria incrível - mal sabia escrever o nome, mas era incrível. O que ele me ensinou do campo e das ovelhas... Sabia lá eu que tinha de desinfetar as patas às ovelhas e limpar os cascos. Ainda estive um ano e tal, dois anos, a guardar ovelhas. E bem saudades tenho. Naquela vida não se conhece a maldade e a solidão. Com os animais a vida é extraordinária e muito mais lenta. Tinha um walkman e ouvia os fados, ia para o campo com o gado; o gado começava-se a espalhar na Herdade do Monte Novo, na reta da Jardia, no Pinhal Novo, no meio da Moita. O meu patrão tinha o gado no Pinhal Novo. Eu soltava-as por ali e podia ficar descansado. O cão é que de vez em quando olhava a ver se elas iam para o milho. Era assim. Depois, às 18h00-19h00 da tarde voltava para casa. O meu patrão dava-me carne, pagava-me o ordenado. Um patrão de quem gostei muito.
E depois?
_Da Moita ainda fomos para Setúbal, onde trabalhei nas obras do Hospital de Santiago, o novo hospital de Setúbal. O meu pai fazia lá umas obras. Entretanto, vim para Lisboa aos 18-19 anos, vim viver com a minha mãe. Comecei a vir para os fados. E apareceu a oportunidade de vir para o NóNó, depois para o Faia. Entretanto, fazia férias destes e daqueles, folgas noutras casas, até que aparece a oportunidade de ir para o Marquês da Sé - a casa da Alexandra. Andei sempre aos saltos.
Dá para viver a fazer noites de fado? Paga-se bem?
_Sim. É uma vida como um português normal. Uma vida em que se ganha relativamente bem. Quer dizer, não são ordenados de milhares de euros, mas é um ordenado coerente com aquilo que se faz. Consoante vamos crescendo como artistas, somos remunerados... Às vezes, mais importante do que o dinheiro são as condições que nos dão para trabalhar. Na maioria das vezes, as casas são frequentadas por turistas e os turistas não sabem que aquilo é música ao vivo. Ou seja, as pessoas estão habituadas a ter um senhor a tocar piano num restaurante. Eu, porque canto, deixo de comer ou de fazer barulho. Fico a ouvir. E quando ele acaba, às vezes fico sozinho a bater palmas. Não sou mais nem menos do que ninguém. Mas é a minha sensibilidade e o respeito pela pessoa que ali está. É uma coisa que abomino, a música de fundo.
Nota diferença na reação das pessoas nas casas de fado, nos últimos tempos, até os turistas?
_Sim, noto. Há cada vez mais cuidado e respeito pelo que estamos ali a fazer.
Quando é que começou a estudar o fado a sério?
_Eu nunca estudei o fado. Sempre fui um amante do fado. Sempre me interessou aprofundar isto, mas não foi como objeto de estudo. Eu não tenho estudos para ser estudioso.
Mas foi investigar?
_Exato. Para poder saber mais. Por uma questão de coerência e lógica artística. Para perceber os limites. Para perceber que se eles não foram por esta rua, qual foi o motivo. Porque é que isto morreu ali e ninguém pegou. Saber quem é o autor disto e daquilo, a história.
Acha que faz falta uma escola de fado?
_Uma escola não será, mas é importante uma grande base de dados. E gente capaz de transmitir. Ou seja, uma organização, organizar isto. E ter tudo documentado. O museu já vai fazendo isso, bem como outras instituições. Porque, depois, as escolas são as casas de fado - esta convivência com os mais velhos. É os novos virem às casas de fado e falarem com António Rocha, com a Anita Guerreiro, com a Beatriz da Conceição... Eles ouvirem-nos e alguém dizer «menino, não faça isto que não está bem». Ou seja, limar os pormenores.
Fizeram isso consigo muitas vezes?
_Então não? Ainda hoje fazem, felizmente. Hoje já não tanto, graças a Deus, porque não sou burro. Mas, às vezes, o Rocha ainda faz. E tive essa sorte, com o Zé Inácio, com o Fernando Maurício, com a tia Argentina Santos, com a Beatriz da Conceição.
E hoje faz isso a outros, apesar da sua tenra idade?
_Faço a quem me merece e às pessoas que se interessam sobre isso que me perguntem.
Este boom de fadistas, que é quase uma moda, quais são os efeitos que isso tem?
_Eu gostaria muito de responder aquilo que me vai na alma, mas não posso.
Porquê?
_Não posso, não tenho esse direito. É muito difícil nesta tal sociedade, de consumo, rapidez, individualismo... Não sei para onde nos leva. Há muita coisa que não está bem, que não deveria ser assim, mas quem sou eu?
Vê o seu futuro a deixar as casas de fado e estar só nos palcos?
_Eu não posso ser cínico ao ponto de dizer que não tenho essa vontade, porque já trabalho há muito tempo nas casas de fado. Odeio o ritmo, odeio cair sempre na mesma coisa, começo a ficar impaciente, irritado comigo mesmo. Mas reconheço que se de hoje para amanhã deixar de cantar nas casas de fado e for para os palcos, garanto que uma ou duas vezes por semana vou cantar a uma casa de fados, porque não posso estar sem aquilo. Porque não quero estar sem as pessoas, estar sem praticar, porque não quero estar sem conviver.
O microfone faz diferença?
_Não. O microfone é mais fácil por um lado, difícil por outro.
Qual foi o primeiro palco grande que pisou?
_Foi o Teatro Maria Matos, nos programas da Rádio Voz de Lisboa.
Tinha público?
_Sim. Era transmitido em direto para a rádio. Era um programa de um locutor chamado Fernando Almeida e era o Lugar aos Novos. E havia ainda pessoas que estavam a assistir. Sempre cheio, todas as manhãs, o Teatro Maria Matos. Foram anos e esse foi o primeiro grande palco que pisei.
Há ainda algumas sensações que se repetem?
_Sim. Os nervos, a exigência, as preocupações. Mas depois da segunda cantiga, esquece-se tudo.
Ainda fica sem dormir antes de um espetáculo?
_Eu tenho problemas com o sono, com ou sem espetáculo. Agora temos o CCB aí à porta, para apresentar o Largo da Memória e a Casa da Música, portanto, as preocupações são muitas porque quero que tudo corra bem. Quero divertir e fazer bem às pessoas através da música, através do fado.
Os seus discos são solitários? São escritos e pensados por si? São como se fossem livros?
_São. Os discos representam sempre fases da minha vida e contam histórias que já vivi ou que estou a viver na altura. Sempre. É isso que a música me faz. Quando faço um disco faço-o porque vivo uma época que tem histórias que preciso de as dizer a alguém ou a muita gente. Que preciso de desabafar aquilo que ali está, seja pelo lado triste, seja pelo lado alegre. São os meus sentimentos, as coisas de que quero falar. Por isso canto um poema do século xi, por isso canto Afonso Lopes Vieira, Pedro Homem de Melo, David Manuel Ferreira, nas suas sensibilidades e mensagens inerentes.
Porque é que o disco se chama Largo da Memória?
_Porque temos de ter memória. Hoje em dia, os homens estão com memória de peixe, de oito segundos. É curioso. Temos de olhar um pouco para trás e perceber que somos portugueses, que temos um país e uma cultura assustadoramente interessante - ao nível da gastronomia, música, etc.
E a sua memória é espetacular...
_É grande, grande. Graças a Deus!
Este disco foi pensado muito aqui ao lado - a entrevista decorre no Solar do Vinho do Porto - no Jardim de São Pedro de Alcântara...
_Passei muitos dias aqui, de novembro até fevereiro, quase março de 2013. Ia trabalhar no Café Luso e chegava cedo por causa do estacionamento. E vinha para aqui, sentava--me a ouvir música no iPod. Às vezes só a ouvir e a ver a paisagem. E fui buscando memórias, vendo o que amava e não amava, fui bebendo inspiração. Estas árvores são muito curiosas porque, durante o inverno, parecem aquele quadro do Van Gogh. Não estou armado em inteletual, mas é assim. Ainda hoje fico extasiado a olhar para as árvores no inverno, quando ficam nuas. Aquele castelo dos mouros, as influências daqui e dacolá. A cor, a luz. E depois ouvia a Toada de Portalegre: «Quem desespera dos homens/Se a alma lhe não secou/A tudo transfere a esperança/Que a humanidade frustrou:/ E é capaz de amar as plantas/ De esperar nos animais/ De humanizar coisas brutas/ E ter criancices tais,/ Tais e tantas!/Que será bom ter pudor/De as contar seja a quem for!»
O espetáculo no CCB vai ser decalcado do disco?
_Exatamente. Vai ter os músicos convidados que o disco tem. Vamos atravessar toda essa memória, das pessoas, das várias mensagens.
Como é que os fados iam aparecendo?
_Pela sua componente poética. Para alguns fiz pesquisa, outros saíram da minha cabeça porque já me lembrava deles, outros porque precisava de os cantar,
Foi assim desde o primeiro disco?
_Não, não. O primeiro disco da Companhia Nacional de Música foi uma coisa... Também tinha 17 anos e ainda andava à procura de mim, como hoje ainda ando, graças a Deus. Cantava muito alto. Queria mostrar às pessoas. Ainda andava aos gritos, a dizer que tinha muita voz e muitos recursos. Sabia lá o que eram recursos.
Isso teve que ver com ser o início da carreira?
_Sim, porque ainda andava muito disperso, não sabia muito bem para que lado me virar.
Viveu toda a vida neste meio: o mundo do fado não chega a ser pequeno de mais?
_Ele é pequeno...
É sufocante, deixa respirar?
_Deixa. No fundo, isto é uma família. Todos nos conhecemos. É como o país. É um meio no qual todos se conhecem e tudo se sabe. Mas não é sufocante. Isto depois tem uma coisa engraçada, que são as ilhas de cada um, em que cada um faz parte. Tem várias maneiras de estar. Viver não custa, custa é saber viver. No fundo, isto é uma família grande com as coisas boas e más que as famílias têm.
Como é que o fado determinou a sua visão do mundo?
_Não foi o fado, mas sim as letras do fado. Ajudam muito porque são... «Feliz do povo / Que para a vida ser bela / Basta uma quadra singela / Que lhe fale ao coração/ Feliz do povo / Pois é feliz com certeza / Quem fez da própria tristeza / Desde há muito uma canção.» Isto é uma maneira de ver o mundo, como há outras. «Vou de loucura em loucura / Como quem anda à procura / De uma constante ilusão / Velho sonho em que persigo / Uma voz um rosto amigo / Perdido na multidão.» Não se aprende com isto? Claro que se aprende. Se ouvirmos as letras do fado começamos a ter algum discernimento, é uma forma de nos enriquecermos inteletualmente. E da maneira como vemos o mundo, da maneira como vemos, inclusive, as pessoas.
É orgulhoso, é resignado, é triste?
_Isso tem que ver com cada pessoa. Comigo não é triste nem alegre. É uma questão de lucidez. Tenho a minha maneira de estar, o meu feitio, o meu temperamento, isso ajuda-me. Lá está, o poema de Kipling «...Se vais faminto e nu/ Trilhando sem revolta um rumo solitário...» Eu vivo a minha vida da minha forma, com os meus amigos e das pessoas de quem gosto. A fazer a minha vida na esperança de, um dia, tornar-me na minha própria obra. E de me tornar na minha própria mensagem. Até agora ainda sou mensageiro. Deus queira...
Como é que vê o futuro do fado?
_Não tenho resposta para essa pergunta. Por ser uma expressão popular, cada um tem o seu fado. Esta sociedade está em mudança profunda, em muitas áreas. O fado também vai mudar. Para onde, não o sei.
Como é que tem mudado?
_Tem mudado com a sociedade, com as exigências da economia, das indústrias, das estéticas. Em muitos aspetos, tem mudado em coisas boas - têm aparecido muitas coisas interessantes, outras nem por isso, com falta de honestidade.
Mas também tem havido a mudança de mais gente gostar do que é mais tradicional.
_Graças a Deus. É uma das coisas que a mim me vai reconfortando e dando alento para continuar a fazer isto desta forma. Cada vez será mais importante, se as pessoas não estiverem interessadas a comer gato por lebre. Consomem o que querem, mas é importante que se comece a alertar, até as crianças, porque isto é uma tradição. É uma coisa rica. Portuguesa e lisboeta. Que tem uma identidade. Nós somos portugueses. É importante não perder identidade nem portugalidade. Não tenho complexo nenhum em ser português. Nós estamos constantemente a ser invadidos por música que não é nossa, que não tem nada que ver connosco. Se não temos cuidado, qualquer dia...
Não vai cantar nunca em inglês?
_Não, porque é uma roupa que não me fica bem. Não digo «nunca». Mas se fizer é pontual e subtilmente. Não me identi-fico com o inglês. Já podia ter aprendido a falar, mas não me identifico. No entanto, sei falar bem italiano e já me debruço sobre o árabe.