Equador: dez anos depois
Tudo sobre o bestseller de Miguel Sousa Tavares, que transformou o jornalista em escritor e está a comemorar dez anos de publicação, quatrocentos mil exemplares depois.
Entre os romances que marcaram a literatura nacional na primeira década deste século, está sem dúvida Equador, de Miguel Sousa Tavares. Um livro de quinhentas páginas num cenário histórico do fim da monarquia e atravessado por uma paixão avassaladora vivida em São Tomé, entre escravos e senhores, com uma intriga política que seduziu quatrocentos mil leitores que compraram o livro e centenas de milhares que partilharam a sua leitura. É dos poucos romances contemporâneos que não ficaram esquecidos ao fim de alguns anos, contando já com mais de 35 reedições e tendo marcado a edição nacional pelo lado da conquista de leitores.
Neste ano que agora termina, Miguel Sousa Tavares celebrou a primeira década de Equador, um romance que naquele distante verão de 2003 todos levavam para ler na praia e que o boca a boca da opinião dos leitores transformou em bestseller. Garante o autor que nunca imaginou que ao fim de tanto tempo o livro continuasse a vender, nem que ao fim do primeiro ano tivesse vendido já cem mil exemplares. «Achei que tínhamos esgotado o mercado e que não havia mais leitores em Portugal para o Equador. Só que desde então tem sido sempre surpreendente e ainda hoje vende dois ou três mil exemplares por ano.»
Pela crítica literária, Equador não foi assim tão lido, ou pelo menos referido, e poucos lhe deram a importância que os leitores portugueses lhe concederam. Só com o seu segundo romance, Rio das Flores, é que Miguel Sousa Tavares teve direito a recensões, mesmo que enviesadas, como a que, na opinião do autor, foi encomendada a Vasco Pulido Valente, com o propósito de destruir o livro. Dez anos depois, recorda esse escrutínio. «Encontrámo-nos por acaso e a Constança Cunha e Sá entreviu a hipótese de uma reconciliação. Eu disse-lhe simplesmente: "Foste uma vingança pessoal contra mim do José Manuel Fernandes [então diretor do Público] pelo facto de ter deixado de escrever no jornal." E foi isso. Creio que ele nem se apercebeu para o que servira.»
Entre as muitas histórias que a história de Equador contém está uma com Chico Buarque que Miguel Sousa Tavares recorda. «Tenho a mania de investigar muito e uma vez estava num debate com o Chico Buarque e disse-lhe que o Budapeste foi o livro dele de que mais gostei. Confessei-lhe que era extraordinário que uma pessoa que nunca tinha estado numa cidade, como era o caso, conseguisse escrever um romance sobre ela com tantos detalhes. Ele respondeu-me assim: "Pois eu já sei que você é o contrário e tem de ir aos sítios para escrever. Você foi ao século XIX para escrever o Equador?"» Não foi, mas o hábito da pesquisa continua e ainda agora o escritor anda em viagem para observar os cenários do seu próximo romance: «Estou a trabalhar num romance histórico, um género ao qual eu jurara jamais voltar mas não cumpri.»
Desta vez Miguel não vai congelar a vida como fez no início deste século, quando interrompeu todos os compromissos durante dois anos - com exceção da coluna desportiva para o jornal A Bola. Explica que desconhecia a dimensão do esforço que Equador iria exigir-lhe. «A solução foi suspender todas as colaborações e tarefas para me concentrar num projeto tão fora de todo o meu contexto de vida e não permitir que nada me distraísse. Foram dois anos só a escrever.» No entretanto, foi apanhado pelo bloqueio da página em branco e esteve oito meses sem conseguir escrever uma linha. Uma entre muitas histórias que o autor recorda à Notícias Magazine dez anos depois de inventar o romance mais vendido da literatura contemporânea portuguesa, um livro do qual até foi moda dizer que não se tinha lido para não pertencer à maioria.
ORIGEM
«Quando fui a São Tomé fazer uma reportagem fiquei fascinado com o ambiente e imaginei facilmente que ali tivesse acontecido a história do Equador. Comecei a ler sobre São Tomé e a economia das roças, percebi que tinha havido uma questão em torno da escravatura e entendi que existia um enredo político que poderia situar-se ali, a par de uma intriga política e amorosa. Ou seja, vi que tinha matéria para um bom romance se soubesse controlar a mão que escrevia.»
TÍTULO
«Gosto de títulos curtos e achei que a sua ambiguidade tinha graça, daí que já antes de começar a escrever tivesse o título. Todas as traduções o utilizaram à exceção dos alemães, que o adaptaram para No Equador, e dos espanhóis que o mudaram de forma idiota para El Governador porque, diziam, no país o associavam aos muitos emigrantes do Equador.»
PRÉMIOS
«Estranhamente, o livro só recebeu um prémio e em Itália. Esperava que tivesse recebido outros cá em Portugal, mas essa é uma longa história pois no ano em que o Equador foi publicado nenhum dos autores consagrados tinha publicado e até o Grande Prémio do Romance da APE foi dado a Mafalda Ivo Cruz, com um livro chamado Vermelho, sobre o qual o Eduardo Prado Coelho escreveu uma coisa que nunca mais esqueci: «Concordo que as primeiras cem páginas do livro são ilegíveis, mas a partir daí é um bom livro.» Ou seja, foi feito um esforço notável para não me darem um prémio, nem sequer o de Literatura da Baixa da Banheira. Parece que um livro que vende bem não pode ganhar prémios.»
LEITORES
«A má vontade da crítica foi claramente compensada pelos leitores. Aprendi logo aí que havia uma incompatibilidade entre ser premiado pela crítica ou ser recompensado pelos leitores.»
EDITORES
«O Equador marca uma transformação e mostra que há leitores em Portugal. Quando me entrevistaram ao fim de um ano e dos primeiros cem mil exemplares vendidos, disse que não sabia se tinha prestado um serviço à literatura mas que o tinha feito à leitura. Mudaram muitas coisas e os editores perceberam que havia mercado para livros se as apostas não estivessem erradas.»
SÃO TOMÉ
« Fui lá duas vezes antes e uma depois de publicar o livro. Esta última foi uma viagem extraordinária porque a comunidade portuguesa convidou-me e até estive com o presidente, Fradique Mendes, num banquete num antigo forte português que foi reaberto de propósito. Também recriaram a cervejaria que está na capa do livro, que apesar de fechada há quarenta anos se mantém igual, e tinha atores a fingir que estavam em atividade.»
AUTÓGRAFOS
«Faço poucas sessões de autógrafos. Não ando a correr o país como fazem hoje muitos autores consagrados, que vão a todo o lado num trabalho incansável de divulgação dos seus livros. No meu caso considero mais útil ir falar dos meus livros infantis a escolas, porque é importante para os miúdos e para os professores.»
ERROS
«O Equador foi muitíssimo revisto mas era o meu primeiro romance. Não deve haver um livro sem erros mas no meu caso houve um trivial pursuit do Equador, diria mesmo uma caça ao erro que se tornou um desporto. Alertaram-me para factos como o de não haver água tónica em 1908, que o cavalo em que o rei D. Carlos ia à caça era outro, o que aceitei com a maior das naturalidades. Na segunda edição corrigi muitos erros, havendo um notável e que passou a toda a gente, tendo sido eu a dar por ele já na quinta edição: trocaram Colombo por Cortés na descoberta da América. Fui ver o original no computador e o erro não estava lá.»
EÇA
«Não gostei que dissessem que o livro retomava o género literário do Eça de Queirós porque acho que não corresponde à realidade. Era um facilitismo em relação ao livro porque o que acontece é que o romance começa com a descrição do ambiente lisboeta dessa altura - o Equador passa-se 25 anos depois de Os Maias - e a sociedade não tinha mudado muito. Daí a catalogar o livro como uma coisa queirosiana foi um passo, mal dado aliás. Isso também aconteceu no Brasil, onde há o culto do Eça, mas aí compreende-se porque muitos dos leitores brasileiros saltaram diretamente de Os Maias para o Equador e acharam que era mais do mesmo.»
PLÁGIO
«Foi uma acusação de autoria de um escritor e jornalista falhado, que reúne por isso as qualificações para o que fez. Fiz uma queixa na procuradoria contra o autor do blogue e aconteceu aquilo que acontece sempre com a nossa justiça. Notificaram a Google e os americanos, que espiam até as conversas da Merkel na casa de banho com o marido, responderam que estava protegido pela Quinta Emenda. Não ganhei a ação contra o tipo que lançou essa calúnia mas sim contra a revista Focus, que a divulgou em termos que o tribunal considerou como de ter aderido.»
PIRATARIA
«Colocam versões do livro na internet de propósito para baixar as vendas, por isso tenho um processo de crime a decorrer contra um grupo de pessoas que o fez organizadamente. Houve um professor que até disse "vamos fazer download de todos livros do Miguel para evitar que ele venda". Falta marcar o julgamento porque o juiz viu que o assunto era grave e envolvia pirataria de direitos de autor.»
SÉRIE
«Quando acabei de escrever o Equador já pensava que era cinematográfico. Fez-se a série e, quanto a um filme, já tive várias abordagens mas nada de concreto avançou. Até porque enquanto o livro não sair nos Estados Unidos será difícil e como os direitos foram comprados para toda a língua inglesa pela Random House, que é uma grande editora mas canibal, enquanto não trabalharem o livro nada feito.»
TRADUÇÕES
«A única que acompanhei mais foi a italiana, pela Romana Petri, de que gostei muito. Também aprecio muito a francesa. No Brasil, não há adaptações. Ao todo, deve estar traduzido em 13 ou 14 línguas e em mais de trinta países.»
ENREDO
«Tem o enredo perfeito: paixão, sexo, história, ambiente... Quando comecei a escrever tinha o romance todo e tudo decidido na cabeça. Como nunca tinha escrito, nem sabia qual era o melhor método, segui a fórmula mais elementar: escrever da primeira para a última página.»
PERSONAGENS
«Às vezes as personagens fogem, entram outras com que não se contava, desaparece uma em que se apostava mais. A Maria Augusta foi uma personagem que ganhou muito mais força do que estava à espera e estive quase tentado ainda a dar-lhe muito mais força. Só que isso teria prolongado o livro e não iria cumprir o guião capítulo a capítulo como decidira.»
ATRIZES
«Na série da televisão, eu queria a Alexandra Lencastre para personagem principal mas na TVI acharam que não e optaram pela Maria João Bastos. Que é uma ótima atriz e desembaraçou-se muito bem num guião que não era muito fácil. Continuo a achar que a Alexandra Lencastre era a pessoa adequada para o papel.»
AUTOBIOGRÁFICO
«Nada, nada mesmo. Podem existir coisas que correspondem a gostos e hábitos meus. Na altura, como ouvia muito ópera pus o governador a ouvir ópera todas as noites. Mas não posso dizer que isso seja autobiográfico.»
BLOQUEIO
«Os editores António Lobato Faria e Gonçalo Bulhosa tiveram um papel importante para que escrevesse o livro, sobretudo aquando do tão falado bloqueio do escritor. Bloqueei durante oito meses e achei que não era capaz de acabar, mesmo que tivesse já feito umas trezentas páginas. Eles nunca me pressionaram, disseram que ia haver um dia em que seria capaz de voltar a a escrever devagarinho e sem preocupação. De facto, foi o que aconteceu.»
INVESTIGAÇÃO
«Tive o apoio da Ana Cifuentes, que também foi a São Tomé pesquisar e desencantou imensas coisas. Não posso dizer que essa parte tenha sido complicada, mesmo que se tenha sempre a noção de que faltam coisas. Mas, hoje, não faria diferente. A grande asneira que fiz a seguir, no Rio das Flores, foi ter-me concentrado de tal maneira na investigação que se tornou uma obsessão. Li tanto que me dispersava e perguntava-me até onde é que queria chegar. De tanto investigar, tive a sensação de que podia ter cortado muitas partes mas não consegui porque só pensava "isto deu-me tanto trabalho a pesquisar que eu tenho de utilizar".»
HISTÓRIA
«A nossa história não é como a de países novos como os Estados Unidos, os latino-americanos ou o Brasil, mas tem enredos interessantes e o romance histórico é uma grande maneira de chegar ao passado e de levar a história a muitos mais destinatários.»
DECISÃO
«Estive dez anos a pensar no Equador... Fosse por herança familiar literária, por um lado, por causa do estigma de ser jornalista que se quer transformar em escritor, ou por sincera ignorância sobre se tinha ou não capacidade para escrever, precisei de estar muito convencido de que era capaz até correr o risco de começar o romance. Sempre recusei um adiantamento para escrever para ficar de mãos livres e poder dizer não. Se uma pessoa está endividada e já recebeu um adiantamento, acaba por escrever qualquer coisa. Preferi correr o risco de abandonar o que fazia no dia a dia para me concentrar apenas em escrever porque, como se diz na caça, é uma lebre que precisava de ser corrida.»
MÃE
«Ela não leu o livro mas assistiu a grande parte da escrita. Eu ia-lhe contando a história toda, ela ia seguindo, e estava ansiosa por ler. Leu os dois primeiros capítulos e dizia que adorava, que gostava do que eu escrevia.»
INVEJA
«Não sei... Tive reações muito boas como a do Vasco Graça Moura... Bem, só me lembro mesmo da do Vasco Graça Moura...»
IMAGEM
«Não gostei de ver os bonecos com a minha imagem, sobretudo não gostava deles nas traseiras dos autocarros. O que me fazia mais impressão era ir a guiar e "olha, sou eu". Os editores têm a sua estratégia de marketing e, mesmo dando-me sempre conta, muitas vezes tiveram de me convencer de coisas de que não gostava.»
ASSINATURA
«O que disse às editores sobre a tiragem inicial de trinta mil exemplares era que a minha assinatura valia esse número. Daí para cima, era ganho adquirido pelo próprio livro.»
LEYA
«Denunciei os meus contratos com o Grupo Leya, o que não quer dizer que já tenha saído da editora porque há alguns que ainda estão em vigor até 2016. O que acabou por contrato passou a ser editado pelo Clube do Autor.»
CONTINUAÇÃO
«Se dependesse de mim, sim. Como acho que o mercado está muito confuso, não sei o futuro. Assim como há dez anos o mercado estava maduro para uma coisa como o Equador, neste momento estará para outra coisa. Que eu não estou a ver qual seja e que não serei eu a fazer.»
DINHEIRO
«Não sei quanto é que o Equador me rendeu, mas posso dizer que paguei a minha casa do Alentejo com o romance.»