A vida eletrónica dos desempregados
Há 930 mil portugueses sem emprego, 16,9 por cento da população ativa do país. Há quem deprima, há quem fuja para a frente, há quem emigre. E há quem crie blogues na internet, para fazer uma espécie de catarse do mau momento que se vive.
Graziela Costa tem 25 anos, é licenciada em Novas Tecnologias da Comunicação, tem um mestrado em Audiovisual e Multimédia e ainda um curso de fotografia. Está desempregada. Chega ao café onde ficou marcado o encontro, senta-se e à pergunta «quer tomar alguma coisa?» responde que não pode. «Um café é um luxo a que não me permito nos dias que correm.» Oferecemos-lhe, naturalmente, o café.
Não tem trabalho há mais de um ano. Antes disso, também não viveu grandes alegrias. Foi estagiária no jornal Mundo Universitário , onde ganhava 250 euros de subsídio de alimentação, e trabalhou num outro grupo de comunicação a ganhar 445 euros por mês. Nessa altura, acumulava esses dois trabalhos e o mestrado. Poupou muito. Foi o que lhe valeu. Em junho de 2011 ficou sem o estágio e sem o trabalho.
Hoje vive de tarefas pontuais que vai aceitando. Já foi promotora em supermercados, no Natal passado fotografou crianças no Centro Comercial Colombo. Responde a anúncios, envia currículos, vasculha tudo à procura de emprego. E criou o blogue VIDADEDESEMPREGADA.BLOGS.SAPO.PT. Para desabafar? Para não se sentir tão sozinha? Nem por isso. «Para partilhar esta "arte" de encontrar borlas e explicar a toda a gente como se faz.»
Graziela vive em Alvalade, Lisboa, numa casa pequenina. Um achado - mais um - em termos de preço. Conheceu o namorado, João, num concerto gratuito. O estudante de Engenharia Eletrotécnica («ele vai ter emprego, seguramente») acha graça à febre dela pelas borlas e também vai aproveitando: «No outro dia consegui, na Companhia das Sandes, um cachorro grátis. Fomos jantar fora! Mas ele é um sortudo. Bebe um leite UCAL todas as noites. Aquilo custa 2,50 euros!»
«O que mais me custa é responder a anúncios e não dizer que tenho o mestrado. No outro dia respondi a um anúncio para ser caixa de supermercado e fui aconselhada a não pôr o mestrado nas habilitações. Custa-me muito porque, na altura em que o fiz, tinha dois empregos em simultâneo. Saiu-me do pelo. E agora... parece que é uma vergonha, em vez de um orgulho.»
CATARINA BEATO
ENTRE OS TOSTÕES CONTADOS E AS COISAS SEM PREÇO
DIASDEUMAPRINCESA.BLOGSPOT.COM
Catarina Beato tem 34 anos e uma vida cheia. Já trabalhou, já deixou de trabalhar, já voltou ao ativo, já «desativou» novamente. Profissional e emocionalmente, não se pode queixar de monotonia.
Quando criou o blogue, tinha vontade de desabafar. É assim que muitos destes «diários online » começam. Como uma espécie de grito. O dela saiu-lhe assim, em março de 2005: «Prostituta. É um facto. Sou uma inútil. Não faço rigorosamente nada. Ser dondoca da classe média tem um curto prazo de validade. É preciso dinheiro para poder não fazer nada. "Não fazer nada" não dá dinheiro. Conclusão: tenho de fazer alguma coisa. Vender a minha capacidade produtiva. Prostituir-me.»
Hoje, ri-se do melodramatismo. Já lá vão oito anos. «O blogue nasceu numa altura de insatisfação profissional. O meu pai tinha falecido, eu deixei o jornalismo para criar uma empresa que deu para o torto e estava frustrada e a sentir que tinha falhado. Foi então que voltei para o jornalismo.» Catarina era mãe solteira do G., trabalhava desenfreadamente e ganhava mal, mas sentia-se realizada. Três anos e picos depois, saiu do jornal por convite da Inteli, para fazer trabalho de comunicação. «Ao fim de um mês percebi que aquilo tinha uma vertente política brutal e não era para mim. E prometi que ia ser a criatura mais poupada de sempre. Ganhava o dobro e guardava metade. Em janeiro de 2010 saí com algum dinheiro e nunca gastei o subsídio de desemprego.»
Está desempregada há dois anos e meio. Quando faltava muito pouco para o subsídio acabar, engravidou novamente. Um susto, até porque cedo percebeu que ia continuar a ser mãe solteira, que o novo pai da nova criança não era, ainda, o príncipe encantado. Mesmo assim, decidiu ir em frente com a gravidez. «O meu filho G. andava sempre a pedir um irmão. E eu queria ter mais um filho. A gente passa a vida a adiar coisas por achar que não está na situação ideal... eu tinha 30 anos e pensei: "Se calhar se não é agora não é nunca mais. Seja!"»
Hoje o filho mais novo tem quase dois anos, o mais velho 10 , ela continua desempregada a escrever sempre que aparece uma oportunidade. Tem há uns meses uma rubrica semanal no Dinheiro Vivo [suplemento de sábado do Diário de Notícias e Jornal de Notícias ] chamada «Crónicas de uma desempregada». Hoje, o blogue é um relato apaixonado e apaixonante de uma mulher e os seus dois amores, filho grande e filho pequeno, a viver numa casa charmosa em Campo de Ourique. Uma mulher com os sentimentos à flor da pele, que vive contando os tostões, numa ginástica relatada em textos divertidos que fazem pensar que não é preciso assim tanto para se ser feliz: «Não tenho gastos com o mais velho. A minha mãe paga metade do colégio e a roupa, a outra avó paga a outra metade e também dá roupa. O pai do G. paga o ATL. Não gasto um tostão com ele. Pago esta casa com o dinheiro da renda da outra, que tinha comprado há uns anos e que tenho arrendada. Quando é preciso brinquedos vou às poupanças. E depois vendo tudo. A casa é pequena, tenho coisas a mais. Nada como o Custo Justo ou o OLX ou feiras de segunda mão. Ainda agora vendi uma almofada antirrefluxo, que era do A., por trinta euros. Deu para encher o depósito. E é assim que vivemos.»
Entre pagar um infantário ao A. (porque das instituições particulares de solidariedade social não tem resposta) e ficar com ele em casa, opta por ficar com ele. «As creches custam todas quatrocentos euros e eu teria de ganhar pelo menos oitocentos. Não saindo de casa gasta-se menos. Estou desempregada mas isso permite-me ver o filho A. crescer todos os dias. Permite-me ir buscar o filho grande ao colégio e estudar com ele. É indescritível a proximidade que temos e isso não tem preço.»
ANA ALMEIDA
ENCARAR O DESEMPREGO E DAR A VOLTA POR CIMA
OFICIALMENTEDESEMPREGADA.BLOGS.SAPO.PT
«O nome do blogue foi um grito. Foi assumir de uma vez por todas, para mim mesma e para os outros, a minha situação. Quando fiquei desempregada levei muito tempo a acreditar que aquilo me estava a acontecer. Depois veio a vergonha. Finalmente, caiu-me a ficha. "Sim, isto aconteceu-me realmente a mim."» Ana Cunha Almeida, 37 anos, jornalista, trabalhava no Diário Económico (DE) . Quando lhe comunicaram que ia ser dispensada largou a rir, tal era a distância a que estava de se imaginar nessa situação.
E nem o facto de se ter tratado de despedimento coletivo lhe trouxe consolo. «Tenho-me em muito boa conta, tenho noção do que valho e, por isso, não fiquei mais reconfortada por seremos muitos. Estava no DE há 14 anos e nunca tive um único sinal de descontentamento com o meu trabalho. Tinha um cargo de coordenação e tudo parecia bem.»
Incrédula, saiu da empresa em julho de 2012. Entrou em férias, procurou não pensar muito no assunto, assobiou para o ar, talvez continuasse em choque . Mas, em setembro, percebeu que todos tinham para onde voltar e ela não. «As minhas filhas tinham a escola, o meu marido e toda a gente à volta tinham o trabalho. Eu... não tinha nada. E foi aí que começou a fase da vergonha. Encontrava os pais dos coleguinhas das minhas filhas e eles perguntavam: "Ainda de férias?" E custava-me dizer que estava desempregada. Como se fosse um atestado de uma incompetência que me recuso a assumir, por não ser verdade. Durante quase dois meses era incapaz de dizer que estava desempregada.»
O desemprego faz mossa. «Há amigos que descobres que não são amigos. Porque tu interessas enquanto és a jornalista, a coordenadora. Enquanto desempenhas aquele papel social. Se deixas de o desempenhar, deixas de interessar. Há surpresas incríveis. É todo um processo psicológico por que é preciso passar.»
Foi então que decidiu criar o blogue. Porque gosta de escrever, porque não quer ficar parada nem «perder a mão», porque precisa de continuar a existir enquanto escriba, porque sentiu que também poderia servir como catarse. «Criei-o em meados de setembro. Para mim. Como um diário mas sem obrigação de escrever dia a dia. Escrevo quando me apetece. E, de repente, comecei a ter uns comentários tão positivos que me souberam muito bem. E senti que não estou sozinha, que há mais gente - tanta gente! - na mesma situação. E se conseguir ajudar essas pessoas com o meu otimismo... perfeito.»
Ana Cunha Almeida está desempregada mas acredita que alguma coisa surgirá, deste nada que surgiu. E não quer sujeitar-se a qualquer coisa. Talvez porque, pelo menos para já, não precise de aceitar qualquer coisa. Não se sente, pelo menos para já, desesperada: «Vejo sites de emprego e acho que aquilo não é para mim. Tudo tão precário, tão aldrabice, tão desinteressante. Deprime e eu decidi que não ia ficar deprimida.» Até porque, mesmo sendo uma situação negativa, o desemprego tem-lhe trazido coisas boas. Tempo para ir buscar as filhas, para lhes dar banho sem gritos e sem pressas, para cozinhar, para a família, para pensar e para estar consigo própria. «Embora não seja isto que quero para mim, estou feliz. Ainda bem que sou mãe porque também me obriga a reagir, por elas. Além disso, a maternidade é uma rotina que toma muito tempo.»
Foi como se nascesse outra vez. «Tinha-me esquecido um bocado de quem eu era. Há oito anos que eu era coordenadora, que vestia aquela pele e andava sempre atarefada, em entrevistas, reuniões, stresses vários. De repente, até tenho disponibilidade para mim.»
AMÉRICO COUTINHO
UM MUNDO VIRTUAL PARA AGITAR O MUNDO REAL
CRIME-DESEMPREGADO.BLOGSPOT.PT
O blogue de Américo Coutinho, 56 anos, é um grito de raiva. Uma raiva que não lhe cabe dentro do peito e que lhe sai pelos dedos fora, em cada texto.
Américo vive em Condeixa-a-Nova (Coimbra) e está desempregado desde maio de 2011. Era técnico de eletrónica numa empresa em Sintra que, depois de ter sido vendida a uma multinacional, despediu dois terços dos funcionários. «Ninguém espera ser despedido antes de o ser, sobretudo menos de um mês depois de lhe terem sido atribuídos 87 por cento na avaliação de desempenho e de três anos a duzentos quilómetros de casa e da família. Fui designado de "camaleão" por supostamente conseguir fazer bem tudo o que me pediam. Uma semana depois, o mesmo que me chamou de camaleão... despediu-me. Isto pode dar ganas de fazer muita coisa. Talvez bater em alguém... a mim deu-me para escrever um blogue!»
O blogue serve como uma espécie de muro de lamentações. As suas e as de outros colegas que sofrem dores parecidas. Uns porque também saíram, sem que o pudessem prever, outros porque se mantêm por lá, a duras penas. «O blogue acaba por ser um eco dos corredores da firma. Lá, as conversas têm-se em segredo porque predomina a lei da rolha e as reuniões gerais mais não são que monólogos. No meu blogue essas conversas ganham voz alta e força.»
O blogue serve também para descrever a «descida aos infernos» que tem sido a sua situação de desempregado: «Histórias no centro de emprego, as entrevistas, as ofertas de ordenados indignos e impensáveis... tudo isso quis relatar, para memória futura e, até, para que pudesse ser - quem sabe - agente de mudança.»
Américo está há vinte meses a receber subsídio de desemprego, quase o máximo que é possível receber-se e, no entanto, pouco mais de metade do ordenado líquido de 2007. Cumpre a obrigação de procura ativa de emprego e candidata-se a tudo quanto lhe parece viável. Já fez novas certificações e cursos de especialização, com o intuito de melhorar o currículo e conseguir o tão almejado emprego. Foi contactado apenas três vezes. Da primeira, o currículo não se adequava às necessidades do empregador; da segunda recebeu uma nega três meses depois da entrevista; e da terceira vez foi-lhe dito que o ordenado que pedia era incomportável para a dimensão da empresa: «Vinte meses de inatividade é muito tempo para quem estava habituado a trabalhar dez horas por dia, sob stress . Mas continuo a acreditar neste país e espero que, quando isto arrancar, os primeiros a safar-se serão os mais preparados. O saber não ocupa lugar e... a esperança é a última a morrer.»