Uma primeira edição de Harry Potter e a Pedra Filosofal pode custar 5 mil euros

Almoço com Nuno Gonçalves, leiloeiro e fundador da Nova Eclética

À chegada à Mercantina do Chiado, a cinco minutos da Nova Eclética, leiloeira especializada em livros que fundou há mais de uma década, Nuno Gonçalves carrega um pequeno embrulho de papel pardo. Um presente que só será desvendado no final do nosso encontro e que até lá repousa a um canto da mesa onde já nos esperam três copos de espumante - oferta da casa, a prenunciar uma conversa diferente - e grissini para ir petiscando.

Em vésperas de juntar aos leilões presenciais os eletrónicos, que a Nova Eclética abre neste mês, Nuno tem ainda trabalho pela frente, mas não parece minimamente ansioso - a tranquilidade é-lhe tão natural quanto o entusiasmo com que fala de cada livro, como se manuseasse peças raras em cada palavra com que explica um negócio pouco conhecido mas que garante não ser tão elitista quanto se julga. Há aqui livros que custam milhares de euros, sim, mas também muitos exemplares de 15 ou 20 euros, "todos de igual importância e dignidade", sublinha o leiloeiro que tem o recorde do livro português mais caro alguma vez vendido em leilão. Há de revelar-me qual é.

Para já, escolhemos o que vamos almoçar - a foccacia pode já dar entrada - e Nuno vai revelando que poder gerir o seu tempo e viver a família mais do que se tivesse outra carreira é uma das maiores vantagens do negócio. O modelo é simples: o leiloeiro cobra comissão ao comprador e ao vendedor de cada exemplar. E o resto é uma questão de gestão. "Faço no máximo três leilões por ano, por isso trabalho e recebo ao ano. É preciso ter algum critério, estabelecer os valores mínimos corretos, para compensar. Mas se tivermos cuidado com as despesas - organizar leilões custa muito dinheiro -, temos sempre lucro. Não dá para enriquecer, mas dá para viver com dignidade", garante. E acrescenta: "Se trabalharmos de forma honesta e no que gostamos, compensa, porque é um negócio interessante e que oferece muita liberdade, e isso não tem preço. O que posso querer mais? Só uma menina!"

Serve-nos de vinho - "um branco Catarina que é uma delícia, é maravilhoso! É lá da minha terra, sabe, de Azeitão, onde vivo desde que casei" - e explica que prefere ter ali à mão os produtos regionais e a calma de alguma ruralidade que ainda existe na vizinhança. Homem de gostos simples e grande sentido de família, não hesita em dizer que casou com a mulher da sua vida - nascida exatamente na mesma cama de hospital do que ele, quatro anos mais tarde -, com quem começou a namorar aos 18 anos e de quem tem três filhos (gémeos de 11 anos e outro rapaz de 5).

Conta-me como passou de leitor apaixonado a fundador e único trabalhador de um negócio pouco comum, que vai agora ganhar outros colaboradores - incluindo a mulher, a fazer jus aos traços de empresa familiar que é a leiloeira. Mais velho de três irmãos, Nuno cresceu em Sintra, entre pilhas de livros - "antes de o pai ter o armazém, a mãe tinha de saltar por cima deles para chegar aos roupeiros", conta - e sempre acompanhou o pai, Alfredo, nessa paixão. "Lembro-me de ser miúdo e os meus irmãos irem jogar à bola e eu ficar em casa a ler as férias inteiras. Li tudo da Enid Blyton num verão!" Por coincidência, quando chegou ao 12.º ano, em 1992, o pai abriu a livraria com o mesmo nome. E como o liceu de Queluz só tinha essas aulas de noite, Nuno ofereceu-se para ajudar o pai na loja - e ainda que entretanto se tenha formado em História, descobriu logo ali a sua vocação. Havia porém algo que distinguia Alfredo e Nuno: este gostava muito mais de estudar o que tinha nas prateleiras, de descrever as obras e falar com os clientes do que de vender. E quando um cliente da livraria pediu ajuda para vender uma biblioteca privada, Nuno foi o escolhido para fazer o catálogo - parte mais importante do leilão. "Foi a minha estreia, há 15 anos: associei-me a uma leiloeira e fiz tudo com ele."

Há aqui livros que custam milhares de euros, sim, mas também muitos exemplares de 15 ou 20

Nessa época, havia algum secretismo associado aos leilões, mas entretanto, "sobretudo desde que a Christie's e a Sotheby's começaram a divulgar resultados, o mercado tornou-se muito mais transparente". Uma vantagem, garante Nuno Gonçalves, ainda que reconheça que a confiança continua a ser o maior ativo neste negócio, sobretudo agora que se abriu às plataformas digitais.

A chegada da massa (garganelli allo zafferano con cozze e asparagi verdi, escolhido mais pela presença dos espargos mas que nada deixou a desejar) e do meu lombo de atum parecem-me o momento perfeito para perguntar, afinal, quem vai a estes leilões. Haverá assim tanta gente a negociar livros, disposta a gastar milhares de euros nestas peças? Repete que o negócio não é tão elitista quanto se julga e quem ali vai são muito mais pessoas normais do que colecionadores excêntricos. "Em temas como Literatura, História, Descobrimentos, há muita gente que vai à procura de conteúdos específicos para estudo. Mas qualquer pessoa que goste de ler é um potencial colecionador: em vez de comprar um livro na livraria, procura-o aqui, numa primeira edição, e fica com uma peça que permanece valiosa", explica. E ainda que a crise possa ter trazido alguma redução ao poder de compra, "há uma grande estabilidade na procura: talvez os clientes gastem só mil euros em vez de 2 mil", mas não se perdem.

Confessa que, entre os cerca de 100 a 120 clientes que vão a cada um dos seus leilões, "há alguns que estão sempre, uma faixa mais elitista, mas também há muita gente nova. Até porque há um gosto recente na forma como muitos se relacionam com os livros antigos, um fenómeno semelhante ao que assistimos com o vinil, que leva as pessoas a interessar-se mais". E a leitura digital não está a roubar espaço? Diz que não. Que também ele se entusiasmou com Kindle e afins quando as editoras começaram a apostar mais neste formato, mas que no último par de anos o digital tem subido mas o livro físico também. A razão? "Porque em tudo o que são peças culturais tende a haver uma relação física com o objeto. É um pouco como a arte: não é o mesmo ver uma fotografia do Guernica ou o quadro real." E isto tem ajudado ao negócio: "Eu tenho uma taxa de 10% de novos clientes em todos os leilões e aparecem sobretudo pelo boca-a-boca - e as redes sociais ajudaram muito nisto, como nos ajudam no momento de catalogar os livros."

Enquanto vamos dando baixa nos pratos e no vinho, que está de facto fresco e muito bom, Nuno entusiasma-se na descrição da elaboração do catálogo de um leilão, aparentemente tão exigente quanto gratificante - mas hoje muito facilitada pelo online, que democratizou o acesso à informação, sobretudo desde que as bibliotecas públicas começaram a digitalizar-se. "Hoje é muito mais fácil perceber variantes nas edições. Por exemplo, quando Os Lusíadas foram lançados, houve duas edições logo nesse ano. São iguaizinhas, impressas com as mesmas chapas e tudo. Só que a primeira tem o pelicano virado para a esquerda e na segunda o bico está virado para a direita."

Há outros detalhes que só um olho treinado e sabedor distingue e por isso a elaboração do catálogo é tão importante - e difícil. "Quando recebemos os livros que vamos leiloar, temos de fazer a descrição de cada um, explicar a sua importância, por vezes detalhar e contar folha a folha - a falta de uma pode reduzir o preço de 100 mil euros para 20 ou 30 mil. Outra dificuldade é que há tanta diversidade que posso ter de passar da catalogação de uma obra de Natália Correia para a ficha de Os Lusíadas, de uma peça de 20 euros para uma de 100 mil."

Os artigos a leilão são disponibilizados por colecionadores que criaram bibliotecas (um conjunto de livros com um tema comum, por exemplo), "às vezes ao longo de mais de 20 anos e com custos importantes" e que, por as terem fechado (completado) ou saberem que quem os herdará um dia não lhes tem tanto amor, decidem vender a coleção a quem a valorize. E aqui o catálogo é o que fica do trabalho do bibliógrafo, a prova da sua conquista.

De resto, os leilões têm a grande vantagem de se poder fazer bom dinheiro com peças que não valeriam tanto se diretamente vendidas - basta que haja vários clientes interessados para lhe fazer subir o valor na licitação -, mas também o risco de o livro não sair ou ser vendido por uma pechincha. É essa a graça: se um livro está avaliado em 20 euros, o valor-base tem de ser bem mais baixo; o suficiente para permitir que haja licitação até atingir aquele patamar, ou excedê-lo. "É claro que em mil lotes há alguns que saem por preços mais baixos, são oportunidades, mas os que saem acima excedem e compensam os demais." E quando um livro não tem interessados? "É retirado e devolvido ao cliente, mas a minha taxa de retirados é das mais baixas, de 10%."Entre os clientes assíduos, contam-se várias câmaras municipais, a Fundação da Casa de Bragança, mas também a Biblioteca Nacional e a Torre do Tombo - estas duas com direito de preferência nos leilões, o que significa que podem comprar peças classificadas ou em vias de o serem pelo último valor licitado num leilão - o que por vezes deve resultar em clientes muito frustrados...

Seja como for, não há valores certos para um exemplar. Há demasiadas variáveis em causa, explica Nuno Gonçalves. "Uma primeira edição, com exceção de alguns nomes e até de algumas obras específicas, é acessível muitas vezes a preços mais baixos do que uma edição moderna. O Vergílio Ferreira é um caso paradigmático: grande parte dos livros dele, tirando a Manhã Submersa e a Aparição, compra-se por 20 euros. E quanto vale uma primeira edição da Mensagem, de Fernando Pessoa? Depende de muita coisa: se está em bom estado, se tem uma dedicatória... o valor pode ir de quase 0 euros (se estiver incompleta ou riscada) a 3500 ou mais. Se estiver assinada pelo dono do livro, desvaloriza para quase nada, mas se essa assinatura for, por exemplo, de Mário de Sá Carneiro, o valor pode subir aos 5 ou 6 mil."

O assunto entusiasma-o - e a minha surpresa alimenta mais um relato. Já com os pratos vazios e os cafés a caminho, fala-me de uma obra de Alexandre O"Neill que é considerada pela crítica a única verdadeiramente surrealista. "A Ampola Miraculosa tem uma imagem e dois versos por página e a primeira edição, que saiu nos cadernos surrealistas, vale uns mil euros. Eu tive um exemplar dessa peça dedicado a Simon Taylor - o tradutor do Jarry, surrealista de francês - e que incluía a tradução do texto original para francês pela mãe do próprio O"Neill; uma dedication copy, que só por esse conteúdo extraordinário fez 3500 euros." Dá um último exemplo paradigmático, para ilustrar como por vezes até uma peça recente pode valer mais do que um livro com séculos: "A coleção de Harry Potter toda em primeira edição, assinada pela JK Rowling no dia da apresentação, é coisa para chegar aos 200 mil euros; e só a Pedra Filosofal, mesmo sem autógrafo, vale uns 5 mil (a tiragem foi de apenas 3 mil exemplares, a uma dimensão universal). Por outro lado, há uns livrinhos do século XVI, guias para as celebrações pascais ou breviários, que não valem praticamente nada."

A simples falta de uma folha pode reduzir o valor de um livro de 100 mil para 20 mil euros

Somos interrompidos pela gerente do Mercantina. Indiferente à nossa recusa, traz um prato comprido onde brilham três sobremesas: "Têm de experimentar. São as nossas especialidades e são deliciosas!" Não temos como evitar, venha o abacaxi marinado com limoncello, o tiramisù e o mil-folhas a acompanhar os cafés. Quero saber qual foi a peça mais valiosa que já lhe passou pelas mãos - a tal de que me vinha falando desde o início da conversa. Nuno diz que já esteve na negociação de um Lusíadas, mas era incompleto e o tal do pelicano virado para o lado errado. Já teve em leilão uma primeira edição da Mensagem, manuscritos muito bonitos e até "um livrinho impresso cá em 1802, de um português e escrito em português, que se chamava A Arte de Voar à Maneira dos Pássaros - e as primeiras tentativas de voo de asa delta são de 1799! Tive imensa pena de não ficar com ele" (os leiloeiros estão proibidos de licitar nos seus leilões).

Mas o mais valioso de todos qual foi? "Uma peça única: a História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, do Fernão Lopes Castanheda (1500-1559). Foi a primeira vez que o vi completo - nem D. Manuel II, que tinha uma das maiores coleções de tipografia do país (está em Vila Viçosa), o tinha. Além da raridade e importância da obra, essa peça deu-me o recorde do livro português mais caro em leilão. Foi comprado por 110 mil euros e faz parte da coleção particular de um português."

Nunca chegará a estes valores nos leilões online com que agora vai completar a oferta da Nova Eclética, mas também não é esse o objetivo aqui. "Mantendo toda a qualidade e exigência que nos deram a confiança dos clientes, aqui teremos pequenos leilões temáticos de 50, 60 lotes, todas as terças, quintas e domingos e a esses poderemos levar até livros a começar nos 5 euros - cujos canais de venda têm de ser diferentes."

Já com os segundos cafés tomados, é hora de pôr fim ao encontro. E se Nuno Gonçalves não pode, apesar de todos os protestos, ficar com a conta do almoço, pelo menos pode deixar-me levar um presente para casa: o embrulho já quase esquecido, uma primeira edição d'A Madona, de Natália Correia (1968).

Mercantina Chiado

Água

Vinho Branco Catarina

Grissini

Foccacia all"olio e agli

Garganelli allo zafferano

Filetto di tonno con verdure di stagione

4 cafés

Total: 64 euros

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