"O melhor contributo do Governo para a economia é consolidar as contas públicas"
O presidente da Gulbenkian ainda sente a responsabilidade de ser o ministro-sombra da Cultura e da Educação, tal é o papel da Fundação nestes sectores?
Não, sinto-me como presidente de uma grande instituição privada, com uma grande responsabilidade na sociedade portuguesa, mas baseada nos princípios da filantropia. A associação da Fundação Gulbenkian a um "Ministério da Cultura" é uma imagem que se colou à instituição durante os primeiros anos porque representou o preenchimento de funções que normalmente caberiam ao Estado.
Até substituindo-se ao Estado?
Hoje, a situação é totalmente diferente, e a Fundação olha-se a si própria como uma instituição interveniente, mas da sociedade civil, e que alarga a intervenção muito para além da própria sociedade portuguesa, visto que cada vez mais intervimos fora de Portugal.
Portugal ainda vive hoje muito à sombra das bolsas, de financiamento e das exposições da Gulbenkian?
A Fundação tem um grande papel na área cultural, quanto mais não seja por ter dois museus que procuramos que sejam dois exemplos de excelência; por ter uma orquestra a que queremos dar standards internacionais; por possuir a melhor biblioteca de arte do País; e por ter programas de apoios a artistas.
Mas adaptou-se aos tempos actuais?
A Fundação teve de reorientar a intervenção tendo em conta as enormes mudanças que se produziram no País. Podemos marcar duas grandes etapas: a primeira, a democracia; e depois a integração europeia, em que o papel do Estado se libertou dos constrangimentos do regime autoritário e passou a ter meios financeiros que não existiam.
Sente pressão dos governos para reorientar o rumo da Gulbenkian?
Não. Nós agimos segundo uma estratégia própria e não fazemos ajustamentos segundo os ciclos políticos. Aliás, a grande vantagem das fundações como instituições independentes é estarem simultaneamente livres dos ciclos políticos e, em certa medida, dos económicos. Podemos projectar a intervenção a mais longo prazo, que não é a lógica da política, porque está submetida aos ciclos eleitorais.
A crise financeira e económica também alterou o rumo da Gulbenkian?
É evidente que não está imune ao que aconteceu, porque tem os seus investimentos no petróleo e no gás nos mercados internacionais, e, por isso, em 2008 tivemos uma redução da ordem dos 12% no valor dos activos que obrigou a medidas de contenção. Procurámos que fossem sobretudo nos custos de funcionamento e não se repercutissem em subsídios, bolsas e actividades.
Ao dar 110 milhões ao mecenato em 2009, quer dizer que está de boa saúde financeira?
Considero que sim, o que não quer dizer que não estejamos preocupados com a situação da economia mundial e, sobretudo, com o grau de baixíssima previsibilidade dos mercados.
Como presidente do Centro Europeu de Fundações, pediu criatividade. É a forma de superar esta crise?
Sugeri a criatividade para que com recursos escassos sejamos mais eficazes na acção, mas, relativamente à situação geral, penso que vivemos um momento de grande perplexidade. Se relermos o comunicado da última reunião do G20, há num parágrafo o apelo à austeridade e no seguinte um outro aos estímulos à economia. Essa perplexidade traduz-se na ambivalência de que a generalidade das políticas sofre neste momento nos planos teórico e doutrinal, porque não dispomos de ferramentas que respondam à situação que estamos a viver.
Não dispomos, quem?
O sistema económico! O Presiden-te Obama acaba de propor uma medida de carácter keynesiano - 50 biliões de dólares para investimentos em infra-estruturas - e o presidente da Comissão Europeia no discurso do estado da União propôs a emissão de obrigações europeias para financiar investimentos em infra-estruturas. Não há, diga--se, muita inovação nessas propostas no ataque à crise.
Porquê essa falta de inspiração?
Esta crise é o fim de um ciclo que se iniciou no final dos anos 70 com uma política de estabilização salarial, baixa inflação, valorização de activos bolsistas e imobiliários e, principalmente, um grande endividamento que foi propulsionado pelas políticas Reagan/Thatcher. O Verão de 2007 é a implosão de um sistema que não tinha lógica nem sustentabilidade. Qual é a resposta neste momento? Aí penso que faltam ideias, rumo e coerência.
Que é o caso da União Europeia, em que a Comissão de Durão Barroso não consegue dar resposta efectiva?
Penso que ele não é o único que sofre do que considero falta das ferramentas para enfrentar a situação. Recorde-se que o Japão viveu dez anos de deflação e talvez não tenhamos aproveitado suficientemente o facto para tirar ensinamento da situação. Hoje, temos uma dificuldade adicional porque as economias emergentes nos ultrapassam em muitos domínios com o seu dinamismo. Não tenho a veleidade de fazer propostas, mas acho necessário reflectir e, muitas vezes, parece-me que não damos tempo suficiente a uma reflexão nem a um debate sereno porque se cede à pressão, designadamente a mediática, de dar respostas sem suficiente estudo.
Basta ver o caso de Portugal, em que se estimulou o défice num ano e no outro foi penalizado...
É a tal ambivalência de austeridade e estímulo. Em Julho, o Financial Times publicou na mesma semana e página dois artigos sobre a economia - um a favor da austeridade e o outro dos estímulos - que traduzia muito bem este dilema.
É o reflexo da euforia "liberal" da economia?
É um conjunto de causas que podem ser sintetizadas na formula de "gastar mais do que se tem", situações muito complexas que até podem ser expressas sob uma forma que qualquer economia familiar compreende muito bem.
Entendo que não critica Durão Barroso pela não recuperação!
Penso que o presidente da Comis-são está a enfrentar um período de extrema dificuldade e uma nova arquitectura institucional que o colocou numa posição diferente da tradicional. Hoje, há um presidente do Conselho que se tem vindo a afirmar; uma vice-presidente com responsabilidades e competências específicas na política externa e um parlamento com mais poderes. As consequências institucionais do Tratado de Lisboa implicam que o equilíbrio de poderes esteja numa fase de ajustamento e ainda não se encontrou o novo equilíbrio que permita que Durão Barroso volte a ter o anterior protagonismo.
Acredita que o possa voltar a ter?
Penso que tem as qualidades pessoais para isso. Se haverá condicionalismo institucional para tal...
Está demasiado manietado pelo eixo franco-alemão e a Inglaterra?
Penso que o problema se pode colocar de outra maneira: faltam hoje lideranças políticas nacionais como as que permitiram criar a Jacques Delors um ambiente para ser um presidente da Comissão com um forte impulso e dinamismo. O presidente da Comissão não pode ser isolado da envolvente que é o conjunto das lideranças, sobretudo dos maiores países europeus, que neste momento passam dificuldades na ordem interna. A conjugação tradicional franco-alemã praticamente desapareceu, e o Reino Unido está muito virado para os seus problemas e com um Governo que está no começo. A situação é muito diferente da do passado.
Choca-o que em Portugal quase não se ouça falar de Durão Barroso, sendo ele um português e estando num dos cargos mais poderosos?
A pergunta devia ser a própria comunicação social a colocar mas não é caso exclusivamente português.
O que achou do discurso do estado da União de Durão Barroso?
Não escapou a ninguém as ausências do presidente Rompuy, da vice--presidente Ashton e de bastantes parlamentares. Há um problema geral na Europa de alguma anemia.
É o naufrágio do projecto europeu?
Não. Acredito que o projecto europeu é tão importante que ultrapassará esta fase, como o fez noutras alturas no passado. É preciso ter uma visão de muito curto prazo e esquecer tudo aquilo que são as enormes conquistas do projecto europeu para podermos pô-lo em cau-sa. A ambição que representou o tratado constitucional foi talvez excessiva para as condições económicas e políticas que estamos a viver e, por outro lado, há também um problema geracional. Refira-se que o impulso inicial da Europa foi feito por quem tinha a experiência e a memória da guerra, enquanto hoje vivemos numa sociedade em que o acesso às benesses sociais é dado por adquirido. Esses são ingredientes a ter em conta para esta relativa crise do projecto europeu.
Foi ministro da Economia no II e III governos provisórios, uma altura muito complexa...
Extremamente complexa!
... O que o faz a pessoa indicada para analisar a actual crise económica nacional. Portugal está a tomar as medidas suficientes para acompanhar a recuperação europeia?
O período de que tive experiência é radicalmente diferente deste.
Há três meses falava-se de intervenção do FMI e na saída do euro. Pre-visões tão drásticas como as que teve na altura em que foi ministro!
Hoje não há inflação e existe uma estabilidade social totalmente diferente da que se experimentou nessa altura, quando se sofria défices da balança de pagamentos. Actualmente, há a necessidade de caminharmos para o reequilíbrio das contas públicas. Se os 3% mágicos de Maastricht são um número exacto ou não - penso que é uma discussão teórica que poderemos ter -, é certo que défices de 7, 6 ou 5% nas contas públicas não são desejáveis em qualquer circunstância. Portanto, o esforço de consolidação das contas públicas tem de ser uma linha para qualquer governo. O relançar da economia portuguesa depende cada vez mais das atitudes dos empresários e dos cidadãos como aforradores e consumidores e cada vez menos dos governos.
E também dos partidos políticos?
Sim, porque numa economia assente no mercado a intervenção do Estado é muito reduzida porque não há instrumento monetário, não há instrumento cambial e não há instrumento preços, mas continua--se a olhar demasiado para os governos como regentes da economia, quando o seu principal papel é criar um ambiente favorável às decisões correctas dos empresários e dos cidadãos. O Governo, pelos instrumentos de que dispõe, tem uma pequena intervenção na economia, e o melhor contributo que pode dar para a economia portuguesa é a consolidação das contas públicas e o repor duma situação saudável em termos orçamentais.
O que se observa quando se prepara a aprovação do próximo Orçamento do Estado é uma conflitualidade entre o Go-verno e o PSD. É aceitável?
Isso é o jogo político.
O jogo político será ultrapassável?
O jogo político faz parte do funcionamento das democracias parlamentares, mas acredito que o bom senso e o interesse nacional irão prevalecer e que se encontrará uma solução. Nessa parte, subscrevo inteiramente o apelo do senhor Presidente da República.
Que aliás teve uma posição muito definidora. Obrigará o Governo e o PSD a firmar um pacto para aprovar o Orçamento do Estado?
Acho que a controvérsia em democracia pode ajudar a boas soluções. O que não podemos é ficar na controvérsia pela controvérsia, ela tem de conduzir a resultados porque pode ser estimulante e criadora de boas soluções. O debate é uma das virtudes da democracia, só não podemos é reduzir a vida política a um debate em que não há momentos em que se tomam decisões.
É este o caso?
Vamos a ver...
Também foi deputado num Governo de minoria. São viáveis?