"Não sei se a Igreja vai mudar a sua posição sobre contraceção"

Ao DN, Michael Czerny, conselheiro do Vaticano, tentou explicar porque considera que a política de distribuição de preservativos em África é um erro.

"Sabe qual a posição que o governo português vai apresentar na conferência de Paris sobre alterações climáticas? E diga-me, os media em Portugal ligam a esta questão das mudanças climáticas, aos problemas da ecologia?" É no fim da conversa que Michael Czerny, 69 anos, nascido na Checoslováquia em 1946, no ano seguinte ao fim da segunda grande guerra, e emigrado - refugiado, frisa ele, com um sorriso, para evidenciar que sabe o que é sê-lo - desde os dois anos e meio no Canadá, pede para ser ele a fazer perguntas. Faltam dois meses e meio para a COP 21, a conferência da ONU sobre mudanças climáticas que terá lugar em Paris de 30 de novembro a 11 dezembro, e na qual Czerny, membro do governo papal - é conselheiro do presidente do Conselho Pontifício da Justiça e Paz, ou seja, o equivalente a um assessor de um ministro -, como o próprio Papa, deposita grandes esperanças, e a propósito da qual veio a Portugal falar de "Laudato si", a encíclica ecológica que Francisco publicou em maio.

Jesuíta como o papa (aliás, Francisco é o primeiro pontífice dessa congregação), Michael partilha com ele a atitude bem-humorada e não confrontacional, mas não raro de uma ironia a roçar o sarcástico. Como quando repete, em tom de descrença, a pergunta que lhe é feita - "As pessoas não são iguais em todo o lado?" - quando confrontado com a sua afirmação, num texto de 2009 a defender as declarações de Bento XVI sobre preservativos numa viagem a África (disse que pioravam o problema da sida), de que é racista considerar que a distribuição destes funciona em África como profilaxia para o contágio por VIH.

Veio a Lisboa falar da encíclica verde "Laudato si", na qual Francisco fala do perigo do aquecimento global e da necessidade de preservar o ambiente e respeitar a terra e cada ser vivo nela não apenas como fonte de algo mas como tendo valor intrínseco e apela a uma "revolução cultural", comparando o choro da mãe Terra ao choro dos pobres e abandonados. Este apelo à revolução é também uma revolução na Igreja?

Os ensinamentos da Igreja sobre o ambiente começam a seguir ao Concílio Vaticano II, portanto há 50 anos. E temos, claro, uma longa história de preocupação com os pobres. Mas nunca estes dois aspetos tinham sido fundidos. E o Papa aqui diz é que é o mesmo problema. E nesse sentido, a encíclica é revolucionária. E creio que não só na história da Igreja mas também para muita gente, que nunca tinha pensado nisto dessa forma.

A maioria dos partidos ecologistas são de esquerda. Aliam as suas preocupações ambientais às de justiça social e de defesa dos desfavorecidos.

O Papa refere os movimentos e os partidos ecologistas e diz que a sua intervenção é meritória.

"Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a Terra. Vós sereis objeto de temor e de espanto para todo animal da Terra (...). Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto." Inevitável recordar estas palavras do Génesis ao ler a "Laudato si". Portanto, a Terra já não deve ser tratada como propriedade do homem para fazer com ela o que quiser?

O Génesis foi escrito há 2000 anos. E não, a Terra não é uma propriedade com a qual posso fazer o que quiser, no sentido de a estragar.

"Crescei, multiplicai-vos e enchei a Terra" - como se compatibiliza isto com o alerta do Papa para a inexistência de recursos infinitos?

Seria incompatível se a Igreja dissesse às pessoas para terem 12 filhos. É claro que quando a Terra tinha mil milhões de pessoas a situação era diferente em relação à atual, em que tem sete mil milhões. Mas isso não significa que as pessoas parem de ter filhos. A ideia de não terem filhos nenhuns também é terrível.

Daqui a 25 anos estima-se que seremos nove mil milhões e que em 2030, segundo a ONU, precisaremos de mais 50% de comida, mais 30% de água e mais 45% de energia. Mas, como a teóloga americana Jamie Mason sublinha, nem uma vez em toda a encíclica o Papa usa a palavra sobrepopulação.

O problema é a distribuição dos recursos. Se os recursos forem bem distribuídos há para todos. Mas até agora não vimos um bom planeamento no que respeita à exploração e distribuição dos recursos. E é também sobre isso que é o encontro em Paris. Mas a população toma conta de si própria, as estimativas são sempre empoladas em relação à realidade. E isso sucede em parte porque há mais segurança social, mais comida, menos pessoas com fome. Onde as pessoas sentem mais segurança não sentem a necessidade de ter dez filhos porque têm medo de que só três sobrevivam. Tomam decisões racionais.

O que sabemos é que se a fome tem diminuído no mundo nas últimas décadas é porque o preço dos alimentos baixou muito devido à agricultura intensiva. O mesmo se aplica à energia: portanto, graças à sobre-exploração dos recursos. Não vê aqui um problema?

É um grande problema, sim. Mas esses problemas não são primariamente da Igreja. A Igreja acompanha essas questões e quer ajudar, mas as decisões sobre como, por exemplo, distribuir a água ou que formas de energia explorar não lhe competem.

Há uma coisa na qual a Igreja, no entanto, tem querido tomar decisões: a gestão da sexualidade e a recusa da contraceção artificial.

Não é a Igreja que decide. Diz o que tem a dizer e as pessoas tomam as suas decisões.

Diz que é pecado. E nos países em que tem muito poder, caso das Filipinas (e da Irlanda, até muito recentemente), há proibição.

Também é um pecado roubar e as pessoas roubam. As pessoas assumem a sua responsabilidade. E não tem de se preocupar: há progresso.

Onde, no Vaticano?

Sim. Mas também em Portugal, por exemplo. Quantos filhos tiveram os seus avós? Muitos mais do que agora as pessoas têm, não é? As pessoas mudam.

Sim. Por causa da contraceção. Porque existe. Aqui existe. Mas há países em que não está disponível por motivos religiosos.

Há muitas maneiras de assumir uma paternidade responsável e a contraceção artificial não é uma delas. Esta é a posição da Igreja.

Mas em 1965 uma comissão de peritos nomeada pelo papa João XXIII disse que devia mudar. Não mudou. É completamente impossível que mude?

Não sei.

Foi durante oito anos diretor de uma estrutura de jesuítas em África para o combate à sida. Em 2009, na sequência das declarações de Bento XVI na viagem a África, escreveu que distribuir preservativos é encorajar a irresponsabilidade. Quer explicar?

Porque encorajam-se as pessoas a usar preservativos, usam-nos uma ou duas vezes e nunca mais. Porque não têm mais.

Mas então o problema é de quantidade. Está a dizer que os preservativos não funcionam no combate à sida porque as pessoas não os têm?

Não funciona assim. Os preservativos ficam no armazém e as pessoas não os têm. Lamento, é assim, eu vi isso suceder. Não faz sentido. É confiar numa coisa que não está disponível, não está bem distribuída. E pensar que se resolve o problema da sida inundando um país com preservativos é um erro. As pessoas não decidem como vão agir porque têm um preservativo. Têm de fazer escolhas em relação ao seu comportamento sexual baseando-se noutras coisas que não terem ou não preservativos. E não há evidência de que a distribuição de preservativos por si só esteja a ajudar a combater a infeção.

Ninguém defende que basta distribuir preservativos ou mesmo ter acesso a eles. A ONUsida decerto não o faz. E no que escreveu admite que a distribuição de preservativos é eficaz por exemplo nos países ocidentais e entre trabalhadores do sexo. Por que não em geral?

Porque não se consegue chegar à população em geral da mesma forma que se chega a uma determinada população. Distribui-se isto e obtêm-se boas estatísticas mas não se lida com o problema. Porque o preservativo dá uma falsa sensação de segurança - não temos de nos preocupar com o nosso comportamento, não temos de nos preocupar com a nossa autodisciplina, com a nossa ética, com respeitar os outros...

Mas, pelo contrário, usar um preservativo não é ser responsável? No sentido de evitar mal para si e para os outros?

Não me refiro a quem os usa, mas aos defensores de políticas que consistem só em distribuir preservativos.

Acha que é melhor que não haja preservativos?

Não disse isso. Mas a Igreja está a ajudar as pessoas de uma forma melhor e mais profunda. A política de distribuição de preservativos por si só é um erro e uma ilusão.

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