José Luís Andrade: "Para Espanha, Portugal era uma anomalia histórica"
Entrevista com o historiador sobre o seu novo ensaio "Ditadura ou Revolução?"
Não será por acaso que a investigação de José Luís Andrade, Ditadura ou Revolução?, acaba com uma citação de Dostoievski: "A verdade autêntica é sempre inverosímil." Por isso, o historiador faz questão de avisar os leitores "viciados na narrativa corrente e que têm dificuldade em aceitar a realidade dos factos". Afirma que este ensaio pode ser considerado - ou desconsiderado - como alternativo mas, volta a avisar, "não invento ou distorço evidências". Entre o que mais o surpreendeu nesta investigação está a complexidade psicológica e a atuação de bastidores dos principais intervenientes: Salazar e Franco, entre outros.
Este é um período pouco estudado apesar de ser muito representativo para a península. A que se deve?
Creio que ao jogo de muitos significados da cabra-cega política entre os diferentes herdeiros dos principais envolvidos no cenário histórico e social de então. Preferem que subsistam ad æternum as estórias que contam...
Qual a razão de os portugueses não lerem a sua história e teimarem em repetir os mesmos erros ciclicamente?
Superficialmente, os portugueses não parecem demonstrar um grande apreço pela liberdade. Talvez pela pobreza do país, desde há muito que evidenciam uma grande dependência do Estado convertido por magia numa gigantesca caixa de previdência que tudo leva. Há também grande desprestígio pela narrativa histórica "oficial", com grande parte da população desconfiada perante as evidentes manipulações ideológicas engendradas pelas paixões políticas. Para evitar desaguisados, é mais simples esquivar-se a saber.
Encontrou livros de memórias úteis dos protagonistas dessa época?
Há bastantes e foram preciosos, tanto portugueses como espanhóis.
Os jornais da época são fiáveis?
São essenciais no esclarecimento dos factos, mesmo que nem sempre são exatos, imparciais ou fiáveis mas, quando conjugada com outros critérios, é sempre um bom ponto de partida.
As revoltas portuguesas foram sempre menos violentas do que as de Espanha. Porque optámos por putsches?
Não é um dado adquirido que as revoltas em Portugal tivessem sido, em geral, menos violentas do que as de Espanha. No período em causa, o que acontecia era que a iniciativa das revoltas contra a ditadura partia de militares, na maioria dissidentes do 28 de Maio, e a lógica mais entranhada era a do golpe de estado por pronunciamento castrense.
Que peso encontrou neste período para as teorias iberistas?
O "iberismo" revela-se sempre em duas abordagens básicas: a imperial, arreigada na ambição do centralismo castelhano, e a federal de grande aceitação entre as cúpulas republicanas de matriz maçónica de ambos os países, acarinhada por anarquistas e comunistas. Durante o período da ditadura do general Primo de Rivera o "iberismo" mostrou-se completamente mitigado; com a II República a tese "federalista" recrudesceu tanto no seio do poder em Madrid como entre o nosso Reviralho.
Até que ponto o património ideológico herdado de Salazar e Franco consegue ser analisado sem o peso das quatro décadas de cada governo?
Considero que Salazar não legou um património ideológico e Franco ainda menos. No caso do autocrata português há o corpo doutrinal evidenciado por uma marcada praxis política, num personalizado modelo de governação.
No final recupera palavras de Lenine para descrever a apetência de Espanha pelo socialismo. A história contrariou!
Muita da sua atrevida e iconoclástica análise baseava-se no misto de wishful thinking e na crença desbragada no determinismo da "luta de classes". Mas Lenine não conhecia bem a realidade social espanhola (nem a portuguesa) e subestimava o peso que a Igreja e o pensar anarquista tinham em Espanha.
Porque eram os comunistas ibéricos menos capazes a envolver as massas?
Não creio que houvesse uma grande diferença na atuação das duas "secções regionais" da Komintern. Ambos os partidos foram fundados em 1921, com a diferença de que o português nasceu de uma fação anarco-sindicalista ao passo que o espanhol de dissidências do Partido Socialista. Em Espanha, foi a tendência bolchevista do PSOE/UGT que disputou com os anarco-sindicalistas o controlo das massas revolucionárias. O PCE só apareceu com relevo na insurreição das Astúrias, em 1934.
Os historiadores espanhóis dão algum relevo a esta relação ibérica?
Pouco, até porque, quer pelas orientações da Internacional Comunista quer pelo tradicional "virar de costas" espanhol, os dois teatros de intervenção política confundiam-se ou complementavam. Note-se que, pela repressão levada a cabo pelo Estado Novo, a oposição ativa passara a assumir, como retaguarda, a acolhedora Espanha.
Nesta história encontrou influências de um noutro país ou inexistiram?
A nível político geral percebe-se que, para Espanha, Portugal era quando muito uma anomalia histórica e como tal descartada. Tirando as solidariedades maçónicas ou revolucionárias, entre os anarquistas, houve muito pouca interpenetração cultural ou política.
Os eventos num e noutro país influenciaram a política de Salazar ou Franco?
No período em análise muito pouca, sobretudo quando comparada com a que viriam a ter durante a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. Eram basicamente oásis de retaguarda para revolucionários falhados de ambos os países.
A Guerra Civil de Espanha foi benéfica para a política de Salazar?
Obviamente que foi. Quando a vacina do democratismo da I República parecia já fora de prazo, o violento conflito espanhol veio trazer novos argumentos ao Estado Novo para justificar o aperto político autoritário e securitário.