22 outubro 2017 às 00h30

Motosserras rompem silêncio de campos e aldeias por reconstruir

Quatro meses depois dos incêndios de Pedrógão, rebentam eucaliptos, fenos e silvas. Operários e camionistas cortam e carregam árvores. A maioria dos imóveis atingidas continuam destruídos. População está ainda mais isolada.

Céu Neves

O silêncio é o mesmo, a tristeza nos olhos das pessoas também. A diferença é que, agora, se ouve o barulho das motosserras e camiões com árvores queimadas por todo o lado. Veem-se eucaliptos novos com mais de um metro de altura, fetos e silvas verdejantes. Assim vivem as populações de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera, atingidos pelas chamas há quatro meses, num interior desertificado agora ainda mais isolado.

A força com que rebenta a vegetação é a primeira estranheza quando se chega às aldeias e lugares daqueles três concelhos. Mas quem percebe da floresta e ali vive sabe que os eucaliptos se reproduzem automaticamente, agora é podar e deixar o ramo mais forte crescer e transformar-se em árvore, seis anos para atingir 25 metros. No pinhal florescem fetos, nada sai das raízes cujos troncos as chamas atingiram. Precisam de ser colocadas sementes para nascer um pinheiro, que leva 20 anos para ter cinco metros. As silvas são outro elemento verde naquela floresta de paus queimados.

A grande atividade local é a dos madeireiros. "É cortar por todo o lado e os pinheiros são praticamente dados", reclama Maria Graciete Henriques, 76 anos, de Vila Facaia. Pagaram-lhe 1250 euros por dez pinhais, madeira que se não fosse os incêndios valia o triplo, garante. A prima, Hermínia Rosário, 68 anos, tem as mesmas queixas. "Deram-me 500 euros e tive de mostrar quatro propriedades, algumas com carvalhos, só cortam o que tem valor. O argumento é que ardeu e está seco, que o pinheiro queimado ganha doença ( fica azul) se não for cortado." Pinheiros que "valiam 50 euros e agora nem 20". Estes relatos multiplicam-se entre os agricultores obrigados a vender barato. "Isso ou nada", dizem.

Os madeireiros e funcionários desvalorizam o negócio. Argumentam: "A madeira fica mais leve. Queimada não tem o mesmo aproveitamento que em verde. Isto só para lenha ou construção. Neste ano há muita para o ano não há. Dá muito mais trabalho para retirar. A madeira apodrece, ganha doenças", etc. Levam os troncos mais grossos, deixam os outros nas matas, ramos finos e todo o desperdício.

"O pinhal estava em cima da casa, pedi para cortarem o mato e nada aconteceu. E, agora, só levam o melhor, fica o restolho. Não há uma lei que os obrigue a levar tudo, mas as matas têm de ser limpas", reclama Albino Domingues, 72 anos.

Habitações por reconstruir

A casa de Albino ardeu, salvou-se a cozinha, onde dorme há quatro meses, ele e a mulher, Graziela Coelho, 70 anos, cega. Vivem com o filho, Vítor Domingues, 46 anos, e o neto, agora abrigados em casa de um primo. Tiveram de fazer uma casa de banho, com o pouco que lhes resta e algum do material doado. "A Cáritas disse que começavam nos finais de setembro, estamos no fim de outubro e nada", protesta Graziela.

Eugénio Fonseca, o presidente da Cáritas Portuguesa, justifica que tiveram de legalizar terrenos, requerer licenças, fazer projetos, pedir autorização a senhorios e garantir que não despejassem os inquilinos após as obras. Muita dessa documentação teve de esperar pela tomada de posse dos novos autarcas. Esclarece que das 33 casas que têm a seu cargo nos três concelhos, estão concluídas as obras de 12 e que só parcialmente estavam afetadas.

A família Domingues vive em Vale de Nogueira e sente-se injustiçada. Graziela não vê. E os vizinhos têm os vidros, as portas e as telhas que rebentaram com o calor das chamas substituídos, tudo pintado de branco. Nas traseiras, do outro lado da estrada, ergue-se uma habitação de raiz, das poucas que o encarregado da obra garante estarem prontas antes do Natal. Trabalhos levados a cabo pela construtora Mota-Engil, que contribui de forma direta. "Fizemos a reabilitação de três casas e temos duas em construção", informa José Silva, 57 anos, um trolha/pedreiro da empresa.

Testemunhos que mostram que a solidariedade é mais rápida e eficaz quando atua diretamente, sem intermediários. Vários habitantes referem a ajuda levada à porta por particulares, sobretudo bens alimentares, e que é mais escassa por parte de instituições públicas. E que muito esperam pela reconstrução das casas e dos apoios financeiros para recuperar currais e barracões.

Dias de solidão

Ondulina Fernandes, 64 anos, garante que só recebeu ajuda de particulares. "Arderam os barracões" onde tinha o trator e outras alfaias agrícolas, animais e colheitas. Candidatou-se ao Fundo de Apoio às Populações e à Revitalização das Áreas Afetadas, para quem tenha prejuízos entre 1053 e 5000 euros, não sabe o que irá receber. Mora em Pobrais, onde residiam 11 vítimas mortais dos fogos de 17 de junho, dez ao fugirem das casas.

Apenas um armazém foi reconstruído na aldeia. Explicam os vizinhos que foi o proprietário que fez as obras com o dinheiro do seguro. Os restantes imóveis queimados esperam a adjudicação da obra. No local, um empreiteiro toma nota para fazer orçamentos e candidatar-se.

Em Pobrais já viviam poucas famílias, aumentou de população por altura das férias, voltou a partir de setembro à ausência de movimento. Estão recolhidos em casa, até porque o fogo matou os trabalhos agrícolas da época, como a apanha da azeitona. Sentem necessidade de contar aos forasteiros o que se passou naquele fim de semana de junho, precisam de falar e de quem os ouça, que levem vida aos seus dias.

Ondulina chora a morte dos vizinhos de ambos os lados da sua casa, Mostra a casa da família Abreu, pais, filho e nora que morreram ao fugir das chamas. Está acabada de reconstruir e com muito bom gosto. "Viviam, com os filhos e netos já adultos, em Lisboa. Foi o filho, o Fernando, um rapaz muito inteligente, que fez tudo. Acabou as obras antes do verão e mostrou-nos. Lindo. Vinha cá e eu perguntava-lhe: "Quando é que trazes os teus pais?" Ele respondia: "Tem de ser um dia especial, uma surpresa"." Fernando e a mulher levaram os pais no fim de semana dos fogos. A amiga murmura. "Tinha de ser naquele dia. Nunca mais volta a ser como era."