Infarmed acusa DN de "informação errada" sobre canabidiol
Agência do medicamento enviou desmentido ao jornal sem esclarecer o que desmente e contradizendo informação anteriormente prestada
Em e-mail enviado às redações, intitulado "desmentido", o Infarmed escreve: "O Diário de Notícias publica hoje uma notícia em manchete que, por conter informação errada, descontextualizada e excluir informação essencial ao cabal esclarecimento do tema em causa, justifica este desmentido no Infarmed." Neste documento, no entanto, o Infarmed não desmente nem o conteúdo da manchete - que nem cita sequer -- nem qualquer informação contida nas quatro páginas a que aquela se refere. Pelo contrário.
De facto, a manchete do DN de hoje, referente a um trabalho de quatro páginas, é: "Há crianças em Portugal a ser tratadas com derivados de canábis". Refere-se à substância canabidiol, derivado não psicotrópico de canábis usado com sucesso no tratamento dos sintomas de epilepsias infantis raras, como inúmeros ensaios clínicos e a própria evidência contida na reportagem atestam. No trabalho, que inclui uma entrevista com o diretor de neuropediatria do Hospital de Santa Maria na qual António Levy Gomes defende a utilização do canabidiol e a clarificação do seu estatuto legal, chama-se a atenção para a indefinição existente em relação à substância, que faz com que médicos e famílias pensem que ao comprá-la e dá-la aos filhos estão a cometer um crime. A reportagem inicia-se aliás com o caso de uma mãe que mandou vir a substância dos EUA para a sua filha de 15 meses com síndroma de West e a quem na alfândega disseram que necessitava, para a levantar, de uma autorização do Infarmed. Tendo contactado telefonicamente o Infarmed, disseram-lhe que enviasse um mail. Assim fez, especificando no mesmo que tinha uma recomendação de um médico para dar o produto à filha. O Infarmed respondeu dizendo que não tinha a ver com o assunto, por se tratar de um suplemento alimentar.
Essa informação - a de que o Infarmed não regula suplementos alimentares - está na reportagem, naturalmente. Pelo que não se compreende que o primeiro ponto do "desmentido" da agência seja afirmar isso mesmo. Prossegue o Infarmed dizendo que "não existe neste momento nenhum medicamento aprovado na Europa com canabidiol". Ora se não existe, como se lê na reportagem, nenhum medicamento de canabidiol aprovado para o tratamento dos sintomas de epilepsias raras - algo que o DN refere, especificando que existe um medicamento em processo de aprovação pelas autoridades americana e europeia do medicamento, o Epidiolex, após ensaios clínicos que são também referidos - não é exacto que não haja qualquer medicamento aprovado na Europa com canabidiol. Citando o próprio Infarmed, na informação enviada no dia 28 ao DN, "o medicamento Sativex está autorizado em Portugal desde 19 de junho de 2012 e contém as substâncias ativas Delta-9-tetrahidrocanabinol (THC PFV) + Canabidiol (CBD PFV), Prep. de Fármacos Vegetais, extraídos da Cannabis sativa."
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Por outro lado, tendo o DN solicitado ao Infarmed informação sobre a existência de Autorizações Especiais (ou excecionais) de Utilização - autorizações de uso de medicamentos ainda sem visto de comercialização, que o Infarmed pode conceder caso considere não haver outras alternativas terapêuticas - para o Epidiolex, não recebeu sobre isso resposta, apesar de na reportagem uma neuropediatra do Hospital de Santa Maria afirmar que fez esse pedido ao Infarmed. O Infarmed volta aliás a afirmar o mesmo no "desmentido". Trata-se de uma contradição que o DN vai investigar.
Por fim, o Infarmed afirma que não existe "qualquer contradição relativa ao controlo da substância canadibiol". Esta contradição, apontada no texto do DN; diz respeito à afirmação do próprio Infarmed, transcrita na reportagem, de que o canabidiol não é uma substância incluída nas tabelas anexas às Convenções da ONU de controlo de estupefacientes, e como tal não está nos anexos ao decreto-lei 15/93, se resultar de síntese química, mas que se trata de uma substância controlada se extraída da planta.
Ora a contradição apontada na reportagem, que resulta da própria formulação do Infarmed, consubstancia-se também no facto de a Organização Mundial de Saúde ter em dezembro esclarecido que não vê motivos para incluir o canabidiol nas substâncias controladas - anunciando um pronunciamento definitivo sobre o assunto para maio, quando se debruçará mais aprofundadamente sobre a planta toda e seu derivados, incluindo o canabidiol, pressupondo que admite uma alteração da classificação da própria canábis - mas também na evidência de que em Portugal há, em venda livre, como se atesta no trabalho publicado pelo DN, compostos de canabidiol resultantes de extração da planta e fabricados na Europa (Polónia, mais exatamente).
Em conclusão do seu "desmentido", a agência do medicamento escreve: "A única forma de garantir o desígnio de proteção de saúde pública, particularmente quando se trata de respostas a crianças, que são uma população mais vulnerável, é cumprir escrupulosamente com as regras europeias da aprovação de medicamentos. O Infarmed continua, como sempre, disponível para apoiar os cidadãos que necessitem de esclarecimentos, estando obviamente disponível e atento a respostas ao doentes que ainda não disponham das respostas terapêuticas desejáveis." Aguarda-se pois que o Infarmed apresente um esclarecimento realmente esclarecedor sobre a substância canabidiol que permita às famílias citadas na reportagem do DN e aos médicos que tratam as crianças perceber se o que estão a fazer é ou não legal, já que neste "desmentido" se eximiu de o fazer.