21 agosto 2015 às 00h00

Hoje vamos ao Campo Pequeno apanhar maracujás

A história, acabada de começar, da Horta do Baldio, entre o Campo Pequeno e a linha do comboio, onde um fruto exótico pode crescer à sombra de uma couve portuguesa, e onde pessoas de diferentes origens, idades e grupos sociais estão a construir uma comunidade dentro da cidade. E os projetos da Câmara de Lisboa para dar meios aos outros "agricultores"

Pedro Sousa Tavares

"Maracujás, tomates, acelgas".... Maria Raquel Sousa, 53 anos, vai saltitando de nicho em nicho da pequena horta circular, com apenas alguns metros quadrados de área, identificando um número cada vez mais surpreendente de espécies diferentes.

No ar paira um aroma agradavelmente caótico a ervas aromáticas, fruta madura, flores e legumes. Salva, ananás, hortelã, nêsperas, kiwis, maçãs... Mesmo um mestre perfumista de Paris teria dificuldade em pôr os nomes a todos aqueles cheiros. Mas a geógrafa e engenheira agrónoma, formada na Universidade Estadual da Califórnia, orienta-se na aparente amálgama vegetal com a desenvoltura de um guarani do Amazonas, servindo-se dos olhos e do olfato como guias.

"Couves veem-se imensas. Aqui está uma couve verde. Está ali um tomate maravilhoso. E temos mais umas hortas, feitas de forma não circular mas que também são comunitárias, em que já vai crescendo feijão, beringelas, abóbora... tudo o que é da época de verão, que é praticamente tudo", explica. "Portugal é ótimo para a agricultura e no verão dá tudo."

Estamos num terreno no centro de Lisboa, entre a via-férrea e uma rua que dá para as traseiras da praça de touros do Campo Pequeno. Chamam-lhe Horta do Baldio, embora na realidade seja um espaço privado que, há cerca de ano e meio, foi cedido para uma iniciativa temporária.

A ideia era organizar work-shops de hortas Mandala - também conhecidas por buracos de fechadura -, uma forma altamente eficiente de rentabilizar a produção combinada de diferentes produtos (permacultura) num pequeno espaço, disposto de forma circular, num terreno elevado (camas) e enriquecido com resíduos vegetais. Mas as primeiras experiências acabaram por dar origem a um "fruto" inesperado, mesmo perante tamanha diversidade: uma pequena comunidade de agricultores.

"Organizamos workshops gratuitos ou muito baratos, temos eventos semanais em que os legumes vão para uma mesa e as pessoas podem levar e, se quiserem, deixar donativos, mas não temos qualquer tipo de quotas", explica a agrónoma. "Temos bastantes pessoas e toda a gente é bem-vinda e se há coisa de que precisamos é de muitas mãos. Por exemplo, para fazermos estas camas elevadas. O resto do solo que aqui está, para dizer a verdade, é horrível. Mas basta olhar para a biomassa produzida, para esta verdura toda, para se perceber que o nosso trabalho tem qualidade."

"O terreno pode ser privado mas faz sentido que se chame horta do baldio", diz Graça Margarido, uma das primeiras utentes do espaço. "Há outra aceção da palavra "baldio", que é "comum". E é isso que nós queremos fazer: uma horta comum, que é de todos. Temos cá todo o tipo de pessoas. Há pessoas que vêm quase por razões políticas, porque acreditam que é importante repensar a nossa ligação com a economia e com a sociedade, outras que aparecem porque gostam. Há miúdos que vêm para aqui jogar à bola e acabam por ajudar. outros que vêm passear o cão. E há até alguns que começaram por destruir alguma coisa mas agora já não o fazem."

Numa das extremas do terreno morava, e continua a morar, um sem-abrigo. Ao início, assume Maria Raquel Sousa, a relação entre as partes "não foi fácil". Mas ao longo dos meses tem "evoluído muito favoravelmente, na base do respeito mútuo". No fundo, as pessoas, tal como as plantas, parecem dar-se bem juntas por ali.

"É difícil estar aqui zangado, maldisposto ou com violência", explica a também professora universitária e investigadora, que diz não se limitar a ensinar naquele espaço mas também a aprender. Sobretudo com os comportamentos e as dinâmicas que se vão criando.

"Pode parecer deformação profissional mas a horta não é um hobby como outra coisa qualquer", defende. "Está ligada a nós desde o paleolítico. Andámos a colher coisas antes de fazer qualquer cultura", lembra. "Esta não é uma questão ainda muito estudada mas acredito que a horta deve estar extremamente ligada a nós muito lá dentro. Faz-se terapias em jardins e hortas em oncologia que tornam mais eficazes os próprios medicamentos."

Com duas décadas de experiência a organizar projetos de agricultura biológica, hortas municipais e pedagógicas, a agrónoma tem ajudado esta comunidade "sem líderes" a abrir-se a iniciativas de educação ambiental, com visitas frequentes de escolas, e vários projetos ligados à cultura e às artes. Mas a convicção de fazer tudo sem dinheiro tem o senão de limitar a margem de manobra. Recentemente, decidiram candidatar-se a um concurso de ideias para a comunidade, da Fundação EDP e da revista Visão e, "com alguma surpresa", acabaram por ganhar um apoio de cinco mil euros. Uma verdadeira fortuna para quem se tem habituado a trabalhar com quase nada.

No dia da visita do DN à Horta do Baldio está marcada no local uma reunião destinada a afinar a estratégia dos novos projetos a desenvolver com o dinheiro recebido.

Um a um vão chegando: a mulher de meia-idade, de aspeto rijo, claramente habituada a trabalhar a terra. O homem na casa dos 30 anos, com o rottweiler mais pacífico do mundo pela trela. O avô de bigode e cabelos brancos e o neto de faces rosadas, a puxar para o forte. A motoqueira...

O DN é cordialmente convidado a não assistir aos trabalhos na cozinha improvisada, agora reconvertida em sala de reuniões. "Somos capazes de fazer algum barulho", explica Graça Margarido. É justo. Integrar uma comunidade também implica estar pronto a discordar para chegar a consensos. E mesmo abrindo as portas a toda a gente há conversas que se querem privadas. Mas não podíamos deixar de saber como correu o encontro, o que reserva o futuro para aquele lote plantado no meio dos jardins de pedra. Voltámos a falar com Maria Raquel Sousa. Desta vez por telefone:

- Está lá? Fala o jornalista do DN...

- Olá, como está? Então a reportagem? Tenho andado a ver o jornal mas ainda não a encontrei...

- Não. Vai sair agora. Estava a ligar-lhe para saber como correu, afinal, a vossa reunião...

- Correu muito bem. Aprovámos tudo. Vamos aumentar a área cultivada e também ajardinar o espaço, com prado florido. Uma home school vai passar a fazer lá horta regularmente.

- Uma home school?

- Um grupo de pessoas que optam pelo ensino em casa. Já sabe, temos muitas pessoas que vivem fora da norma. Também temos a zona de cozinha e vamos concretizar o nosso projeto de um centro de educação ambiental. E há mais uma coisa...

- Sim?

- Estamos a discutir... há um candidato à presidência da República que gosta do projeto e quer fazer aqui a apresentação. Mas ainda não viu o espaço.

Confirma-se: a história da Horta do Baldio acaba de começar.

Os talhões onde há de ervilhas a mandioca

Ver terrenos cultivados, sobretudo nos bairros limítrofes de Lisboa, é uma imagem relativamente comum. O que há de novo na cidade é a forma como esta atividade tem vindo progressivamente a passar da quase clandestinidade para a organização.

Nos últimos anos, a Câmara de Lisboa requalificou várias zonas agrícolas, em terrenos públicos, e passou a loteá-las entre os moradores. Do Lumiar ao Vale de Chelas, centenas de lisboetas já são concessionários do seu talhão de terreno, onde podem praticar livremente agricultura biológica com as infraestruturas, incluindo o acesso a água potável, asseguradas pela autarquia.

Por estes lotes, que custam um mínimo de 57 euros, acrescidos de 20 para despesas que podem ser restituídos, os hortelãos - como são designados pelo município - têm ainda direito a "abrigos coletivos para aprovisionamento de alfaias e materiais de apoio ao cultivo e acesso a água para rega".

Para José Sá Fernandes, vereador da Câmara, esta infraestrutura - a par da necessidade, aguçada pela crise - explica a crescente popularidade da agricultura na cidade. E o próprio autarca confessa-se surpreendido com a variedade de produtos que se vão encontrando pelas hortas de Lisboa. "Não são apenas os portugueses mas também diferentes comunidades imigrantes que procuram estes talhões. No caso destes últimos acabam por aproveitar para cultivar produtos da terra de onde vieram, que não encontram com facilidade."

Em algumas hortas, diz, "olhamos para elas e não sabemos distinguir o que está lá. Não são só as ervilhas e as cenouras. Olhamos para um lote e é ou de um indiano ou de um paquistanês que ali cultiva determinados produtos, ou de um angolano que tem lá a mandioca".

A diversidade é a regra: "Como os nossos concursos para os talhões são por proximidade, que é o que parece mais objetivo, junto de bairros mais carenciados são as pessoas que estão lá mas em Telheiras temos as senhoras com os chapéus de palha."

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