"O governo tem o dever de cumprir a legislatura que derrubou"
O líder da oposição e ex-primeiro-ministro critica as políticas do governo de Costa e diz temer que "mal o BCE corrija a política monetária", o país fique "esganado"
Passos Coelho não acredita que o défice público deste ano seja cumprido. Diz que o segundo semestre do ano vai trazer riscos suplementares, mais despesa e menos receita, menos consumo privado, e que isso vai desequilibrar as contas numa altura em que o contexto europeu se tornou ainda mais perigoso. O risco de o sistema financeiro italiano colapsar existe, embora o líder do PSD acredite que será encontrada uma solução que evite uma espécie de Lehman Brothers, mas de proporções muito mais severas. O problema, diz Passos, é que Portugal está hoje mais exposto aos riscos externos e não tem dinheiro para medidas de emergência. Está dependente do Banco Central Europeu para que os juros continuem baixos, mas a ajuda não está a ser aproveitada para reduzir a dívida. Sobre os bancos portugueses, o anterior primeiro-ministro recusa responsabilidades. Alega que fez o possível na altura, com o dinheiro disponível, e que o atual governo está a agravar mais a perceção de risco. "Isso revolta-me."
A Comissão Europeia e o Ecofin foram claros, as multas a Portugal resultam de falta de ação do país nos últimos anos, designadamente em 2015, com o seu governo.
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Creio que o que se tem passado com este processo das sanções diz, infelizmente, bastante sobre o que tem sido a prática seguida pelo atual governo e sobre a grande desorientação que existe em Bruxelas a respeito destas matérias. Portanto, falo com o à-vontade de quem, ao longo de quatro anos, reduziu o défice português de forma significativa. Não há ninguém que não tenha memória disso em Portugal porque implicou, quer do lado tributário quer do lado dos rendimentos das pessoas - associados a pensões, a salários e por aí fora -, um esforço monumental. Portugal foi dos países que nesses quatro anos mais reduziram o défice nominal, o défice estrutural, o défice primário, as várias medições que se podem fazer sobre a saúde das finanças públicas de um país.
Portanto, está contra as sanções...
Não entendo esta conversa sobre sanções. Fui primeiro-ministro por quatro anos, sou um razoável conhecedor destes dossiês e não entendo o que se está a passar. Não é possível dizer: estamos a sancionar é o passado, mas só há sanções se não forem apresentadas medidas que corrijam a trajetória deste ano. Não se entende. Ou a análise é sobre o passado e as multas, caso tenha havido incumprimento, não têm nada que ver com a trajetória que está a ser seguida ou o problema é a trajetória que está a ser seguida e, então, não vale a pena estar a invocar o passado.
A trajetória seguida também pode dar mais ou menos conforto a quem decide na Comissão Europeia sobre a penalização?
As coisas têm de ser separadas. No que respeita ao passado, insisto, não houve incumprimento de Portugal. Tivemos um défice de 4,4% em 2015, que se deve, no essencial, à resolução de um banco que - diz a autoridade estatística nacional, diz a entidade estatística europeia - valeu 1,4 pontos percentuais do PIB, o que quer dizer que se excetuarmos a resolução desse banco, que não resultou, evidentemente, da política macroeconómica seguida pelo governo nem das escolhas orçamentais feitas pelo governo...
Não orçamentais, mas políticas, ainda assim... mas já lá iremos.
Podemos discutir depois a questão do Banif. Agora, o Banif foi resolvido e isso valeu 1,4 pontos percentuais. Se excetuarmos isso, Portugal não deveria ter tido um défice superior a 3% e isso é importante. É isso que conta para o procedimento por défice excessivo. Ou há mais de 3% de défice ou não há. Se há mais de 3% de défice e isso representa um resultado que está relacionado com a estabilidade do sistema financeiro e não com escolhas de política económica e financeira do próprio governo, então não deve haver sanções.
Bruxelas diz que o número é 3,2%.
Fala-se de muitos números.
Fala-se de uma meta inicial de 2,7% que foi sendo corrigida e acabou em 3,2%.
Mas não é assim. Há muitas óticas de contabilização, mas o que é importante para não confundir as pessoas, que não são obrigadas a ser especialistas destas matérias, o que releva para efeitos de procedimento por défice excessivo é o défice nominal. Ou é mais de 3% do PIB ou é menos. Ora, se um défice for superior a 3% por razões que têm que ver com o sistema financeiro só deve haver sanções se se verificar que o esforço estrutural feito pelo país falhou. Portugal foi dos países que mais esforço estrutural fizeram. Seja qual for a forma de medir, e ela não é transparente. Os ministros da Finanças europeus estão de acordo quanto a este problema. Eu testemunhei isso todos os anos, todos os anos estávamos à espera de que a Comissão Europeia nos comunicasse o resultado do seu algoritmo, da maneira de fazer a conta, para sabermos quanto é que podia ser. Isto leva a que seja difícil ser operativo para os governos, com uma incidência tão fina como 0,1 ou 0,2, quando o cálculo nos escapa e pode variar.
Diz que não faz sentido a aplicação de sanções, mas ao mesmo tempo procura tirar alguns dividendos políticos desta situação.
Porque o governo está a dizer que defende o resultado de 2015 para evitar as sanções, mas de facto não defendeu. Di-lo agora, mas aceitou fechar com a Comissão Europeia o ponto de partida para 2016.
Como sabe que não tentou?
Se tentou, está à disposição do governo comprová-lo.
Se há mais de 3% de défice e isso representa um resultado que está relacionado com a estabilidade do sistema financeiro e não com escolhas de política económica e financeira do próprio governo, então não deve haver sanções
Falou com alguém, com Merkel?
A chanceler Merkel não faz parte da Comissão. Não conheço nada que tenha vindo a público por parte do governo para demonstrar o esforço que fez junto da Comissão para defender as contas. Portanto, a retórica política do governo é cínica, diz: nós estamos à vontade porque não concordávamos com a política que era seguida, mas achamos que é injusto aplicar sanções pela política passada porque o governo fez o possível por cumprir.
O que o preocupa mais: a situação orçamental do país nesta altura ou a situação do sistema financeiro?
Preocupa-me sobretudo o facto de o país, em função da condução macroeconómica que está a ser feita, das opções que foram tomadas pelo novo governo, não estar a fazer o que deve para pôr o país numa trajetória de crescimento sustentável e de criação de emprego.
Mas do ponto de vista orçamental segundo as últimas indicações, contas até maio, parece tudo em linha...
Nós corrigimos desequilíbrios muito cavados no passado recente, sem isso não conseguiríamos ser um país com confiança para crescer no futuro. Mas isso não chega. O país, ao longo de muitos anos, acumulou uma dívida muito grande, quer no setor privado quer no público, e devia estar, numa altura em que o BCE tem uma política monetária que alivia o fardo em juros dos devedores, a substituir dívida cara por dívida mais barata e a desendividar-nos. Ora estamos a fazer o contrário. Portanto, mal o BCE tiver de corrigir a política monetária, nós ficamos esganados. Isso preocupa-me, porque o país já passou uma fase de grandes dificuldades, devíamos estar a fazer tudo para evitar voltar a passar por elas e estamos a fazer o contrário.
Portanto, preocupa-o mais a situação orçamental deste ano do que a fragilidade do sistema financeiro?
O sistema financeiro reflete de alguma maneira a situação do país. Foi assim em 2011 e é assim hoje. Em 2011, nós tivemos o país à beira da bancarrota e o sistema financeiro à beira da insolvência e foi por isso que houve lugar à recapitalização dos bancos com ajuda pública, na medida em que eles precisaram, que a solicitaram e que o Banco de Portugal decidiu que era adequado. Isso não impediu, no entanto, os bancos, como o país, de manter desequilíbrios de dívidas acumuladas muito grandes.
Preocupa-me sobretudo o facto de o país, em função da condução macroeconómica que está a ser feita, das opções que foram tomadas pelo novo governo, não estar a fazer o que deve para pôr o país numa trajetória de crescimento sustentável e de criação de emprego.
Havia a linha de 12 mil milhões de euros para recapitalizar a banca. A certa altura instalou-se a ideia de que só tinha sido usado pouco mais de metade disso porque os bancos afinal não precisavam.
É importante distinguir as coisas porque eu tenho ouvido uma retórica incendiária por parte do governo em relação ao sistema financeiro que só procura criar nas pessoas a convicção de que herdou uma situação caótica na banca que hoje impede o país de crescer e o governo de fazer aquilo de que gostaria. E isso não é verdade.
Vamos por partes. Os 12 mil milhões de euros. Porque não foram usados?
Nós tivemos um envelope financeiro de 12 mil milhões para aplicar na banca. Na altura havia quem, na banca, entendesse que, em vez de propiciarmos uma injeção de capitais nos bancos que precisassem, devíamos constituir um bad bank. Para quê? Para em alternativa à capitalização dos bancos tirarmos de lá os ativos que tinham pior desempenho e que tornam mais difícil que seja dada a liquidez adequada às empresas e à economia. Essa opção não foi seguida. Porque não foi seguida? Porque na altura, segundo o próprio governador do Banco de Portugal, isso exigiria um volume financeiro algures entre 40 e 50 mil milhões de euros. Não era para meter nos bancos, era para garantir a limpeza dos balanços dos bancos...
Isso é quase o dobro do crédito malparado que é estimado hoje.
É verdade, mas isso tem uma explicação. É que nestes quatro anos os bancos fizeram a limpeza dos seus balanços, limparam um pouco mais de 20 mil milhões. A Caixa andou a limpar - por erros do passado, aí sim, tal como os outros bancos, ou seja, política de crédito concedida até 2010 - cerca de cinco mil milhões ou um pouco mais do seu balanço. O Millennium deve ter limpo à volta de sete mil milhões. O Novo Banco estará agora a atingir cinco mil milhões. Portanto, os bancos durante estes anos foram fazendo essa limpeza e melhoraram a sua situação. Não pioraram, melhoraram.
Exceto nos casos em que não foi possível, no do BES e no do Banif.
Já lá vamos. Em 2011 o sistema financeiro estava à beira da insolvência, porque o país estava à beira da bancarrota também. Agora não está. Mas tem problemas? Tem, como país tem uma dívida muito grande, privada e pública, e uma parte dessa dívida está nos bancos.
Se percebeu que era preciso um pacote de 40 mil milhões...
Não o tínhamos.
Não era possível renegociar com a troika?
Não era preciso debater. Não tem debate possível. Se, quando tomei posse, entendesse que precisávamos, em vez de 12, de 40 ou 50 mil milhões, isso obrigava a ter um segundo programa. Ou seja, eu teria de dizer: este programa não é adequado, precisamos de um segundo resgate. Isso levantava dois problemas. O primeiro era o de saber se alguém ia emprestar-nos mais 30 ou 40 mil milhões, sendo certo que essas opções tinham sido ponderadas antes, nas negociações do governo do PS com o FMI e com Bruxelas. Essa hipótese foi descartada.
Por vontade do governo?
Não. Por vontade das instituições. Como foi descartada a possibilidade de mais 20 ou 30 milhões de euros que eram necessários para as empresas públicas, por opção também externa. Ou seja, havia duas preocupações do lado das instituições internacionais. Uma era não emprestar um volume financeiro superior ao que o país pudesse pagar - senão punha-se o problema da sustentabilidade da dívida.
Atiraria a dívida pública para 170% nesta altura...
Para valores muito elevados, e aí seria difícil acreditar que o país fosse capaz de solver as suas responsabilidades. Por outro lado, as instituições tinham também a preocupação de deixar os incentivos para que alguma coisa mudasse - mudasse nas empresas públicas e o Estado fizesse as privatizações que eram necessárias. Se houvesse dinheiro para impedir isso, o Estado continuaria a ser ineficiente e a manter o setor empresarial como estava.
Concordou com esse, digamos, incentivo?
Não tenho dúvida de que foi assim que as instituições analisaram o problema. Portanto, essa opção não se colocava. Acresce que teríamos dado ao mundo inteiro a ideia de que ainda não tínhamos começado o primeiro e já estávamos a precisar de um segundo resgate, de que estávamos como a Grécia. Essa opção não existia, portanto. Mas então porque é que não gastaram os 12 mil milhões, perguntam. É muito simples, porque a injeção de capital nos bancos faz-se de acordo com as necessidades que são levantadas e monitorizadas, nomeadamente assessoradas pelo Banco de Portugal. Por outro lado, de acordo também com aquilo que os acionistas dos bancos entendem ser a sua capacidade de pagar. Se o Estado tivesse posto muito mais dinheiro nos bancos, seria muito difícil que os acionistas tivessem condições para remunerar esse financiamento que, aliás, era caro.
Tinha juros elevados: 8%, 8,5%...
E nove e dez e onze e por aí fora. O Estado até julho ou agosto de 2015 tinha encaixado pelo período todo mais de 1100 milhões em juros.
Quatrocentos milhões da Caixa Geral de Depósitos.
Com certeza, a Caixa representa 30% do mercado. Se tivéssemos colocado, forçado, mais dinheiro dentro dos bancos o que estaríamos a fazer era a criar condições para os nacionalizar, porque os seus acionistas não teriam capacidade nem para remunerar esses financiamentos nem para recomprar os bancos.
Não foi portanto gestão política.
Não. Tal como eu disse na altura, nós não queremos ficar com os bancos no colo. Estamos a pôr capital público nos bancos, emprestando dinheiro, esperando que seja devolvido com juros, não estamos a querer sentar-nos como acionistas.
No final de 2014 deu uma entrevista em que disse que estranhava que a Caixa ainda não tivesse pago ao Estado o empréstimo. Percebeu que ia deixar esse problema de recapitalização da Caixa por fazer?
A Caixa tem até meados de 2017 para devolver os CoCos [capital contingente] ao Estado.
É o único banco que ainda não pagou um cêntimo.
Não está, portanto, em incumprimento. Isto é importante dizer-se. O banco foi-nos alertando que teria dificuldade, por causa do seu volume de negócios, em fazer o reembolso dos CoCos. Para isso, precisa de vender ativos, de melhorar o seu desempenho e isso estava a revelar-se difícil.
A administração da Caixa disse-lho?
Não a mim, mas informou o governo. A minha convicção era de que a Caixa tinha ainda à disposição operações que podia realizar, quer na área internacional quer ainda no mercado doméstico, que ajudariam a resolver esse problema. Claro que a Caixa tem o problema que têm outros bancos portugueses, o problema da rentabilidade. E esse problema vem agravado pela política de baixas taxas de juro que está a ser seguida pela política monetária do BCE e é isso que está agora a constituir uma pressão maior sobre todos os bancos portugueses, bem como sobre os bancos italianos. A CGD, apesar do esforço fantástico que fez, que foi mesmo fantástico, para limpar uma parte significativa do seu balanço, ainda lá tem alguma coisa para limpar. É possível que a Caixa precise, portanto, de capitalização e se eu fosse primeiro-ministro estaria a fazê-la.
Não se tornou evidente que isso era necessário, entre 2014 e 2015?
Não há nenhuma necessidade de antecipar decisões que podem ter custos relevantes mesmo para o resto do sistema financeiro. Se houvesse um incumprimento, se estivéssemos no limite para tomar essa decisão... mas não há razão para estar a antecipar capitalização que pode ser feita mais tarde. A Caixa é um banco que cumpre todos os rácios que estão estabelecidos, vamos lá entender-nos sobre isso.
Por que razão se emprestou dinheiro à CGD através do tal envelope e não se recapitalizou a Caixa?
Ora aí está! Mas não foi isso que aconteceu. A pergunta permite esclarecer um equívoco. O Estado estava impedido de recorrer ao envelope financeiro dos 12 mil milhões de euros para financiar a Caixa. Não o podia fazer, é das regras. O Estado, como acionista da Caixa, para meter capital tem de sair do Orçamento do Estado, ou do Tesouro, como quiser. Não pode recorrer à linha de recapitalização da banca privada.
Os tais 12 mil milhões.
Portanto, a esses 12 mil não podíamos ir buscar um tostão. Tinha de o fazer à custa do Tesouro português. Como acionista recorremos no essencial à linha de CoCos, esperando que a CGD pudesse devolvê-los com os juros, nos mesmo termos que os outros bancos.
O Estado estava impedido de recorrer ao envelope financeiro dos 12 mil milhões de euros para financiar a Caixa
Percebe, neste momento, que o governo esteja a negociar com Bruxelas uma recapitalização da Caixa. Duvida apenas do valor, é isso?
A Caixa tem um acionista que é o Estado e uma vez que o próprio regulador exigiu mais em termos de capitalização, o Estado tem de resolver o problema. Portanto, se eu fosse primeiro-ministro hoje estaria a fazer exatamente o que fosse necessário para recapitalizar a Caixa. Agora, digo-lhe o que não estaria a fazer: não estava a fazer aquilo de uma forma que eu julgo que é muito perigosa, para não dizer inaceitável, o que o ministro das Finanças fez, que foi vir dizer que havia um desvio de três mil milhões na Caixa, no plano de negócios.
É ambíguo?
Não é ambíguo. O ministro das Finanças sabe muito bem que está a induzir as pessoas em erro, que está a dizer que há um buraco de três mil milhões na Caixa que não existe. Não é sério. Mais do que isso, em vez de desmentir as necessidades que vêm referidas na imprensa, que são superiores a quatro e a cinco mil milhões e que não são verdadeiras.
Acha que vai ser menos?
Metade ou menos. O que o ministro das Finanças está a fazer é a lançar suspeitas sobre a situação da Caixa e sobre a situação do resto dos bancos portugueses. E isso vai estourar-lhe nas mãos.
Porquê no resto dos bancos?
Porque as pessoas fazem, mesmo as mais conhecedoras e eruditas, regras de três simples nestas matérias. Basta ler research dos bancos que começaram a circular. Se a Caixa precisa de cinco mil milhões, o BCP há de precisar de 2500. São os números que já andam a circular. Ora, isto cria instabilidade no sistema financeiro, cria uma vulnerabilidade grave nos bancos portugueses. O governo está a semear condições para tornar o nosso sistema financeiro mais vulnerável ainda. E isso pode ter consequências desastrosas.
Que consequências são essas?
Muito graves. Basta atender, por exemplo, àquilo que está a viver-se em Itália. Todo o mundo financeiro está à espera de saber o que vai acontecer com os bancos italianos.
Trezentos e sessenta mil milhões de crédito malparado. Um terço do crédito malparado da zona euro.
Sim. É verdade, os bancos italianos têm não um problema de liquidez, mas um problema de capital e um problema de rentabilidade.
De solvência, também?
O governo italiano não há semana em que não venha dizer que tem este problema. E eu acho que o problema vai agravar-se consideravelmente. Primeiro porque os reguladores, quando os políticos dizem estas coisas em voz alta, a primeira coisa que fazem é dizer: Ah! Têm falta de capital? Então têm dez dias para apresentar um plano para corrigir a situação. Não resolve. Só torna mais difícil o problema. Portanto, o governo italiano vai ter de tomar uma decisão que é a de saber se espera pelos resultados dos testes de stress, no final deste mês, para anunciar que vai fazer uma recapitalização pública dos bancos italianos para segurar o sistema financeiro...
... mas não pode fazer, as regras impedem-no.
Em princípio sim.
Portugal não o pôde fazer com o infinitamente mais pequeno Banif...
Há na própria diretiva mecanismos que permitem, digamos, abrir exceções. Quando está em causa a estabilidade de todo o sistema financeiro, isso pode acontecer. Eu não estou a dizer que vai acontecer.
Espanta as pessoas que um problema tão grande como o da banca italiana seja empurrado com a barriga e um banquinho como o Banif tenha obrigado a uma azáfama súbita no final do ano com impacto na dívida portuguesa.
Ora aí está um bom exemplo. O Banif foi resolvido, no essencial, porque todas as opções que estariam à disposição do governo que se seguiu ao meu para resolver o problema como nós estávamos a tentar resolver caíram por terra, porque houve uma corrida ao banco. Quer dizer, criou-se na opinião pública a convicção de que o banco ia fechar. Houve até mesmo uma televisão que anunciou, dando a entender que tinha confirmação oficial da notícia, que o banco no dia seguinte ia fechar. Eu fiquei à espera de ver quantos dias o Banif ia durar, como é evidente, pois se um tipo se põe à porta do banco a dizer que o banco vai fechar porque não tem dinheiro, as pessoas vão tirar de lá o dinheiro. É assim. E o banco fechou. E com um prejuízo que, em circunstâncias normais, não ocorreria para os contribuintes.
É esse risco que se corre em Itália?
Em Itália o risco é muito maior, porque os bancos têm muito maior dimensão e são muitos. Representam uma parte significativa do sistema financeiro europeu e, portanto, o governo italiano poderá invocar, ao abrigo da própria diretiva, caso não haja um problema de solvência manifesto, aquilo a que se chama um waiver, uma exceção para poder capitalizar com dinheiro público os bancos italianos.
Sem afetar os obrigacionistas e os depositantes.
Sem as regras do bail-in, isto é sem que quer depositantes acima de cem mil euros quer acionistas percam dinheiro.
Portugal deve seguir esse exemplo, se Itália conseguir essa exceção?
Há uma diferença grande: Itália tem dinheiro público para meter nos bancos se precisar e nós não temos.
Tem uma dívida pública um pouco superior à nossa.
Mas está colocada dentro de casa. Quer dizer, são as poupanças dos italianos que suportam, não toda, mas uma parte significativa da dívida. É por isso que o governo italiano não pode correr nenhum risco quanto ao seu sistema financeiro, porque se esse risco se materializar, se o sistema que gere as poupanças dos italianos e a dívida pública do Estado entrar em colapso ou em crise, é o Estado que entra em crise e que colapsa; ora isso não pode acontecer, tenho a certeza de que o governo italiano não o deixará e tenho a certeza de que nas regras europeias se encontrará o contexto adequado.
Há uma diferença grande: Itália tem dinheiro público para meter nos bancos se precisar e nós não temos
Não há o risco de uma espécie de Lehman Brothers, desta vez no sistema italiano, que arraste Portugal?
Há risco. Foi justamente por aí que eu comecei. Há risco.
O que acontece se houver contágio?
Se houver um contágio, teremos de pedir dinheiro para meter nos bancos porque não temos. É simples. E não é em mercado que se vai levantar esse dinheiro.
Está a falar num segundo resgate?
Estou a dizer que há riscos muito sérios que estão a ser corridos nesta altura, com estas políticas. Portugal tinha até há um ano uma imagem externa muito definida. Era um país muito determinado, que apesar de desequilíbrios graves que se acentuaram durante muitos anos, estava a corrigi-los. É a ideia do copo meio cheio ou meio vazio. Quando parecemos gente disciplinada, consciente dos seus problemas, apostada em corrigi-los e que mostra resultados, os investidores tendem a ver o copo meio cheio e a achar que ele vai enchendo.
É só um problema de perceção ou é um problema substantivo?
É mais difícil do que o da perceção, porque o governo tem dado objetivamente razões para que as pessoas não tenham muitas dúvidas sobre o caminho que está a ser seguido - que aumenta as vulnerabilidades.
A execução orçamental até maio, os últimos dados, parece em linha.
Parece.
Não acredita que o défice vai ficar abaixo dos 3%, pela primeira vez?
Espero bem que tenha razão e que fique. Eu, que andei estes anos todos a lutar para que isso acontecesse, ficarei muito satisfeito. Não é pelo facto de ser um governo socialista que me levará a lamentar um bom resultado. Pelo contrário. Ainda me sobrarão muitas razões para poder dizer que constituo uma alternativa melhor do que este governo. Mas cada vez mais acredito menos nesse resultado. As pressões orçamentais são imensas. Este governo está a funcionar com menos dinheiro do que nós tínhamos em 2015.
Menos dinheiro?
Com menos dinheiro disponível para investimento. PS, BE, PCP, que nos criticavam amargamente por fazermos uma parte da consolidação orçamental cortando no investimento público... e este governo cortou tudo.
Isso tem acontecido em Portugal desde 2000, a queda do investimento público.
Mas não deixa de ser irónico que os que nos criticavam ainda façam pior. E no entanto há mínimos de investimento público que têm de ser feitos. Reposições que têm de ser feitas, senão há perda de qualidade, perda de serviço, de produção.
Há muita gente que vai espantar-se ao ouvi-lo dizer isto, depois de 2011, 2012, 2013, que foram anos de aperto violento.
Pois foram, porque tinha de ser. Este governo é que disse que não era preciso. Mas afinal é, porque ainda cortam mais do que nós no investimento público. Agora, na despesa de funcionamento, uma vez que decidiram fazer a reposição salarial toda num ano, mas não aumentaram a dotação dos programas orçamentais, na prática o que está a passar-se é que se paga mais salários, logo tem-se menos dinheiro para o resto.
Entre 2009 e 2013, o investimento caiu em 15 dos 20 trimestres.
É verdade... O investimento na totalidade, com a parte privada, não foi assim: subiu imenso desde 2013 e só agora está a afundar e depressa.
Se acha isso, porque é que chegamos a maio e a execução continua em linha com o orçamentado?
Não acredito nos resultados desta execução porque a despesa está a ser adiada, chutada para a frente. Sei muito bem as dificuldades dos ministros das Finanças em resistir às pressões de toda a máquina pública, que precisa de gastar dinheiro. São pressões que existem.
Notícia alterada a 28.07. Corrigido o título, porque a frase citada resultou de um mau entendimento das palavras no momento da desgravação. Deste modo, onde se lia "roubou a legislatura" deveria antes estar "derrubou".