"A fatura da tarifa social de energia vai refletir-se no preço ou na qualidade do serviço"
O governo anunciou que vai reforçar a tarifa social de eletricidade de modo a chegar a um milhão de famílias. A ideia é que sejam os produtores a pagar. Como vê esta medida?
Há uma certa bipolaridade nos governos em relação à energia. Por um lado, soa bem e por isso diz-se que as famílias, a indústria e a atividade produtiva pagam a energia cara. Mas depois vamos ver e quem mais contribui para a energia ser cara é o governo: na fatura elétrica, 60% do que pagamos são impostos, taxas e similares. Toda a gente precisa de energia. Mas a proposta do Bloco de Esquerda não é clara. Não se percebe bem se o alargamento é a um milhão de famílias ou se são as 500 mil já definidas pelo anterior governo, em que se considera uma média de duas pessoas por família. E depois há uma proposta também pouco clara para o gás: diz que será pago pela indústria e/ou consumidores elétricos de gás, o que significaria uma duplicação do ónus do que é varrido para a fatura dos restantes consumidores e sistema elétrico.
Seja como for, será um aumento significativo, uma vez que hoje há 110 mil famílias a beneficiar dessa tarifa.
Há aqui um problema: os governos continuam a ver a energia como a cash cow do Orçamento. A União Europeia já deu pareceres sobre este tipo de medidas defendendo que, a serem tomadas, devem ser assumidas pelo bolso do Estado dedicado.
Mas a ideia aqui é que sejam as empresas produtoras a pagar.
Sim, a EDP, a REN e a Endesa. Assim é fácil tomar medidas políticas, varre-se os custos para debaixo do tapete. Isto é claramente uma medida de proteção e solidariedade social. O governo toma as decisões que quer, mas que ponha os custos no orçamento da solidariedade social. Mas não é assim. Aqui toma-se a medida e alguém vai pagar a fatura, chuta-se para as empresas.
E as empresas vão refletir esse custo no consumidor?
Não há repercussão direta. Esse é aliás um argumento que estes partidos usam: isto vai acontecer mas garantimos que não se reflete no consumidor. Isso é obviamente uma leitura cândida de como as coisas funcionam. Pode não ser diretamente, mas a curto/médio prazo é evidente que isso será um parâmetro de custo para as empresas, logo vai refletir-se no preço ou na qualidade do serviço. Não há pequenos-almoços à borla. É preciso ver que esta medida é populista... Fala-se em um milhão de pessoas, mas o que se vê é que não houve tanta adesão nos anos que já temos de tarifa social, em que as pessoas podiam inscrever-se e beneficiar disso. E não é porque as empresas não divulgassem, essa informação vinha toda explicada, junto às faturas. É porque não lhes interessava ou achavam que não valia a pena.
Ou porque tinham de fazer o pedido. Mas tornando-se o processo automático...
É um bocado como o Pai Natal que bate à porta e diz "estou aqui e trago presentes". Se há transparência e as pessoas não recorrem, é porque não sentem necessidade. Não há nada em termos estatísticos que diga que devem ser 500 mil famílias ou 237 mil ou 124 mil ou 786 mil. E querer alargar a tarifa automaticamente traz problemas. Em última instância, contraria todas as políticas de promoção de eficiência energética.
Como assim?
Porque ao dar um desconto de forma administrativa, sem fazer as pessoas pensar e avaliar o interesse em recorrer à tarifa social, não se está a dar um sinal de apelo ao bom senso e à eficiência energética. Alargar a tarifa social com este automatismo para o número fetiche de 500 mil ou um milhão - nem que para isso seja preciso subir o escalão de rendimento dos candidatos -, é um absurdo, é perverter o racional de uma medida destas. Vai dar-se automaticamente abrigo a uma série de pessoas que não têm realmente carências, que se calhar não têm necessidade. E começam a entrar famílias que têm consumos elétricos que nada têm que ver com o casal de velhotes reformados que tem aquele mínimo: umas luzinhas, a televisão, o frigorífico e pouco mais. Se a energia é mais barata, há menos estímulo ao uso racional da energia, à utilização com parcimónia.
Gasta-se mais porque é mais barato. E o desconto fica a cargo das empresas produtoras.
Sim. E também aí este mecanismo é cego. Assumindo que é implementado como está, o custo de vender a eletricidade com desconto recai sobre as centrais elétricas. Isto provoca duas distorções. Em primeiro lugar, há muitos comercializadores de energia que não investiram em centrais e não lhes toca o custo. Em segundo, são precisamente as empresas que fizeram investimentos de centenas de milhões de euros em centrais elétricas que vão pagar os subsídios ao consumo.
Na semana passada, o Haitong Bank (ex-BESI) considerou que esta medida, ainda que os seis milhões estimados fossem pagos pela EDP, não teria um impacto significativo, já que representava menos de 1% dos lucros previstos. O caso da Endesa é diferente?
Para a Endesa é ultrapenalizador. Para nós isto recai sobre a central de ciclo combinado da Elecgas (no Pego, perto de Abrantes), que não funcionou em 2014 e em 2015 funcionou a 13% da capacidade instalada. Uma central que já tem prejuízos por ter uma utilização limitadíssima devido ao quadro em que foram atribuídas as licenças e em que foi pedido às empresas para investirem em centrais de ciclo combinado - são 400 milhões de euros -, e que foi alterado.
Não funcionou porquê?
Porque há sobrecapacidade instalada de eólicas, de energia solar, de cogeração e essas têm prioridade no despacho. Como o consumo estagnou, as centrais de ciclo combinado não entram no despacho. São essenciais para não haver rutura no sistema elétrico quando falha a chuva e o vento, mas quando não funcionam, não vendem e não têm receitas. Mas vão pagar o ónus de eletricidade da tarifa social.
A energia vendida pela empresa não é pesada no custo?
A atribuição e a distribuição da fatura da tarifa social é feita com base na potência instalada e não pela utilização e a produção das centrais. Quer funcione seis mil horas ou 60 horas por ano paga o mesmo. Isso devia ser alterado de forma a que sejam, por exemplo, as centrais que funcionem duas mil horas ou mais a assumir a sua quota--parte do custo da tarifa social.
Qual é a fatia paga pela Endesa pelas atuais 110 mil famílias que beneficiam da tarifa social?
Na nossa central isso refletiu um custo de dois milhões de euros por ano. Alargar, só porque sim, a 500 mil ou a um milhão de famílias significa pelo menos quintuplicar esse valor.
Acredita que a tarifa social de energia dá um sinal errado, está a facilitar-se demasiado? É uma questão que excede a área da energia?
Claro! Tudo o que é semelhante ao que se prevê para a tarifa social, de aplicação automática, é ultranegativo - ainda por cima quando sabemos que o Estado tem imensa dificuldade em monitorizar e fiscalizar a aplicação correta e não fraudulenta desses apoios e subsídios. Tenho a maior sensibilidade em relação às pessoas que têm carências, mas o maior risco do Estado social e da utilização de recursos, que são limitados, é banalizar os apoios, sejam quais forem. Os meios e os recursos alocados à solidariedade social devem ser aplicados a quem efetivamente tem necessidades, caso contrário está a criar-se expectativas e compromissos insustentáveis. Quando há estes balões de populismo político em que cada um quer dar mais e aparecer na fotografia como o mais bondoso e fazer o maior número de milagres das rosas por metro quadrado, o que acontece é que se cria ónus, responsabilidades e expectativas nas pessoas que se tornam insustentáveis.
Saiu agora de uma conferência onde esteve com o ministro das Finanças. Falou-lhe nessas preocupações?
Ele disse que tinha visto a tarifa social e tal, mas não entrou em detalhes. Também não é a área dele, é do ministro da Economia.
Mas Mário Centeno deu-lhe algum sinal?
Não.
Falou com ele ou com alguém do governo sobre as medidas deste Orçamento do Estado para as empresas?
Formalmente não.
Mas acha que o governo ignorou as necessidades das empresas? E que isso pode ter repercussões?
Claro que sim. Desde logo pelo discurso diário dos partidos que suportam o governo, que é de enorme agressividade para as empresas - não sei se é ignorância ou falta de honestidade intelectual. Os programas e o discurso do PCP e do BE, de reverter as privatizações nas energéticas, renacionalizar a EDP, a Galp, os bancos, a TAP... é totalmente unfriendly para as empresas. Não é com vinagre que se apanha moscas. As empresas, os empresários, os acionistas, os investidores, não são idiotas. Ouvem constantemente estes soundbytes, mas depois é capaz de ir falar com um deles e ele dizer que não tem nada contra as empresas.
Dizem-lhe isso?
Sim, já me disseram.
Pessoas do governo?
Sim. Dizem-me: "Ah, não te preocupes, nós temos de dizer isto para consumo interno, mas não é bem assim..." Uma coisa que mesmo para o governo é desconfortável - já mo disseram algumas pessoas - é a questão das 35 horas da função pública. Para qualquer cidadão deste país e para muitos funcionários públicos dedicados e competentes que conheço, é óbvio que isto está a criar uma clivagem entre as pessoas que têm o seu rendimento no setor privado e as que têm o salário no público - há até quem diga que é ilegítimo do ponto de vista constitucional. Só quem não sabe fazer uma elementar conta de somar é que imagina que passar as semanas de trabalho para 35 horas não tem nenhum encargo orçamental. Alguém no Ministério da Saúde dizia-me: "Não sei como vou justificar isto." Porque são serviços de 24 horas, e 365 dias. Das duas uma: ou as pessoas estavam 40 horas no trabalho e, desculpe a expressão, andavam a roçar o rabo pelas cadeiras sem fazer nenhum, ou se faziam como é que, diminuindo as horas, não vai ser preciso recrutar mais gente ou pagar horas extra, e portanto sobrecarregar o Orçamento? Mas depois o que pulsa na veia é este tipo de clima de preconceito ideológico.
Que influencia o ambiente de negócios?
É obvio que nada disto é atrativo, inibe a criação de um ambiente favorável ao investimento. E se para as empresas nacionais é mais difícil saírem e refazerem-se, para as internacionais, que não adormecem preocupadas com Portugal nem acordam a querer saber se Portugal dormiu bem, é-lhes absolutamente indiferente se vão pôr dinheiro em Portugal, em Chipre, em Marrocos ou no Japão.
A Endesa pondera sair do país?
Não é questão que ponderamos. Mas no nosso caso concreto temos um projeto de barragem que são 500 milhões euros de investimento. Temos lá metidos 100 milhões. E entretanto no programa do governo está escrito, em linha e meia, que todo o plano de barragens vai ser revisto e repensado. Qual acha que é a reação de uma empresa que está a fazer um investimento destes?
Estão a repensar o investimento?
Estamos. Estamos a ver o que vamos fazer. Porque ainda por cima estas coisa dizem-se com um carácter de suspense. A senhora d"Os Verdes não gosta de barragens - no outro dia até disse que não há uma barragem na história da humanidade que tenha trazido mais benefícios do que prejuízos. Eu não defendo que se faça barragens onde haja qualquer bocado de água. Quando tutelava a EDP, nunca aprovei Foz Coa - e nem se sabia ainda que havia as gravuras - porque ia dar mais prejuízos nas vinhas do Douro do que benefícios ao país. Há coisas que se justificam e outras não. Agora, neste investimento da Endesa, o governo cobrou milhões de euros às elétricas quando atribuiu os alvarás, nós temos terrenos expropriados, dezenas de milhões de euros de trabalho feito - estradas abertas, terraplenagens, trabalhos preparatórios, desmatações. E depois oiço dizer com esta candura, num debate parlamentar, que vai ser criado um grupo parlamentar para rever todo o programa de barragens e que haverá um relatório daqui a seis meses. Vou fazer o quê? Ligar para os tipos que estão a construir as turbinas, os paredões, e dizer: "Eh pá, ouvi agora na Assembleia que vai ser criado um grupo de trabalho para pensar nisto e daqui a seis meses vamos saber o que acham, portanto aguentem aí as coisas"... Ou as pessoas não têm a mínima noção da realidade dos assuntos ou não têm o menor pudor de seriedade.
São declarações irresponsáveis?
Muitas coisas têm sido ditas por iliteracia económica e/ou desconhecimento da vida empresarial e do ambiente internacional e/ou pura e descarada demagogia. Vivemos e beneficiamos de um movimento de globalização e queremos aproveitá-lo, exportar, que nos acolham bem nos investimentos portugueses que vão havendo no estrangeiro. Sabemos que as empresas portuguesas estão descapitalizadas e o Estado não tem dinheiro para se substituir ao investimento produtivo das empresas. De todos os países da União Europeia, somos o que menos cofinanciamento faz aos investimentos dos fundos comunitários e os investimentos por iniciativa pública sem cofinanciamento foram riscados do mapa. Não temos capital, as empresas são devedoras, temos de ser capazes de atrair investimento estrangeiro. Mas depois atira-se estas boatadas. Julgam que estão a falar em câmara escura? Que não há embaixadores que reportam aos seus países as declarações? Tudo isto tem repercussões.