"A Itália devia ser nesta UE a líder do bloco do Sul, que é o bloco do bom gosto"
Almoço com Luís Vilaça Ferreira, delegado em Lisboa da Accademia Italiana della Cucina
Será difícil imaginar maior contraste do que entre o Palácio Pombeiro, onde há dois anos conheci Luís Vilaça Ferreira num jantar oferecido pelo embaixador Giuseppe Morabito, e a Cantina Bella Ciao, agora escolhida pelo delegado em Lisboa da Accademia Italiana della Cucina para este almoço. Fausto versus simplicidade, mas a certeza de que a gastronomia italiana, talvez a mais popular no mundo, é tratada com respeito e carinho, garante-me o advogado de 59 anos, nascido em Maputo, então Lourenço Marques, e que faz remontar à Moçambique colonial a paixão que cedo sentiu por Itália, a começar pela sua comida.
"Nos anos idos de 1943, o meu pai, nascido em Guimarães mas que estava no Porto, foi, como muitos jovens, à procura de novas oportunidades em Moçambique, onde já estava o irmão. Fez a viagem de barco, eram tempos complicados da II Guerra Mundial, e chega a Lourenço Marques e teve de se instalar numa pensão que era propriedade de um casal de italianos. O dono até tinha sido vice-presidente da Câmara de Adis Abeba, quando a Etiópia era uma colónia italiana, e o meu pai passou lá uns meses longos, gostou imenso, tratavam-no como se fosse da família e aprendeu a gostar da cozinha da senhora, da mamma della casa, que era, claro, cozinha italiana. Assim, desde pequenino que ouvi o meu pai fazer grandes elogios à culinária italiana", conta Luís, degustando um pedaço de pecorino, queijo de ovelha, servido como entrada a par de umas fatias de enchidos que bem podiam ser portugueses, pelo aspeto e sabor. "Há muito em comum entre as duas gastronomias, ambas mediterrânicas, com a massa, la pasta, a ser a particularidade italiana", acrescenta o meu convidado, admitindo haver aqui uma influência chinesa trazida pelo célebre Marco Polo.
A Cantina Bella Ciao fica na Baixa lisboeta e faz justiça ao nome, recusando pretensões. As mesas são corridas, todas com toalhas em xadrez vermelho e branco. Numa das paredes, uma pintura de uma bela camponesa italiana sobressai, reproduzindo um cartaz clássico da marca de massas De Cecco, mas Luís chama-me a atenção para uma frase ao fundo da sala que proclama "qui si mangia come a casa della mama!". Um compromisso com a comida caseira, como a que a sua mãe fazia, que o dono, e também cozinheiro, Marcello di Salvatore, insiste em manter, mesmo depois de ter mudado de instalações, pois trocou a Rua do Crucifixo pela de São Julião. "Foi no outro sítio que cheguei a organizar um jantar da Accademia", explica-me Luís, sempre impecável na forma como pronuncia as palavras em italiano. Sei que é fluente, basta relembrar a forma animada como o vi a conversar com o embaixador Morabito (que há pouco voltou a Roma), e o surpreendente é que foi sem aulas que aprendeu.
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"Por ironia ou não fui trabalhar em 1980 para a Generali, uma seguradora que está estabelecida em Portugal há muitos anos. Foi aí na Generali que passei a ter uma ligação muito forte a Itália. Por razões profissionais visitei a Itália muitas vezes, comecei por ir a Trieste, sede da Generali, uma cidade encantadora no Adriático, austro-húngara quase, e depois Veneza e Milão. E foi aí que se reforçaram as ligações com Itália do ponto de vista cultural e gastronómico - eu sou gastrónomo - e aprendi a falar italiano de ouvido. Era com os amigos a falar que aprendia e falo razoavelmente, e hoje até escrevo", relembra o advogado, que ainda começou o curso de Direito num Moçambique já independente, mas que em 1978, recém-casado com Maria Luísa, decidiu vir para Lisboa, onde se licenciou. A mulher, nascida na Beira, é igualmente advogada - e uma conhecedora também da gastronomia italiana, posso testemunhar -, assim como a filha Catarina. Tem também um filho, André, que " está a formar--se em Direito", diz Luís, a sorrir.
Na hora de escolhermos o vinho, confio em absoluto no meu convidado, que como é hábito nesta rubrica foi quem escolheu o restaurante, o qual foi visitado, e testado, em tempos pelos membros da Accademia, num dos seus jantares regulares, onde se faz uma apreciação sempre com intuito de incentivar à qualidade. Vem para a mesa Terre degli Eremi, um branco dos Abruzos, a região do centro de Itália de onde é oriundo Marcello, mas não convence. Acabamos a beber antes um tinto da Toscana, Col di Sasso, muito agradável. Luís fala-me da beleza da Toscana, da Sicília, que diz ser "deslumbrante", também de Veneza, que o encanta apesar da invasão turística, e de Roma, "cidade eterna", a qual nunca se cansa de visitar. "Conheço quase toda a Itália. Das grandes cidades só me falta mesmo Génova", sublinha.
Estamos a falar sobre o interesse de Luís pela cultura italiana quando chega o primeiro prato, um pasta e fagioli, algo entre uma feijoada e uma sopa de carne, borrego neste caso. "Um típico prato caseiro dos Abruzos", fico a saber. Um pouco pesado, mas agradável na simplicidade do sabor. O especialista sentado à mesa comigo alerta-me ainda para alguns temperos que fazem a diferença. Ora, é pois mais aconchegados que reatamos a conversa, com Luís a confessar ter "uma paixão muito grande pelo cinema italiano. É preciso entender que nos tempos da ditadura havia muito cinema, mas havia um controlo excessivo dos filmes anglo-saxónicos, e por isso víamos muito cinema italiano em Portugal e em Moçambique. Gosto muito ainda hoje do cinema italiano, também dos escritores".
Como chega, entretanto, mais um prato, desta vez pappardelle ai funghi, uma das inúmeras variantes de massa acompanhada de cogumelos. O sabor dos cogumelos é forte e é preciso apreciar, já a massa, fresca, é deliciosa. Luís concorda: "Eu gosto imenso de pasta. Embora os portugueses tenham uma visão muito redutora em que acham que a cozinha italiana é só massa. É um produto prodigioso, um prato simples feito com muitos sabores: da horta, do mar, com carne e sempre fabulosos. O primeiro prato italiano, equivalente à nossa sopa, é a pasta. Mas a Itália tem grandes segundos pratos que não têm nada a ver com massa nem com pizze. Eu costumo dizer que a cozinha italiana é tão boa que até aquela que não é original e é adulterada é apreciada pelo mundo fora. Mas não tenho dúvidas nenhumas de que a pasta é o que mais me motiva."
Peço a Luís que me explique melhor o que é a Accademia Italiana della Cucina, que conta com duas dezenas de membros em Portugal, entre portugueses e italianos, mas que costuma também ter convidados nos jantares que organiza (tive oportunidade de participar num, no La Garage). O delegado bebe um gole de tinto toscano antes de avançar e eu acompanho. Depois: "Sou delegato da Accademia Italiana della Cucina. Esta academia foi fundada em 1953 por um ilustre colega seu, Orio Vergani, jornalista do Corriere della Sera, em Milão. E é uma organização cultural não lucrativa que visa defender e estimular os valores da gastronomia, porque a civilização também passa pela mesa, já dizia Vergani. A delegação da academia foi fundada em Portugal em 1999, eu sou um dos sócios fundadores. Foi fundada por um diretor do Instituto Italiano em Lisboa, Giuseppe Manica, e fundamentalmente visita restaurantes italianos. A nossa obrigação é uma vez de dois em dois meses visitarmos um restaurante emb que nos é servido um menu com aquilo que é habitual oferecer aos clientes e nós fazemos uma crítica positiva, um incentivo, porque às vezes fora de Itália não é fácil encontrar os produtos e há tendência para adulterar. Posso dizer que Portugal, e Lisboa em particular, já tem muitos bons restaurantes italianos."
Um terceiro prato chega à nossa mesa, e agrada-me bastante só de olhar. "São polpette al sugo, uma versão das nossas almôndegas em molho de tomate", esclarece Luís. A acompanhar apenas pedacinhos de pão. Comento que apesar de os Abruzos, parte do cano da bota, serem banhados pelo Adriático, não nos foi servido peixe. O advogado gastrónomo afiança-me que há bom peixe em Itália, embora mais pequeno do que se vê por aqui. E, sabendo ser eu setubalense, acaba por falar do choco e de como os italianos valorizam a tinta nas afamadas massas al nero di seppia.
Marcello di Salvatore vem até nós para nos cumprimentar. Pergunta se está tudo bom e recebe uma resposta positiva, sincera. Agradece, ele que está há uma década em Portugal e, conta Luís, se casou com uma portuguesa e já tem um filho português. Sem maldade, pergunto-lhe se vai torcer por Portugal no Mundial de Futebol. O dono do Bella Ciao sorri, mas fico com a ideia de que os italianos não digeriram ainda não irem à fase final na Rússia, eles que por quatro vezes já foram campeões do mundo.
Já sem Marcello por perto, Luís volta a explicar-me o porquê da escolha, acertadíssima : "Achei que era interessante porque sai fora dos estereótipos que existem. É uma tasquinha italiana, não tem nada de pizze, porque as pizze não se comem em todos os lados. É uma cozinha caseira, aqui come-se como na casa da mamã, o chefe faz pratos simples, muitos de pasta, outros com origem nos Abruzos, que é uma região onde há muito bons cozinheiros. A Itália tem várias cozinhas em função das regiões. Basicamente achei que era interessante vir porque não é comum. Este é um restaurante que já tem muitos anos e onde se come boa comida caseira."
Muito ou pouco em comum com a cozinha portuguesa, massa à parte? Volto a perguntar ao homem cuja vida sempre tem tido o condão de estar ligado à Itália, ou não trabalhasse desde 2000 para o escritório Lipari Garcia, cujo nome vem de um advogado luso--italiano. Até a máquina de café que usa no trabalho é italiana, uma Lavazza, mas aí sem surpresa, tão bom costuma ser o café italiano, como no Bella Ciao, onde servem também Lavazza, pude confirmar. Sabor e aroma excelente, a recompensar quem como eu bebe a bica sempre sem açúcar. "Eles servem o melhor café do mundo, mas logo a seguir deve vir Portugal. Isto é-me dito por muitos italianos", comenta Luís, enquanto dividimos um tiramisù.
"Há grandes pontos de contacto entre as duas cozinhas. A boa cozinha do Mediterrâneo, os sabores, o azeite, o alho, os vinhos, as ervas de cheiro são parecidas. Há pratos italianos parecidos com os portugueses - não estamos a falar de pasta"
"Há , de facto, grandes pontos de contacto entre as duas cozinhas. A boa cozinha do Mediterrâneo, os sabores, o azeite, o alho, os vinhos, as ervas de cheiro são muito parecidas. Há muitos pratos italianos parecidos com os portugueses - não estamos a falar de pasta. Por exemplo a dobrada e as tripas, as tripas à la romana são ótimas, os cabritos feitos no forno, os cozidos de carne do Norte de Itália, muito parecidos com os nossos, as sopas de peixe que são as nossas caldeiradas, com sabores muito idênticos. Há muita comunhão de traços. Claro que depois é preciso perceber que a estrutura tradicional da refeição italiana é diferente da nossa. Nós temos as nossas sopas, que os italianos adoram. Eles têm o minestrone mas não muito, porque fundamentalmente o primeiro prato deles é uma pasta ou um risotto. Depois vem o prato de carne ou peixe."
Acabamos com o tiramisù, que Luís me explica querer dizer qualquer coisa como "atirar para cima", ou levantar o moral. Para ajudar nesse objetivo, oferecem--nos também um copinho de limoncello e ficamos a saber que a despesa é por conta da casa e que nem vale a pena insistir. Luís convence-me a não tentar contrariar Marcello. É um sinal de hospitalidade italiana, povo que, acrescenta o advogado, estima muito os portugueses. "Sentem ter muito que ver connosco", nota.
Então, e para terminar, que pensa o português Luís, grande conhecedor da Itália, de um país que por causa da política às vezes tem má imprensa? "Eu digo aos amigos italianos que os vejo muito descrentes. A Itália é um país prodigioso. É um país grande, riquíssimo, a oitava economia do mundo e um dos grandes parceiros da economia portuguesa, quer como cliente quer como fornecedor. A Itália tem uma vitalidade muito grande. Tem tido alguns problemas, mas o país funciona porque os italianos dizem que estão em crise há decénios e a verdade é que apesar de tudo é uma sociedade de abundância, rica. Com o tempo os italianos vão encontrar o seu caminho. Itália devia ser hoje nesta União Europeia a líder do bloco do Sul, que é o bloco do bom gosto. É importante para nós que a Itália esteja bem e que tenhamos alguma sintonia estratégica." E brindamos pois a bella Italia com um copinho de limoncello fresquíssimo.
Cantina Bella Ciao
> Entrada de queijo e enchidos
> Tinto da Toscana
> Pasta e fagioli
> Pappardelle ai funghi
> Polpette al sugo
> Tiramisù
> 2 cafés
> 2 copos de limoncello