Santos Silva pede "atenção": proibição de venda de casa a não residentes pode ser inconstitucional

Projeto do BE foi admitido, mas nota dos serviços parlamentares adverte que a proposta pode pôr em causa os princípios constitucionais da igualdade e direito de propriedade.

O presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, alertou os deputados para uma possível inconstitucionalidade do projeto de lei do BE que defende a proibição de venda de casa a não residentes no país.

A dúvida é levantada pelos serviços da Assembleia da República que, na nota de admissibilidade à proposta (um passo inicial no percurso parlamentar dos projetos de lei, em que é aferido o cumprimento de requisitos formais) escrevem que ao "proibir a venda de casas a não residentes em Portugal, o projeto de lei poderá pôr em causa o princípio da igualdade, garantido pelo artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, assim como o direito de propriedade, constitucionalmente previsto no artigo 62.º da Constituição". Na nota de despacho à proposta, Augusto Santos Silva sublinha esta dúvida, referindo que ela deve ser considerada pelos deputados. "Permito-me chamar a atenção para as dúvidas suscitadas na nota de admissibilidade, as quais deverão ser consideradas no decurso do processo legislativo", escreve o presidente da Assembleia da República.

O projeto do BE determina a proibição de "venda de imóveis em território nacional a pessoas singulares ou coletivas, com residência própria e permanente ou sede no estrangeiro". Uma interdição com várias exceções, nomeadamente no caso de "cidadãos portugueses com residência própria e permanente fora de Portugal", de requerentes de asilo ou imigrantes com autorização de residência permanente. Fora da proibição de compra de imóveis ficam também as "transações de imóveis em territórios de baixa densidade", bem como os "cidadãos estrangeiros que adquiram um imóvel, em compropriedade, com o seu cônjuge ou com pessoa unida de facto".

No preâmbulo, o BE justifica a medida com a necessidade de "combater a escalada de preços" na habitação". "Em Portugal, o direito fundamental a uma casa está por cumprir. Na última década os preços das casas em Portugal aumentaram 80% e as rendas subiram 28%. Os residentes no país gastam com a casa uma percentagem brutal dos seus rendimentos", escrevem os bloquistas, sustentando que o governo PSD/CDS, ao tempo da troika, transformou Portugal "num paraíso para fundos imobiliários, vistos gold, nómadas digitais e residentes não habituais". O BE sublinha que a "crise da habitação não é uma singularidade portuguesa", mas responsabiliza os sucessivos governos - PS incluído - pelo agravamento desta tendência. No projeto de lei, o BE aponta o exemplo do Canadá, onde o "governo do Partido Liberal proibiu a venda de edifícios residenciais a estrangeiros", uma "medida que já tinha sido implementada na Nova Zelândia e que será também uma realidade nas ilhas de Ibiza, Maiorca e Menorca".

"Manifestamente inconstitucional"

Para Jorge Bacelar Gouveia a proibição de compra de imóveis por não residentes é "manifestamente inconstitucional", ferindo os "princípios da igualdade, da proporcionalidade, da propriedade privada e da atividade económica". "Há um problema de igualdade, com uma discriminação negativa, em função da nacionalidade. E um problema com o direito de propriedade e até de iniciativa económica", refere o constitucionalista, precisando que "não é impossível que se tomem medidas que restrinjam o direito de propriedade das pessoas, mas não com esta gravidade". Jorge Bacelar Gouveia defende também que a proibição não pode, em caso algum, aplicar-se a cidadãos da União Europeia, na medida em que o direito europeu impõe "uma liberdade total de circulação de pessoas e bens": "Do ponto de vista do direito europeu essa restrição é impensável, seria uma barreira legislativa à livre transação de bens e serviços dentro da Europa comunitária, não é possível".

Bloco: o direito à propriedade "não é absoluto"

Para o BE não há dúvidas quanto à constitucionalidade da proposta. "O nosso entendimento é que não há qualquer violação de princípios constitucionais", diz ao DN fonte oficial do partido, sublinhando que o direito à propriedade inscrito na Lei Fundamental "não é um direito absoluto" e que "outros países já adotaram um regime muito semelhante" ao que agora é proposto.

O mesmo é válido quanto a uma eventual discriminação de não residentes. "Nenhum destes direitos beneficia de uma garantia em termos absolutos ou ilimitados, impondo-se, perante uma situação de conflito entre direitos, uma ponderação dos valores constitucionais envolvidos", argumenta o partido. E na ponderação com o "direito a uma habitação condigna", também ele com previsão constitucional, o BE não tem dúvidas que deve prevalecer este último.

"Qual é o impacto?"

Com um longo percurso ligado à área da habitação, Helena Roseta também levanta muitas dúvidas à aplicabilidade desta medida a cidadãos da União Europeia. Mas este não é o principal foco das críticas da antiga deputada do PS, rosto da Lei de Bases da Habitação, para quem este projeto é "uma simples declaração de intenções que não está suficientemente fundamentada".

Para Helena Roseta a proposta é "cega quanto à realidade do território" e "confusa na aplicação" ao referir simultaneamente os conceitos de territórios de alta/baixa densidade e "zonas de pressão urbanística", que têm uma abrangência bastante diferente. E está por saber qual a repercussão que teria uma medida desta natureza: "Qual é o impacto? Tem que haver um estudo sobre as consequências que isto tem". "Para além de eventuais problemas de constitucionalidade e até de violação dos direitos dos cidadãos europeus, proibições tão generalizadas correm o risco de provocar danos muito superiores aos benefícios pretendidos", remata.

susete.francisco@dn.pt

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