Quando a Esquerda não se entende
No dia em que o Presidente revelou ter "na cabeça" o dia seguinte às eleições, o DN foi tentar saber se a esquerda se pode unir.
O Presidente da República, ao mesmo tempo que anunciava já ter "na cabeça" o que fará após as eleições, recusa revelar "um centímetro" a esse respeito. Entre os apoiantes dos partidos da oposição há um cenário que tem vindo a tornar-se credível: uma coligação - ou pelo menos um entendimento parlamentar - entre o PS e os partidos à sua esquerda. Mas, pelo menos para já, este é um tema tabu entre os socialistas.
Entre os militantes do partido contactados pelo DN, a maioria recusou sequer abordar a questão. E os que falaram mantiveram o discurso oficial.
"Não vou contribuir para uma discussão que, na minha perspetiva, não faz sentido. O secretário-geral do PS candidatou-se à maioria absoluta e, como militante do PS, entendo que é nesse objetivo que temos de nos concentrar", justificou ao DN António Galamba.
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João Cravinho não afastou a discussão. Mas remeteu-a para a próxima segunda-feira: "Temos de esperar até domingo - e só faltam três ou quatro dias - para saber os resultados e ponderar, face aos resultados, qual é o peso real de questões como essas e qual é o peso retórico dessas mesmas questões."
O antigo ministro de António Guterres aproveitou, no entanto, para criticar o Presidente, que ontem, em Nova Iorque, afirmou aos jornalistas já ter definido o que fará após as eleições: "A forma como irei decidir, embora já esteja na minha cabeça, eu não irei revelar nem um centímetro", afirmou Cavaco Silva.
"A Constituição é muito clara: o Presidente da República deve atuar em função dos resultados. E não me parece que o Presidente da República conheça os resultados das eleições de domingo", ironizou João Cravinho, justificando com a sua própria falta de "dons divinatórios" a pouca disponibilidade para abordar cenários pós-eleitorais: "Nesta fase, temos de ponderar tudo muito bem e selecionar a matéria sobre a qual falamos."
Entre os partidos da esquerda têm surgido alguns sinais de disponibilidade para falar após as eleições: "Da nossa parte não há nenhum exemplo que possa ser identificado de políticas de esquerda que não tenham contado com a iniciativa ou o apoio da CDU", disse ontem ao DN Jaime Toga, da comissão política da coligação.
Recentemente, a porta-voz do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, desafiou António Costa para uma reunião. Uma proposta que deixou "muito satisfeito" Francisco Louçã, fundador deste partido, que, no entanto, defendeu ao DN que o PS tem feito tudo menos aproximar-se desta ou de outras formações da oposição: "O PS começou por fazer uma campanha para ganhar votos à esquerda, ignorando os descontentes com o governo da direita, e com isso deu um enorme espaço à coligação", criticou.
Para Louçã, a resistência do PS em aproximar-se dos partidos da esquerda tem "uma explicação mais profunda", que passa por "alinhamentos à direita" ditados pela "regras da União Europeia", que não permitem desvios a determinados ditames: "Não se aceita na Europa que possa haver um governo que discuta a dívida, que possa ter uma política para melhorar a cobertura da Segurança Social ou que proponha investimento para criar emprego", ilustrou.
O politólogo José Adelino Maltez concordou. Na sua opinião, neste momento, PS, PSD e CDS fazem parte de um arco governativo "situacionista", sem margem para desvios ideológicos ou programáticos. O que equivale a dizer que não se podem entender a não ser entre eles. "Estas eleições são apenas a escolha de um intérprete para a mesma música. Se o Parlamento reagisse normalmente [ao resultado das eleições], lá se iriam as contas da chamada estabilidade. Mas a preocupação principal é o chamado arco da governabilidade."
António Costa Pinto lembrou que "há toda uma tradição de animosidade" entre o PS e o PCP, que remonta "ao processo de democratização, em guerra fria", no país. E também não vê no Bloco um parceiro de coligação. "Esse papel até seria do Livre", lembrou. Quanto ao gesto de Catarina Martins, serviu "claramente" para "tirar margem de manobra ao Livre e assegurar lugares que iriam para o PS".