Metadados e eutanásia: os temas quentes do pós-Orçamento

Proposta do governo sobre metadados vai ser discutida já na sexta-feira, à "boleia" do agendamento feito pelo PSD, que tem também um projeto de lei para suprir inconstitucionalidades da lei.

Terminado o processo de aprovação do Orçamento do Estado para 2022, a Assembleia da República tem agora pela frente cerca de dois meses de atividade, antes das férias parlamentares, para já com dois pontos quentes na agenda: a nova lei dos metadados, para ultrapassar a recente declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional (TC), e a despenalização da morte medicamente assistida, que vai pela terceira vez a votos nos últimos dois anos e meio, no que é já um dos processos legislativos mais longos das últimas legislaturas.

A questão dos metadados sobe a plenário já na próxima sexta-feira, pela mão do PSD, que marcou um agendamento potestativo (de caráter obrigatório) para discutir o projeto de lei do partido, que visa expurgar as inconstitucionalidades apontadas pelo TC ao atual quadro legal. Com a iniciativa dos sociais-democratas sobe também a plenário a proposta de lei do governo sobre a mesma matéria e mais dois projetos de lei, um apresentado pelo Chega, outro pelo PCP.

A alteração da chamada Lei dos Metadados resulta da decisão do TC, que, num acórdão de 19 de abril, declarou inconstitucionais várias normas da lei de 2008, que estipula que os fornecedores de serviços telefónicos e de internet devem guardar os dados das comunicações pelo período de um ano, para eventual investigação criminal - uma imposição que abrange as comunicações de todos os cidadãos. Uma situação que o TC considerou que coloca em causa, de forma desproporcional, o direito à reserva da vida privada. Em causa está não o conteúdo das comunicações, mas dados como a identificação e localização dos dispositivos ou a duração dos contactos, por exemplo. Na declaração de inconstitucionalidade - que pode deitar por terra investigações já em curso ou mesmo condenações transitadas em julgado -, o TC visa, sobretudo, a manutenção generalizada destes registos por um período alargado e o facto de poderem ser conservados fora de Portugal e até da União Europeia.

As iniciativas que vão ser discutidas e votadas na próxima sexta-feira apresentam diferentes soluções para o problema. Na proposta de lei aprovada em Conselho de Ministro na última quinta-feira, e já entregue na Assembleia da República, o Governo estipula que deixe de existir uma base de dados com o fim específico de investigação criminal, passando as autoridades a aceder às bases de dados mantidas pelas operadoras de telecomunicações no âmbito da sua atividade comercial.

Uma "mudança de paradigma", nas palavras da ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro: "Não será mantida uma base de dados separada, com dados conservados por um ano para a exclusiva finalidade da investigação criminal, optando-se pelo acesso a bases de dados existentes para atividade corrente de prestação de serviços por parte das operadoras. Portanto, não se cria aqui qualquer dever de retenção de informação relativa a todas as pessoas. Para a investigação criminal serão utilizados os dados de que hoje, correntemente, as operadoras já dispõem."

Já os sociais-democratas mantêm a base de dados específica para investigação criminal, mas limitam o período de conservação dos dados a 12 semanas e proíbem a circulação e transferência de dados para fora do espaço da União Europeia. O documento prevê ainda a notificação do "titular dos dados de qualquer transmissão" a partir do momento em que "essa comunicação não seja suscetível de comprometer a investigação criminal ou de constituir risco para a integridade física ou vida de terceiros" - uma questão que também está prevista, em termos não muito diferentes, na proposta do governo.

A iniciativa do PSD foi inicialmente recebida com duras críticas dos socialistas, com o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, a afirmar que o "projeto de lei não tem sentido, é uma mera manobra política que terá algum interesse no quadro da luta partidária interna do PSD, mas para a República não tem nenhum interesse". Mas o tom foi depois suavizado pelo primeiro-ministro, António Costa, que considerou que a proposta do PSD "responde a parte dos problemas" levantados pela declaração de inconstitucionalidade do TC, mas deixa outros sem resposta.

Já o projeto de lei apresentado pelo Chega estabelece que os metadados devem ser conservados pelas operadoras de telecomunicações por um período de seis meses e proíbe que os dados relativos à localização sejam guardados de forma generalizada, admitindo este cenário apenas "após despacho fundamentado de juiz, relativo a pessoa concreta e com efeitos para o futuro". A proposta apresentada pelo PCP, por seu lado, encurta para 90 dias o prazo de conservação dos metadados de tráfego e de localização das comunicações eletrónicas, permitindo a sua disponibilização às autoridades apenas durante este período. Qualquer que seja a versão final, o destino do diploma já está anunciado: a nova lei dos metadados vai passar pelo crivo prévio do TC antes da decisão final do Presidente da República.

Eutanásia, terceiro round

Na próxima semana, também por força de um agendamento potestativo, desta vez do PS, os deputados votam novamente a despenalização da morte medicamente assistida. Será a quarta votação nos últimos quatro anos, a terceira nos últimos dois anos e meio. Recorde-se que a eutanásia foi pela primeira vez a votos na Assembleia da República em maio de 2018, sendo então chumbada por cinco votos (o projeto do PS, que foi o mais votado); voltou a votação já na legislatura seguinte, em fevereiro de 2020, altura em que foram aprovados cinco projetos de lei na generalidade, que viriam a dar origem a um texto único, que passou em votação final global em janeiro de 2021 - um texto que Marcelo Rebelo de Sousa enviou para o TC, que se pronunciou pela inconstitucionalidade de algumas normas. Novamente aprovado em novembro do ano passado, o diploma da morte medicamente assistida esbarrou então no veto político do Presidente da República.

Em debate estará não só o projeto de lei dos socialistas, mas também do BE e do PAN. O Iniciativa Liberal também dará entrada a um projeto próprio nos próximos dias, segundo fonte oficial do partido, o que significa que todos os proponentes da proposta que acabou por ser travada em Belém em novembro passado voltam a insistir na alteração ao atual quadro legal (faltam apenas Os Verdes, que não obtiveram representação parlamentar na atual legislatura).

À partida, a maioria absoluta do PS é garantia suficiente de aprovação dos diplomas, mas, neste caso, a liberdade de voto dos deputados socialistas e sociais-democratas baralha as contas - embora, em termos partidários, o hemiciclo continue a apresentar uma clara maioria favorável à despenalização da morte medicamente assistida. Em termos absolutos, entre os partidos favoráveis à aprovação da lei contam-se 135 votos, um número muito próximo das anteriores votações: 138 votos favoráveis em janeiro de 2021; 136 na votação registada em novembro. Como tem sido habitual entre os socialistas, há votos dissonantes (na última votação sete deputados socialistas votaram contra e dois abstiveram-se), mas este efeito tem sido contrabalançado pelos votos do PSD. Na última votação, 13 deputados do PSD votaram a favor e três abstiveram-se. A nova configuração das duas bancadas depois das legislativas de 30 de janeiro, com muitos novos deputados, não permite contas definitivas, mas só uma (nada previsível) alteração substancial nos dois grupos parlamentares ditaria um desfecho diferente da votação.

No PSD, o novo líder, Luís Montenegro, é favorável a um referendo, ao contrário de Rui Rio, que era contra a consulta popular e favorável à despenalização da eutanásia. Mas esta alteração não deverá ter consequências práticas. Mesmo face à proposta do Chega para a realização de um referendo, esta é uma iniciativa condenada ao chumbo, como, de resto, já aconteceu em outubro de 2020. E durante a campanha interna pela liderança do PSD, Montenegro deu sinal de que não alterará o princípio da liberdade de voto na bancada. "É tradição do PSD em matéria desta natureza, em matérias que são de consciência", disse há poucos dias.

Se o processo se reinicia na próxima semana, o diploma não deverá sair da Assembleia da República antes de setembro, como admitiu o líder parlamentar do PS na apresentação do projeto do partido. A posição do Presidente da República é a grande incógnita deste processo. Recebendo em Belém um diploma alterado, Marcelo Rebelo de Sousa mantém todos os poderes presidenciais intocados: pode promulgar, vetar politicamente ou enviar para o TC. O chefe de Estado receberá um diploma com o conceito de acesso à morte medicamente assistida uniformizado numa única expressão - um dos argumentos que levou ao chumbo de novembro. Mas essa clarificação vai no sentido contrário ao segundo argumento levantado pelo Presidente no veto, com os vários partidos a retirar do articulado a expressão "doença fatal" e deixando mais claro que a morte medicamente assistida será possível para além dos estritos casos de doença fatal e terminal.

Debates com PM de regresso?

Outro dossiê que estava parado, à espera da conclusão da discussão orçamental, é a revisão do Regimento da Assembleia da República. O grupo de trabalho constituído no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais arranca os trabalhos na próxima sexta-feira. Em cima da mesa estão projetos de alteração entregues pelo Chega, IL BE e PAN, que visam a reposição dos debates parlamentares com o primeiro-ministro, depois do fim dos debates quinzenais aprovado na última legislatura, pelo voto conjunto do PS e PSD. O PS já mostrou disponibilidade para retomar os debates, mas dificilmente isso acontecerá no mesmo modelo que estava estipulado anteriormente e que o próprio António Costa já criticou.

susete.francisco@dn.pt

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