29 setembro 2015 às 01h58

Reportagem: A luz branca da campanha

Se em vez de eleições se disputasse um campeonato de eloquência, talvez o bloco ocupasse um lugar cimeiro nas sondagens. Isso tem sido evidente nos debates em que participou Catarina Martins.

Hugo Gonçalves, escritor

O homem está sozinho numa das mesas próximas do palco. Tem óculos escuros, botas da tropa e um colete. No tecido, sobre o coração, está cosida a cara de Che Guevara e uma bandeira de Portugal. "No 25 de Abril ocupei a PIDE e a casa do Marcelo Caetano", diz, assim que me sento a seu lado. "Sou descendente de judeus, nasci na Bica, cresci na Madragoa e o meu avô colaborou no regicídio [de dom Carlos I]."

Adelino Andrade tem 76 anos e parece ser-lhe mais fácil falar do passado do que destas eleições. Mostra-me a sua pasta, forrada com a fotografia do antigo ministro Dias Loureiro, e aponta para a imagem como quem revela alguém escondido: "Olhe quem é que está ali atrás. É o [Passos] Coelho." Por baixo da foto, em letras vermelhas: "São corruptos." Adelino, que foi militante da Liga Comunista Internacionalista e que diz ter conversado muito com Álvaro Cunhal, abre a pasta e mostra o seu relicário ambulante: fotos e textos de Miguel Portas, uma medalha comemorativa da amizade entre Cuba e Portugal, e outra com o rosto de Leon Trotsky. Não muito longe dali está o major Tomé, da UDP, um dos partidos fundadores do Bloco de Esquerda (BE): "Esses gajos eram estalinistas."

No fundo do recinto do comício estão à venda os livros de Trotsky, organizador do Exército Vermelho, assassinado pelo catalão Ramón Mercader, a mando de Estaline, há 75 anos. Mas, quando olho a meu redor, só os livros e as diatribes de Adelino parecem aludir aos tempos da esquerda tresloucada e tirânica do século XX, de resto, há jovens e os seus telemóveis, bandeiras multicores (não apenas vermelhas), paus de selfie, um drone que nos filma a partir do alto, vídeos de campanha que passam no ecrã gigante e a estrutura de nave espacial da MEO Arena (há algures uma piada a ser feita se considerarmos, após o famoso interrogatório da deputada Mariana Mortágua a Zeinal Bava, que o maior comício de sempre do BE se realiza num pavilhão patrocinado pela PT).

Estamos, afinal de contas, em 2015, e ainda que, no fim do comício, se cante A Internacional, é difícil encontrar no rosto e nas palavras da militante Beatriz Rebocho - tem 18 anos - qualquer mancha do passado da ortodoxia e das guerras fratricidas da esquerda. No entanto, garante ela, na faculdade ainda é alvo de confusões: "Está melhor, mas quando digo que sou do bloco há quem olhe para mim como se eu andasse a matar gatos." Nascida no Alentejo, tem um tio-avô do PCP e uma mãe que a chamava para ver Francisco Louçã na televisão. Com 14 anos, nas últimas legislativas, começou a interessar-se por política e estreia-se agora a votar e numa campanha eleitoral: "Fazer parte deste grupo é como receber uma massagem no cérebro. Sinto-me em casa, estou a conhecer pessoas e as histórias delas." Há em Beatriz, tão nova ainda, uma evidente ausência de cinismo e o desejo de fazer o que está certo: "Sei que parece simplista, mas só quero uma sociedade melhor." E, nas suas palavras, por um instante que seja, há mais verdade do que em todos os tempos de antena.

Se em vez de eleições se disputasse um campeonato de eloquência, talvez o bloco ocupasse um lugar cimeiro nas sondagens. Isso tem sido evidente nos debates em que participou Catarina Martins. A linguagem parece ser um território confortável para a porta-voz do BE. No discurso do comício, ela, que estudou Linguística, fez uma referência ao romance 1984, de George Orwell, falando da Novilíngua, o idioma oficial da ditadura orwelliana, para assim descrever o discurso dos dois maiores partidos: "O PSD quer cortar as pensões e mandá-las para a bolsa, para fundos de especulação. E o PS quer baixar as pensões. Mas, em vez de dizê-lo, usam plafonamento vertical e horizontal."

Estamos numa carrinha da campanha, após Catarina Martins ter almoçado com militantes - dois mil, afirma a organização -, e depois de ter discursado durante 40 minutos e caminhado durante mais 45, debaixo do sol forte, numa arruada pelo Parque das Nações. Nem o ar condicionado parece abrandar a temperatura de forno. "Falar com as pessoas na rua é algo de que gosto. Os fretes são outros. As entrevistas", diz a dirigente do bloco. "Canso-me de ouvir-me a mim mesma. Os jornalistas estão a fazer o seu trabalho, e é a minha obrigação dar as respostas que me são pedidas. Mas há um limite para a quantidade de vezes que acho agradável dizer a mesma coisa. Quantas vezes posso achar entusiasmante responder à pergunta sobre se estamos disponíveis para um compromisso com o PS?"

A campanha é ingrata para eleitores e candidatos. Do lado de cá, a sensação de um discurso tantas vezes enlatado, uma ladainha que começa a soar como as vozes dos adultos nos desenhos animados do Charlie Brown: "Uóuóuóuó." Ou as contradições e as frases feitas dos políticos, com o mesmo sabor artificial de um sumo de laranja concentrado. Do lado de lá, os candidatos precisam de atenção e de criar eventos suscetíveis de serem mencionados na televisão e na internet. Imagino o cansaço que não deve ser interpretar um papel a tempo inteiro, enumerar as mesmas coisas ad nauseam, tantas vezes dispondo de fracos recursos estilísticos e pouco sobre o que falar.

Entre os candidatos e os eleitores está o filtro da televisão e das redes sociais, criando uma espécie de reality show em movimento pelo país. Na arruada, sempre que Catarina Martins se punha a falar com alguém era de imediato rodeada por um círculo inexpugnável de câmaras e de microfones, que parecia drenar toda a autenticidade da conversa. Uma jornalista, seguindo a lógica editorial do enchimento de chouriços, precisando talvez da sua dose diária de reality TV, lamentava: "Ela não está a falar com pessoas suficientes."

No interior do pavilhão, durante a sobremesa do almoço-comício, alguém da campanha, que prefere não ser identificado, dizia: "A comunicação social está muito formatada. Procura muito o sound bite, e os políticos sentem a necessidade de providenciar esse sound bite." O sound bite está para o discurso político como o post está para o Facebook: uma chamada de atenção, a oportunidade de criar um pico na narrativa. É preciso que algo aconteça, por mais frívolo ou inconsequente. O ciclo noticioso e a sua voragem, que também levam as televisões a fazer diretos de um estádio a oito horas de um jogo, precisam dos saltinhos de António Costa e das cantorias de Passos Coelho. Lambuzam-se com eles. E o público também.

Na carrinha, depois da arruada, Catarina Martins pega no telefone para saber onde estão as filhas. O país debilitado, de que tanto se fala na campanha, está lindo, lá fora, com sol e céu azul e o Tejo ao fundo. Por isso, não consigo esquecer que é domingo, que a candidata anda há semanas na estrada, que talvez preferisse já estar com a família em vez de ser entrevistada mais uma vez. Mas a campanha é um comboio embalado, sem tempo para empatias ou sentimentalismos. Uma vez a bordo, ninguém pode nada contra ele, e uma pergunta, ainda que repetida centenas de vezes, terá sempre uma resposta: o BE aceitaria integrar um governo de esquerda? "Queremos que as nossas propostas sejam concretizadas, mas não aceitamos colaborar com o poder financeiro nacional ou internacional, nem aceitamos a imposição de metas europeias que são impossíveis de cumprir", diz Catarina Martins.

Uma hora antes, quando, após o comício, as pessoas já se preparavam para sair do pavilhão e iniciar a arruada, um bando de pardais sobrevoou as mesas e foi pousar nas cadeiras. Um instante estranho - animais no interior de um espaço futurístico -, mas singelamente belo e real no meio da intermitência de tantos ecrãs. Pouco depois, uma jornalista muito maquilhada pôs-se diante de uma câmara e, assim que o holofote se acendeu, a luz branca conferiu a tudo - incluindo os pardais - a mesma artificialidade de um estúdio de televisão.

É impossível fazer chegar aos portugueses os aspetos de toda a campanha. Mas, apesar das limitações, talvez se pudesse escolher melhor. A mim, deram-me apenas dez minutos de entrevista com a candidata, e sofro da impressão de que, por mais que todos nos esforcemos e tenhamos boas intenções, estamos demasiadas vezes sentenciados a deslizar na superfície das coisas: a campanha é exatamente como a democracia do bipartidarismo ou um Big Mac, algo conhecido e seguro, que não nos faz especialmente bem, mas que aceitamos comer, julgando ser o melhor que conseguimos até agora.